Foi uma infância sem Natal. Até onde posso ver, olhando para trás, na pequena e distante Rio Branco, agarrada às barrancas do rio Acre, numa vida que nem sei mais se foi minha, não havia Natal.
Lembro-me, vagamente, de umas compridas meias de filó que minha mãe enchia com insignificantes brinquedos.
Era o Natal?
Muitas vezes me perguntei depois, sem compreender, porque o menino Jesus não “nascia” também naquelas longínquas paragens. Até que havia uma igrejinha, de S. Sebastião, “toda branquinha com um lírio branco”,com seu bimbalhar festivo de sinos para saudá-lo.
E árvores, muitas e belas árvores! Lá estavam as esguias seringueiras, os farfalhantes castanheiros, as imensas mangueiras, os alegres cajueiros, as resistentes goiabeiras, e ah ! Aquele alto cajazeiro da orla da floresta -todos estenderiam certamente seus galhos para que os enfeitassem com bolas coloridas e velinhas acesas.
Nem faltariam os boizinhos: havia dois, presos ao varal da moenda na engenhoca, dois boizinhos de presépio, que só muito mais tarde reconheceria. E outros que puxavam carros de rodas sanfônicas, e os que mugiam ao entardecer, nas pastagens ou nos currais.
E crianças, crianças, como em toda parte, que se juntariam em torno ao presépio, ou se postariam no barranco, à espera de Papai Noel, quando ele chegasse de “ chata ” ou de “ gaiola ”, que apitaria na curva do rio, lá junto da antiga cadeia...
Mas não havia Natal. Nunca tive Natal. A casa em festa, a árvore iluminada, aquela ânsia incontida, aquela expectativa que empolga a imaginação e que precede os grandes espetáculos.
Não que me queixe da minha infância: eu a tive intensa, viva, rica de acontecimentos. Fui capitão de moleques. De olhos abertos, pés no chão, eu me perdia pelos caminhos ainda molhados pela madrugada, lendo mais que nos livros, nas coisas, nos bichos, nas árvores, no rio.
Manhãzinha fugia de casa, de baladeira na cintura, procurando sanhaçus, eu me perdia pelos varadouros da floresta comendo cacau maduro e ingá. Vadiava o dia inteiro pelas praias, cavando na areia, para encontrar ovos de tartaruga, como centenas de úmidas bolas de pingue-pongue, ou pescava mandis nos igarapés,com minhocas no anzol.
Barafustava-me pelo mercado, misturando açúcar preto com farinha grossa, nas bocas abertas das sacas, rindo à-toa. Subindo nos toros de madeira que os bois arrastavam para serraria; tomava banho de chuva nas barricas debaixo das calhas do telhado ou nos frios igarapés, entre canaranas, alheio ao risco das cobras de picadas mortais.
Cavalguei minha infância, como um menino feliz, tal como fazia com meu carneirinho branco, presente de aniversário, -passeando com companheiros, pela cidade. Quantas vezes, bem que sabia a surra que me esperava, mas valia a pena!
Seguia a banda até a praça, e assistia aos domingos a retreta, trepando no gradil do coreto, deslumbrado sempre com o trombone metálico, cornucópia mágica e brilhante, a borbulhar sons guturais e roufenhos. E um dia, pedi aos presos da Cadeia Pública para gravarem o nome dela na pulseira feita de chifre de boi. Como disse no poema: primeira algema de amor.
Cresci livre, como o mundo ao meu redor, aprendendo igualdade e amor.
Carregava molhos de bagaço de cana, com a molecada, na engenhoca, para ter direito depois de beber garapa, comer rapadura, ou “tirar alfinin”. Subia pelos cajueiros ou pelas altas e copadas mangueiras, a devassar os horizontes, a mexer nos ninhos dos passarinhos, ou a me esconder do professor.
Participava das festas do Grupo Escolar, e representava nas festas de fim-de-ano. Guardei os nomes das professoras: Da. Olga, Da. Risoleta. Eram filhas do Governador que tinha um apelido assustador: Surucucu. E fiz a minha primeira comunhão... duas vezes! Porque na primeira vez, saí de casa, e não cheguei à igreja. Entrei num jogo de futebol, na rua.
Mas, um dia voltamos. Viemos todos para o Rio. Fomos morar em Botafogo, visinhos do velho casarão, onde residiu por quase meio século, o meu avô Tinoco, na antiga rua da Piedade.
E só então aconteceu o Natal. Natal com festa, árvore de brinquedos, mesa farta de doces. Nunca mais reencontrei o gosto daquele bolo de nozes, daqueles canudinhos de côco, daquelas ameixas recheadas com ovo e açúcar cristalizado.
São como o gosto da infância, que nunca mais se recobra, apenas se relembra.
Ainda ouço minhas tias avisando:
- Se você disser aos outros que Papai Noel não existe, seu avô não lhe dá a bicicleta.
Ah, minha bicicleta! Foi meu primeiro e verdadeiro amor. Esperei-a, com uma sofreguidão de Cinderela ao seu príncipe encantado.
Mas só muitos anos mais tarde, me poria a pensar naquele estranho aviso das tias, aos meus irmãos e aos primos menores:
- Escolham o sapato mais velhinho pra colocar na janela. Assim Papai Noel pensará que vocês são pobrezinhos e deixará muitos brinquedos.
Quanta ironia no aviso despropositado.
Sim, fui uma infância sem Natal. Mas não me queixo. Resta-me um consolo: ao menos não me desencantei como tantas crianças, descobrindo um dia a ingênua mentira, ao reconhecerem Papai Noel por trás de sua barba branca, ao vê-lo tirar a encantada máscara, no seu feliz e efêmero carnaval...
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969
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