Escrevi uma vez: um poema, um quadro, uma estátua, uma partitura, existem, têm vida própria, como um organismo, independente do artista que os criou. Na realidade, um poema tem sangue, nervos, coração, voz, alma, fala, comove, tal como ser, tal como o próprio homem. Daí um poeta chileno, Vicente Huidobro ter afirmado:
“Um poema és um poema, tal como uma naranja és uma naranja y no uma manzana.”
A arte é o reverso da grande criação. Deus morre nos homens todos os dias. O artista se eterniza todos dias, em sua obra. O eterno criou o efêmero; o efêmero cria o eterno. Na realidade tudo é eterno e efêmero: o artista, mortal, cria “seres” eternos; Deus eterno, cria seres mortais.
Ocorreram-me estas idéias no dia em que me dispus a realizar as primeiras traduções. Preparava os originais da antologia que publicaria com o título de “Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou”.
Lançaria o primeiro volume, só de sonetos brasileiros, mas queria completar a obra, com um volume de sonetos estrangeiros.
Nossos leitores têm muito poucas oportunidades de conhecer a poesia de outros povos. Raros podem ler o francês, o inglês, ou mesmo o espanhol. Pedi, pois, a escritores, poetas, meus amigos, que me ajudassem. O que vinha encontrando, já realizado no passado, pelos poetas românticos e parnasianos, era pouco, ou de difícil aceitação. As traduções encontram-se eivadas de preciosismos, palavras mortas, expressões em completo desuso.
Desde o momento, entretanto, em que comecei a receber a colaboração de meus amigos, senti-me na obrigação de participar também do livro, não apenas como seu idealizador, mas com alguns trabalhos. Tratava-se de uma experiência inteiramente nova para mim, mas, que não se dissesse depois, que eu estava apenas explorando a produção alheia. E pus mãos a obra.
Convenci-me, então, que traduzir é uma tarefa apaixonante. Não se trata de um simples jogo de palavras.Em sua realização, opera-se uma verdadeira “reencarnação” literária. Não trocamos apenas o corpo do poema -suas palavras-, de um idioma para outro, mas sopramos-lhes um novo espírito, o nosso, ao tentarmos captar a inspiração do original. E cada poema que sentimos, que se comunica conosco, que de alguma forma se identifica com a nossa sensibilidade, transforma-se num desafio, naquele justo momento em que nos dispomos a trocá- lo por um material diferente, para reconstruí-lo num idioma diverso.
Há no trabalho de recriação, todas as alegrias da verdadeira criação.
Surpreende-nos a emoção de suas revelações, quando as vamos descobrindo, assim como um arqueólogo em suas escavações, saboreando os detalhes do seu achado, um a um, a proporção que o vai vislumbrando.
Foi o que se deu, por exemplo, quando me dispus a escalar as alturas rimbausianas, atendendo a um concurso promovido pela página literária de um de nossos matutinos. Tratava-se de traduzir um soneto de Rimbaud; “Lê dormeur du Val”. E a escolha recaira intencionalmente, sobre uma das peças mais difíceis do grande simbolista, não apenas pela sua peculiar semântica poética, mas pela própria complexidade sintática de sua escola literária.
Aceitei o desafio. Estava justamente com a “ mão na massa ”. Mandei a tradução, com um pseudônimo, e afinal para a minha surpresa, “entre mais de mil trabalhos lidos e selecionados”, como acentuou a Comissão julgadora, acabei saindo vencedor.
Eu trabalhava com cuidado. Para me manter, tanto quanto possível, fiel, não apenas à idéia central do soneto, mas à beleza das imagens, e a certos detalhes, indispensáveis à visão do conjunto e ao efeito final. E porque tentei reproduzir o ritmo dos versos, tive que sacrificar alguns elementos clássicos: adotei versos brancos (sem rimas, portanto), e não respeitei a cesura interna dos alexandrinos. No que diz respeito, aliás, a tonicidade, Rimbaud adotou liberdades que eram comuns entre os simbolistas.
“Um poema és um poema, tal como uma naranja és uma naranja y no uma manzana.”
A arte é o reverso da grande criação. Deus morre nos homens todos os dias. O artista se eterniza todos dias, em sua obra. O eterno criou o efêmero; o efêmero cria o eterno. Na realidade tudo é eterno e efêmero: o artista, mortal, cria “seres” eternos; Deus eterno, cria seres mortais.
Ocorreram-me estas idéias no dia em que me dispus a realizar as primeiras traduções. Preparava os originais da antologia que publicaria com o título de “Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou”.
Lançaria o primeiro volume, só de sonetos brasileiros, mas queria completar a obra, com um volume de sonetos estrangeiros.
Nossos leitores têm muito poucas oportunidades de conhecer a poesia de outros povos. Raros podem ler o francês, o inglês, ou mesmo o espanhol. Pedi, pois, a escritores, poetas, meus amigos, que me ajudassem. O que vinha encontrando, já realizado no passado, pelos poetas românticos e parnasianos, era pouco, ou de difícil aceitação. As traduções encontram-se eivadas de preciosismos, palavras mortas, expressões em completo desuso.
Desde o momento, entretanto, em que comecei a receber a colaboração de meus amigos, senti-me na obrigação de participar também do livro, não apenas como seu idealizador, mas com alguns trabalhos. Tratava-se de uma experiência inteiramente nova para mim, mas, que não se dissesse depois, que eu estava apenas explorando a produção alheia. E pus mãos a obra.
Convenci-me, então, que traduzir é uma tarefa apaixonante. Não se trata de um simples jogo de palavras.Em sua realização, opera-se uma verdadeira “reencarnação” literária. Não trocamos apenas o corpo do poema -suas palavras-, de um idioma para outro, mas sopramos-lhes um novo espírito, o nosso, ao tentarmos captar a inspiração do original. E cada poema que sentimos, que se comunica conosco, que de alguma forma se identifica com a nossa sensibilidade, transforma-se num desafio, naquele justo momento em que nos dispomos a trocá- lo por um material diferente, para reconstruí-lo num idioma diverso.
Há no trabalho de recriação, todas as alegrias da verdadeira criação.
Surpreende-nos a emoção de suas revelações, quando as vamos descobrindo, assim como um arqueólogo em suas escavações, saboreando os detalhes do seu achado, um a um, a proporção que o vai vislumbrando.
Foi o que se deu, por exemplo, quando me dispus a escalar as alturas rimbausianas, atendendo a um concurso promovido pela página literária de um de nossos matutinos. Tratava-se de traduzir um soneto de Rimbaud; “Lê dormeur du Val”. E a escolha recaira intencionalmente, sobre uma das peças mais difíceis do grande simbolista, não apenas pela sua peculiar semântica poética, mas pela própria complexidade sintática de sua escola literária.
Aceitei o desafio. Estava justamente com a “ mão na massa ”. Mandei a tradução, com um pseudônimo, e afinal para a minha surpresa, “entre mais de mil trabalhos lidos e selecionados”, como acentuou a Comissão julgadora, acabei saindo vencedor.
Eu trabalhava com cuidado. Para me manter, tanto quanto possível, fiel, não apenas à idéia central do soneto, mas à beleza das imagens, e a certos detalhes, indispensáveis à visão do conjunto e ao efeito final. E porque tentei reproduzir o ritmo dos versos, tive que sacrificar alguns elementos clássicos: adotei versos brancos (sem rimas, portanto), e não respeitei a cesura interna dos alexandrinos. No que diz respeito, aliás, a tonicidade, Rimbaud adotou liberdades que eram comuns entre os simbolistas.
Mas o soneto é uma pequena obra-prima. E Rimbaud, nele, não é apenas o poeta, mas se desdobra no músico e no pintor, pela sonoridade de alguns vocábulos, suas relações dentro dos versos, e pelo colorido do quadro esboçado.
Sim, trata-se de um pequeno quadro, descrito por um passeante, que avista a cena à distância, vai se aproximando encantado, e... o imprevisto final. O leitor o acompanha despreocupado, e participa da emoção do poeta ante o desfecho surpreendente. Eis o “encontro” com
LE DORMEUR DU VAL
C’est un trou de verdure, où chante une rivière
accrochant follement aux herbes des haillons
I’argent, oú le soleil, de la montangne fière
luit. C’est un petit val qui mousse de rayons.
Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue
et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
dort; il est étendu dans l’herbe, sous la nue,
pâle dans son lit vert où la lumière pleut.
Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
sourirait un enfant malade, il fait un somme.
Nature, berce-le chaudement: il a froid!
Les parfuns ne font pas frissonner sa narine;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
tranquile. Il a deux trous rouges au côté droit.
C’est un trou de verdure, où chante une rivière
accrochant follement aux herbes des haillons
I’argent, oú le soleil, de la montangne fière
luit. C’est un petit val qui mousse de rayons.
Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue
et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
dort; il est étendu dans l’herbe, sous la nue,
pâle dans son lit vert où la lumière pleut.
Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
sourirait un enfant malade, il fait un somme.
Nature, berce-le chaudement: il a froid!
Les parfuns ne font pas frissonner sa narine;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
tranquile. Il a deux trous rouges au côté droit.
E a tradução:
O ADORMECIDO DO VALE
É uma clareira verde, onde canta um riacho
prendendo alegremente às ervas seus farrapos
prateados; onde o sol da orgulhosa montanha
brilha. É um verdadeiro a espumar claridades.
Um jovem soldado, a boca aberta, e a cabeça
descoberta a molhar-se na erva fresca, azul,
dorme; está estirado ao chão, a céu aberto,
pálido no seu leito verde, à luz que chora.
Os pés nos lírios roxos, dorme. E sorri como
sorriria uma criança enferma, em sono leve.
Natureza. - aconchega-o bem: êle tem frio!
Os perfumes não mais lhe excitam as narinas;
Dorme ao sol; tem a mão abandonada ao peito.
Dois rubros orifícios sangram-lhe à direita.
É uma clareira verde, onde canta um riacho
prendendo alegremente às ervas seus farrapos
prateados; onde o sol da orgulhosa montanha
brilha. É um verdadeiro a espumar claridades.
Um jovem soldado, a boca aberta, e a cabeça
descoberta a molhar-se na erva fresca, azul,
dorme; está estirado ao chão, a céu aberto,
pálido no seu leito verde, à luz que chora.
Os pés nos lírios roxos, dorme. E sorri como
sorriria uma criança enferma, em sono leve.
Natureza. - aconchega-o bem: êle tem frio!
Os perfumes não mais lhe excitam as narinas;
Dorme ao sol; tem a mão abandonada ao peito.
Dois rubros orifícios sangram-lhe à direita.
Repito: uma tradução é uma estranha e singular “reencarnação” em palavras.
Ninguém discutirá, está claro, que o original é o original, a cópia a cópia, a tradução a tradução. Mas, na medida do possível, quando as figuras de linguagem, as imagens, são reconhecíveis; quando as palavras comunicam, e t êm correspondentes nos dicionários; quando suas combinações fixam símbolos e realidades subjetivas universais, sem projeções esotéricas ou hermetismos pessoais, uma tradução pode ser tentada, de poeta para poeta, com bons resultados. Mas, só entre poetas. Como no caso de uma “transfusão” de sangue, só possível com sangues do mesmo tipo.
Então vale a pena tentar.
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969
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