quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

J. G. de Araujo Jorge (Maio: Um Tema e Duas Variações)


      Maio é um mês lírico. Ficaram em nós, através da herança cultural européia, ressonâncias primaveris.                                                                             

    “Maio: mês das flores”. Que  importa se nossa Primavera começa em setembro? Maio: Mês de Maria, mês das mães: a do céu; as da terra. Todas santas, pois que a maternidade é um estado de graça. Disse isso nesta quadrinha:

“Pureza maior que aquela
da branca e intocada flor,
é a da flor ainda mais bela
que vai dar frutos de amor”.

E nesta outra:

“Tens tanta pureza, tanta
minha mãe... que me enterneço
e chamo sempre de santa
a toda mãe que conheço!”

Os leitores que me distinguem com seu interesse hão de se lembrar de uma outra crônica: “O mais belo tema”. Recolhemos então as mais expressivas poesias sobre a maternidade, assinadas por  Belmiro Braga,  Constâncio Alves,  Hermes Fontes, Mauro Mota,  Mário de Andrade.

Sirvo-me,  agora,  da minha poesia  para a homenagem.  Flores silvestres, mais humildes, em todo caso, poesia, para o mesmo dia de festa. Tenho escrito muito sobre este tema.

Vou destacar, entretanto, apenas dois poemas: duas variações.  Um retirado ao livro “Cantiga do Só”, e outro, ao “Eterno Motivo”.

Começo por recordar aquele dia em que li num s uplemento literário,  a entrevista de um poeta brasileiro, dos mais festejados pela crítica comadresca. Respondia a perguntas sérias, ou superficiais. Uma delas, ingênua até.

O repórter queria saber qual a coisa mais feia do mundo. Pasmem com a resposta do poeta: -Uma mulher grávida. (Nada mais, nada menos).

Fechei  o  jornal.  E me  quedei  por segundos,  incapaz   de qualquer reação.  Mas, surdamente, as palavras começaram a germinar. Era um protesto contra a heresia. Fui à máquina, e escrevi o poema:

MULHER GRÁVIDA

Aquela beleza
aquela que fica para além dos olhos,
que independe de formas
está em teu corpo.

Durante nove meses,
silenciosamente,
Deus trabalha
em tuas entranhas.

Durante nove meses
- laboratório de Deus -
és um milagre acontecendo
em todas as suas fases.

Aquela beleza
aquela que fica para além dos olhos,
que as mãos não modelam
que os homens não sabem,
que as crianças não percebem,
que está em teu corpo.

(Não a beleza externa,
da flor,
mas, a recôndita,
da raiz;
não a beleza do adjetivo,
mas a beleza do verbo.

No começo, era verbo).

Até que, de repente,
Deus te revela em ti como um novo dia!

Então
não és apenas mulher - és símbolo, universo,
estrela...

E ao ver-te (e ao vê-la)
te sigo como o pastor
em direção da alvorada,
me curvo como o lavrador
sobre a terra já semeada,
me ajoelho como o crente
ante a imagem venerada,
me comovo como o Poeta
ao olhar doce da amada.
Prosterno-me
ante a mais simples e inédita
de todas as belezas,
(que importa se infinitas vezes repetida?)
e, humilde e ignorante,
(a alma por um mistério inefável possuída)
feito rei e pastor me maravilho
ouvindo a Vida cantar
no choro de teu filho!

          Ontem, vendo nas revistas, fotografias dramáticas de crianças vietcongues, entre os escombros da cidade arrasada de Huê, e junto a minha mãe, pude repetir mentalmente, em silêncio, como uma oração, os versos do poema

NÃO, MÃE, HOJE NÃO SAIREI...

Não, mãe, hoje não sairei... Quero ficar contigo,
quero ficar sozinho...

Não procures buscar além da minha face,
acharias estranho se te confessasse
minha angústia imensa...
Hoje... quero sentir que não morri,
quero ouvir que me falas, que vives, que está aqui,
quero me convencer da tua presença!

Encontro-me só, debruçado à janela,
daqui a pouco, bem sei, virás me perguntar:
- “Estás doente, meu filho? Com uma noite tão bela
por que não vais passear?”

Não, mãe, hoje não sairei... Quero ficar contigo,
embala-me nos teus braços como em tempos de então...
Não tenho febre, e até tenho dormido bem,
não te preocupes, mãe... não tenho nada, não.

Chegaste, oh! Minha mãe, - e ao ver-te eu murmurei:
Que doce a luz dos teus olhos!
Que suave e belo o seu brilho!
- Nossa Senhora da Paz!

E então me perguntaste:
- “Que crianças são essas no jornal, meu filho?”
- Órfãos, órfãos da guerra, minha mãe, crianças
perdidas, sem esperanças,
crianças tristes sem pais!

Sobre a minha cabeça a tua mão pousaste
e um minuto, em silêncio, os dois ficamos...
Eu sei que ambos pensamos
nos soldados que morrem, nas mães que soluçam,
nas crianças sem abrigo...
Tão bom, oh! Minha mãe, eu sentir-me ao teu lado!
Tão bom, oh! Minha mãe, eu ter-te ainda comigo!

(Eu nunca me encontrei com o espírito estranho e perturbado assim,
- quem sabe se a alma errante de um soldado morto
que longe dos seus caiu, sem carinho e conforto,
não se encarnou em mim?

Por absurdo e inverossímil que esta idéia apareça
senti na tua mão sobre a minha cabeça
o carinho de todas as mães que não conheço
nem nunca me conheceram,
como se pelo seu gesto elas todas se expressassem,
e com ternura afagassem
os filhos que morreram!)

Não, mãe, hoje não sairei... Pensando em todos os órfãos
cujos rostos estão nos clichês dos jornais,
quero ficar contigo, e ter certeza que vives,
ter certeza que vivemos e ainda somos felizes
e ainda estamos em Paz!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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