quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Nilto Maciel (A Pálida Visitante)


Como qualquer leitor, dediquei alguns anos a ler um pouco das literaturas antigas, especialmente a grega e a latina. Conheci também parte da literatura egípcia: o Livro dos Mortos, os Contos do Harpista, as epopéias das Aventuras de Sinuhé e das Desventuras de Unamon, o conto mítico O náufrago, e outros. Antes disso, havia lido estudos como A Literatura no Egito Antigo, de Thorbjörn Ling. E aqui se inicia minha visita ao mistério da morte de cinco homens de diferentes latitudes. Talvez por um acaso tenha lido uma página da biografia de Ling. E então minha curiosidade se voltou exclusivamente para a vida (e a morte) do lingüista sueco, me fazendo esquecer os seus estudos. Vasculhei bibliotecas imensas em busca de outras biografias dele. Interessavam-me a morte de Ling e, especialmente, a doença que o matou. Como podia um europeu ter morrido de lepra no Egito?

Thorbjörn Ling me levou a Jacob Grillparzer, autor de uma História do Egito Antigo. Em um dos capítulos mais curiosos e interessantes narra pragas de insetos ocorridas no Egito Antigo. Uma dessas pragas de gafanhotos é narrada com refinada arte e com tantos detalhes que não tive como não voltar ao Êxodo: “Estendeu, pois, Moisés a sua vara sobre a terra do Egito, e o Senhor trouxe sobre a terra um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite; quando amanheceu, o vento oriental tinha trazido os gafanhotos. E subiram os gafanhotos por toda a terra do Egito, e pousaram sobre todo o seu território; eram mui numerosos; antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim. Porque cobriram a superfície de toda a terra, de modo que a terra se escureceu; devoraram toda a erva da terra, e todo fruto das árvores, que deixara a chuva de pedras, e não restou nada de verde nas árvores, nem na erva do campo, em toda a terra do Egito”.

A narração de Jacob é muito mais rica, mais minuciosa do que a bíblica. Parece-nos ver as nuvens de insetos sobrevoando as plantações e o chão. Ouve-se o chiar medonho dos gafanhotos devorando tudo, num craque-craque incessante, como se se visse o desfolhamento contínuo das árvores. Sente-se o odor da seiva no momento de sua sucção pelos acrídios.

O livro de Jacob transcreve trechos de inúmeros clássicos, assim como de obras menos conhecidas. Uma destas é O Egito e os Hebreus, de Gustav Hus. Segundo o biblicista tcheco, o capítulo bíblico da praga dos gafanhotos se referia, originalmente, a um tipo de gafanhoto já desaparecido. Não seria apenas uma figura de retórica o trecho seguinte: “Antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim”. Na verdade, tais gafanhotos teriam existido somente naquele tempo, naquela estação do ano, naqueles dias de praga, ou naquele dia e naquela noite terríveis. O nome dessa espécie teria constado de manuscritos hebraicos, gregos e latinos. Estaria mencionado em uma versão da Bíblia, tendo sido dela extirpada por volta do terceiro século da era cristã. Consoante Hus, os insetos teriam sido transmissores de uma doença, espécie de lepra, que teria acometido populações inteiras do Egito e de toda a região desde o Rio Nilo até a Assíria.

O latinista Juan Carnicer afirma desconhecer, em textos latinos, qualquer alusão ao gafanhoto de Gustav Hus. Faz referência aos primeiros documentos latinos do século VII a.C. e transcreve trechos de obras de diversos escritores romanos, como Lívio Andrônico, Névio, Plauto e Ênio. Dedica algumas linhas a Plínio e sua locusta, e ainda descreve a anatomia de animais como a lagosta-gafanhoto.

Denis Papineau publicou numa revista científica um estudo intitulado Origem e Evolução dos Gafanhotos. Apesar do título, o biólogo francês não se limita aos gafanhotos — refere-se também às lagostas, aos grilos e às esperanças. E lembra algumas doenças, como gafa, sarna e lepra. Porém não afunda na História e muito menos nas origens da palavra locusta.

Recentemente tive um sonho esquisito. Eu me encontrava no Egito, como turista. Já havia visitado a Esfinge, as pirâmides e outros templos da cultura egípcia. Acompanhava-me sempre um homem branco, louro, cinqüentão, robusto, alto, com quem eu conversava o tempo todo. Falávamos de faraós, dinastias, deuses. Ao despertar, tive a idéia de o homem do sonho ser Thorbjörn Ling, cuja fisionomia nunca tinha visto, por mais que a buscasse nas enciclopédias. Dias depois, porém, consegui um exemplar da edição sueca de seus ensaios dedicados à literatura no Egito Antigo. Numa das primeiras páginas está estampada uma fotografia de Ling. Não tenho dúvida de que retrata exatamente a fisionomia e o corpo do personagem do meu sonho. Há no livro também uma biografia dele: nasceu em 1833 e faleceu em 1893. Dedicou sua vida a estudos de literaturas asiáticas e africanas. Matou-o uma espécie de lepra, uma doença de pele, que o consumiu em poucos dias, quando visitava o Egito. Nem sequer conseguiu voltar à Europa. O corpo de Ling, inteiramente desfigurado, foi embalsamado e conduzido à sua terra natal.

Renovei correspondência com estudiosos da Literatura Egípcia antiga. Pietro Landini, professor de Literatura em Roma, me enviou uma longa carta. Eu o tinha conhecido em 1994, quando visitei a Universidade onde lecionava. Convidou-me a voltar à Itália. O resto do escrito é dedicado a Gustav Hus e sua obra: nascido em 1764, viveu quase sempre na miséria. Faleceu em 1824, quando de uma epidemia ocorrida em Praga. O professor dedica algumas linhas à importância do biblicista, ao seu livro citado no início deste comentário e a uma coletânea de lendas por ele publicada. Uma dessas lendas teria como enredo uma praga de gafanhotos. Talvez se tratasse da mesma narrativa estudada por Jacob. A curiosidade me levou a solicitar a Pietro um exemplar da coletânea. Ou, se isto lhe custasse muito trabalho, pelo menos uma cópia da lenda. No entanto, não obtive resposta. Pietro faleceu exatamente no dia em que me escreveu a carta.

Como Jacob Grillparzer conhecera a obra de Hus? Reli alguns capítulos de sua História, especialmente o das pragas de insetos ocorridas no Egito Antigo. Como da primeira vez, achei-o interessantíssimo, uma obra de arte literária. Li também uma pequena biografia do historiador alemão: primeiro filho de um casal de judeus, nasceu em 1821, em Bremen, e faleceu em 1881. De que morreu Jacob? De uma febre terrível, possivelmente causada por picadas de insetos. A informação é concisa e vaga. Que insetos teriam matado o historiador?

Dediquei-me, a seguir, a Juan Carnicer e os escritores latinos por ele estudados. Essas leituras me fizeram recordar o meu pobre latim e minha antiga paixão pelo Império Romano. No entanto, Carnicer não me saía da cabeça. Queria saber mais dele, de sua vida e sua morte. O ano de seu nascimento é 1907; o de seu falecimento, 1967. Matou-o uma indigestão. Havia jantado com amigos num restaurante de Barcelona. Segundo os seus amigos e o garçom que os serviu, o prato escolhido por Juan havia sido lagosta. Durante todo o jantar falaram de crustáceos, romanos e latim. Ao se despedirem, ele se queixou de muito sono. Encontraram-no morto, no dia seguinte, as mãos retorcidas, os dedos feito garras, e todo o seu sangue derramado no chão do quarto.

Restava-me Denis Papineau. Folheei revistas de biologia e enciclopédias. Não encontrei qualquer referência a ele. Procurei biólogos brasileiros. Nenhum deles conhecia o francês. Telefonei a um amigo parisiense, Charles Sautet, e falei-lhe de minhas buscas. Ele me prometeu descobrir o paradeiro de seu compatriota. Alguns dias depois, telefonou-me: iria mandar livros que me interessariam muito. Um desses livros é uma biografia de Denis: nascido em 1912, faleceu em 1972. Matou-o um câncer de pele.

Ontem regressei do Cairo. Trouxe livros e fotografias. E mais mistérios. Lembram-se do meu sonho, do homem com quem conversava o tempo todo? Pois lá o encontrei novamente. Apresentou-se a mim como Jacob. Falava alemão, tendo nascido em Praga. Não me falou de literatura nem de história nem da Bíblia. Disse-me ser professor de latim. Perguntei-lhe se conhecia Juan Carnicer. Ele sorriu: “Quem dii oderunt, paedagogum fecerunt”*. Indaguei se a praga dos gafanhotos ocorrida no Egito Antigo havia sido registrada por escritores romanos. Ele conduzia exemplar da revista onde Denis Papineau publicou o estudo sobre os gafanhotos. Fez-me doação dele. E se pôs a citar Horácio: “Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas regunque turres (...)”**. Depois olhou para mim com um olhar de eternidade, e prometeu: “Quando chegares à tua terra, eu te visitarei”. E desapareceu atrás de uma pirâmide.

Eu o espero.
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Notas:
(*) A quem os deuses odeiam, fazem-no professor.
(**) A pálida morte bate com pé igual nas barracas dos pobres e nos palácios dos reis (...)

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira: contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

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