quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 1



Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras


AO LEITOR 

Este trabalho quer mostrar que os mitos e lendas hileanas não morreram, eles estão aí, escondidos nas sombras das cidades, esperando que a fantasia retorne numa noite qualquer, entre uma falta de energia elétrica e um conserto do aparelho de televisão.

O que apresento aqui, é o fruto de minhas horas de lazer e espero que seja, de algum modo, prazeroso também a você que o tem em mãos. Não é obra de um erudito ou esperto no assunto. Assim, se houver dados ou informações que queira corrigir ou acrescentar, use e abuse das margens deste volume e terei o máximo prazer em lhe dar um outro novo em troca do seu riscado. 

PREFÁCIO

Em outubro de 1987, realizou-se em Belém o VI Congresso Brasileiro de Parapsicologia e Psicotrônica, durante o qual foi apresentado uma espécie de painel de mitos e lendas da Amazônia. Colaborando na organização desse Congresso, coube-me pesquisar o folclore oral e o panteão mítico regional e, assim, nasceu o presente painel do lendário amazônico, porém, numa forma mais singela e resumida; bastante resumida para ser franco! Mas, apesar de nossos esforços, aquele livreto despretensioso não saiu do projeto, mas a idéia ficou se embalando na rede dos meus pensamentos, espicaçando-me de vez em quando, e a cada espicaçada eu comprava um livro sobre o assunto; recolhia material, pesquisava...

E com isso, aquele opúsculo humilde, quase cordel, foi-se lentamente encorpando; cevado pelo gosto à pesquisa iniciada e pelo xodó à cultura popular, ao nosso folclore. Esse xodó, no entanto, vem desde 1969, quando ingressei na equipe do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro.

O IHGNI é uma entidade particular, sem fins lucrativos. Foi fundada e mantida por um pequeno grupo de amigos preocupados em preservar a memória cultural e histórica do município iguaçuano. Desde a sua fundação, no início dos anos 60, teve como seu presidente o Professor, Historiador e Arqueólogo WALDICK PEREIRA, que faleceu em 1984, quando assumiu a presidência outro fundador, o também Historiador, Arqueólogo, Professor e Advogado NEY ALBERTO GONÇALVES DE BARROS.

Pelas mãos desses dois grandes amigos fui levado a compreender, respeitar, valorizar e defender as demonstrações culturais de nosso povo e suas raízes.

A eles, então, devo este trabalho e minha eterna gratidão.

PRIMEIRA PARTE

FOLCLORE


É comum a confusão entre o que é mito e o que é lenda. E visto que os limites entre um e outro termo são praticamente inexistentes, procuramos uma definição adequada que estabelecesse a fronteira entre lenda e mito:
        
LENDA - Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, no qual os fatos                                    históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação                                    poética.

MITO - (Mytho- gr = relato, fábula) Narrativa dos tempos fabulosos ou                              heróicos. Narrativas de significação simbólica, geralmente ligada à                              Cosmogonia e referente a deuses encarnadores das forças da natureza e                             (ou) de aspectos da condição humana. Representação dos fatos ou                             personagens reais, exageradas pela imaginação popular, pela tradição.

Como é fácil de perceber, a tarefa não foi coroada de êxito; ao contrário, acentuaram-se as semelhanças (mais adiante voltaremos a elas), o que nos permite agrupar as duas definições, fundindo-as numa expressão mais apropriada, um estilo de narrativa fantástica que visa transmitir uma lição, um ensinamento; explicar um fenômeno ou orientar uma decisão. Podemos chamá-la de "lendas mitológicas", afluente do vasto rio da cultura popular que denominamos Folclore.

Folclore, literalmente, significa "saber popular" (folk = povo e lore = saber); é um vocábulo de origem alemã criado por Willians J.Thons e surgiu em 1846 na revista The Atheneum (A). Para o eminente e erudito Luís da Câmara Cascudo, folclore "... é a mentalidade móbil e plástica, que torna tradicionais os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato".

O poeta e jornalista paraibano Orlando Tejo1, em seu memorável trabalho sobre o cantador e repentista Zé Limeira, apresenta um conceito para Folclore que parece mais holístico e menos erudito. Diz ele:

“A maquinária que faz surgir hábitos, costumes, alimentação, gestos, superstições, lirismo, sátiras, Indumentárias, tudo aquilo que os grupos sociais participantes assimilam, é folclore."
                                  
“Folclore é a cultura popular, feita normativa pela tradição natural, compreendendo utilitárias técnicas e processos que emocionalmente se ampliam e se valorizam."

O folclore, além do seu valor na ciência das tradições populares, é, como afirma Leite de Vasconcelos2, ”objeto de curiosidade para o povo, porque contém sua obra". E Carlos Brandão3 afirma que  “na cabeça de alguns, folclore é tudo o que o homem do povo faz e reproduz como tradição. [...] Na cabeça de uns, o domínio do que é folclore é tão grande quanto o que é cultura"

Para encerrarmos esse breve capítulo sobre folclore, recorramos a lira poética do grande Patativa do Assaré:4


"Você, caboclo, que cresce,                      
Sem instrução nem saber,
Escuta, mas não conhece
Folclore o que quer dizer,
Folclore é um pilão,
É um bodoque, um pião,
Garanto que também é
Uma grosseira gangalha
Aparelhada de palha
De palmeira catolé.
- Posso lhe afirmar também
Folclore é superstição
O medo que você tem
Do canto do corujão
Folclore é aquele instrumento
Para seu divertimento
Que chamamos berimbau
É também a brincadeira
Ritmada e prazenteira
Chamada Mineiro-pau.

O MITO, A MITOLOGIA E O SÍMBOLO

O obscuro fantasma criado pela poesia mitológica evaporou-se perante a luz brilhante de um conhecimento científico das leis naturais.
(Ernesto Haeckel)

A palavra mitologia não se aplica apenas às invenções imaginadas por um povo para tentar explicar um fato tido como inexplicável ou sobrenatural, mas, também identifica a disciplina que pesquisa e estuda esse fato, ou seja, mitologia é o estudo dos mitos.

Antigamente, apenas a grande novela dos deuses e heróis gregos e romanos, conhecida como Mitologia Clássica, merecia a distinção de verdadeiros mitos. Hoje o conceito de mito sofreu sensível mudança (B), se ampliou, e a palavra adquiriu uma condição de adjetivo pomposo aplicado geralmente às pessoas de grande notoriedade e fama, como é o caso, por exemplo, de Pelé, Charles Chapim, Marilyn Monroe, Picasso e outros.
Nesse "stricto sensu" podemos citar, também, outras conotações modernas, como o chamado "mito econômico", produzido pela febre da borracha, nos lustros de 1900, e que, segundo Eldorfe Moreira5, converteu a Amazônia numa "Califórnia" (sic.), numa alusão à corrida do ouro acontecida naquele estado norte-americano. Na verdade, sob esse prisma, há mitos para todos os gostos. É o que Víctor Jabouílle6 chama de "mitos do cotidiano"; símbolos de outros símbolos (C), resultante da amálgama cultural (moral, religião, filosofia, ciências e artes)  que  contextualiza  o  homem  contemporâneo;  e  também  da  natural e atávica tentativa de compreensão das coisas extraordinárias, das coisas que assumem um caráter fabuloso e que, ao correr do tempo, "criam e fazem durar esta mitificação".

Para Albert Goldman, famoso biógrafo de John Lennon e de Elvis Presley, "os líderes sociais são símbolos de nossa sociedade e não há melhores símbolos do que aqueles que a sociedade elege espontaneamente como seus heróis". Elvis e Lennon, para Mr. Goldman, "são arquétipos de nossa era".

Com ou sem exageros, o senhor Goldman nos mostra que toda sociedade carece de seus mitos porque são seus símbolos, suas mandalas; encarnam suas qualidades e atributos; servem de referencial à própria sociedade que os criou (ou recriou) e, de certa maneira, funcionam como elementos de ligação entre os membros dessa sociedade.

Claro está que mitos são símbolos, e como todo e qualquer símbolo, encerram uma mensagem ou uma informação codificada, inteligível apenas para os que conhecem o código, a decodificação. Alguns são universais, outros restringem-se a uma região, porém, todos são expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma descoberta, um conhecimento ou uma lição. Os mitos - diz-nos Ralph M. Lewis7, ex-imperador da Antiga e Mística Ordem Rosa Cruz (AMORC) -"... São criados espontaneamente ou assimilados. Nascem para suprir uma necessidade criativa individual ou de um grupo". Creio que os mitos constituem ou consolidam a cosmovisão ou cosmoconcepção que cada indivíduo possui.

A função social do mito apresenta-se bem delineada no capítulo 5 do livro "Mitos y Sociedad":8

"Cada sociedad ségun su modo de ser, concibe de una manera peculiar su unidad, y al expresarla toma conciencia de su existencia;... Ni um rey, ni una bandera, ni niguma otra cosa puede ser la encarnación de un grupo como le es el mito."

Ainda no mesmo parágrafo, o autor recorre a Nicholas Corte, um dos muitos autores citados na sua enciclopédica bibliografia, para explicar que "el mito fue el símbolo unificador del grupo social en cuyo seno fue elaborado. Satisfacia en ese grupo la necesidad intelectual de saber y de compreender, y servia de base a la religión. El mito mantenia de esta manera una especie de disciplina social".

O caos que a sociedade atual vivencia pode ser devido ao permanente processo mitogênico e mitofágico que o progresso provoca. O progresso é mitofágico, mas o ser social é mitogênico, porque é através do mito que ele procura estabelecer uma ordem, da mesma maneira que ele se utiliza de uma mandala para promover o equilíbrio em seu caos interior.

Felizmente o progresso, em sua voracidade, não atinge a todos os lugares ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Assim, ainda é possivel encontrar lugares que preservam suas raízes culturais quase intactas, quase inalteradas através dos séculos, apesar de tudo. Há, na Amazônia, regiões onde o progresso não penetrou de todo, onde mal se ouve um rádio, onde a maioria dos moradores não têm acesso a um aparelho de televisão, alguns sequer já viram um. São regiões cada vez mais reduzidas, pois, como previu Marshall McLuhan na década de 60, o mundo está se tornando, cada vez mais, uma "imensa aldeia global"; graças à televisão e à antena parabólica.

Lá, dentro das matas, à beira dos inúmeros lagos, rios, igarapés, furos, paranás, etc., ainda existem aqueles que acreditam nos deuses e demônios, nas histórias que falam de estranhas e incríveis metamorfoses de gente em bicho, histórias que falam de pessoas que possuem o poder de invocar os caruanas, que são as entidades protetoras e auxiliadoras dos pajés e feiticeiros amazônicos; enfim, lá nesses recantos esquecidos pelo consumismo, ainda é possível conversar com aqueles que acreditam no sobrenatural e naquilo que a imaginação cabocla cria.
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Notas:

1 TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1980. Coleção Machado de Assis, 38.0
2 LEITE DE VASCONCELOS apud BITENCOURT, Gastão de. O folclore no Brasil. Salvador: Livraria Progresso, 1987, p. 87.
3 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982~. p. 23. (Coleção Primeiros Passos).
4 PATATIVA DO ASSARÉ. Cante lá que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
                   Patativa do Assaré é o pseudônimo do cearense Antonio Gonçalves da Silva, nascido em Assaré, em 1909.
5 MOREIRA, Eldorfe. Obras completas. v. VI, p. 26.
6 JABOUILLE, Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Cadernos Culturais. Lisboa: Inquérito, Ltda,  1986.

(A)"As suas páginas mostraram amiúde o interesse que toma por tudo quanto chamamos, na Inglaterra, 'Antiguidades Populares', 'Literatura Popular', embora seja mais precisamente um saber popular que uma literatura, e que poderia ser mais propriamente designado com uma boa palavra anglo-saxônica, Folk-lore, o saber tradicional do povo)..." - Trecho da carta de W. J. Thons.

(B) NOTA DESTA EDIÇÃO: Em 1993 o pesquisador lusitano Victor Jabouille reuniu e publicou sob o título “Do Mythos ao Mito, uma introdução à problemática da mitologia” (Ed. Cosmos, Lisboa) algumas palestras que proferiu em 1989. Em 1997 o livro me chega às mãos e verifico, prazeirosamente, que esta minha observação, expressa de forma leiga e simples, tem ressonância no pensamento deste cientista. Em dado trecho da p. 16, lemos: “Hitler é um mito. Esta afirmação tem em conta a construção da imagem do político, a sua personalidade criada e explorada, bem como toda a construção narrativa enquadrante. Eusébio, ontem, ou Futre, hoje, também são por vezes classificados como mitos. Porque? Porque são capazes  de realizar grandes feitos...no futebol. A palavra mito vai-se abastardando, acabando por designar qualquer coisa de extraordinário,  o que parece ir além do razoável, o que não é real, qualquer coisa que não é verdadeira ou que não é lógica, algo exagerado ou, até, impossível. Mas, paralelamente, é nos nossos dias que o mito recupera credibilidade.”

(C) Symballein, gr = comparar

7 LEWIS, Ralph M. Introdução à simbologia. s. l.: AMORC, 1982.
8 SAGRERA, Martin. Mito y sociedad. Barcelona: Labor, 1967, p. 6~7O.

Cosmovisão ou cosmoconcepção é a compreensão que um indivíduo tem a respeito do Universo, do Homem e da História Humana. (N.A.)
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continua...

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