quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 2


Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras

A IMAGINAÇÃO, O SONHO E O MITO

“Se tu podes crer; tudo ó possível ao que crer”'
(Marcos, 9:23)


O homem moderno, civilizado, culto, multas vezes se prende às sensações provocadas por um sonho mau que lhe deixa a desagradável Impressão de que "algo vai acontecer"; e carrega esta impressão por algum tempo, a despeito de sua ciência e cultura. Isso porque, afirmava Jung, os sonhos e devaneios são elementos dinâmicos em nossas vidas, mas, para o indígena primitivo - e mesmo para alguns contemporâneos - o sonho e a realidade muitas vezes se confundiam, de tal forma que o sonho era-lhe uma outra realidade. Mario Mercier [9], animista e profundo conhecedor da magia natural, dá-nos uma visão dos sonhos como um repositório de conhecimentos iniciáticos, distinta daquela transmitida pela psicanálise. Diz ele, por exemplo, que se"... um índio sonha que foi mordido por uma serpente [...] far-se-á tratar como se efetivamente tivesse sido mordido". E diz mais: "O sonho é para eles a origem das liturgias: é o sonho que dá nome às crianças, que designa o xamã, o feiticeiro, o curandeiro [...] cria tabus, ajuda ou condena. O sonho é a voz dos antepassados, dos Espíritos, dos Deuses...

Há um pequeno poema chinês que ao meu ver expressa e sintetiza maravilhosamente a importância dos sonhos:

"Na noite passada, sonhei que era uma borboleta, e agora não sei se sou um homem que sonhou que era uma borboleta, ou talvez uma borboleta que agora está sonhando que é homem."

Não vamos aqui nos preocupar com a fisiologia do sono e dos sonhos; contudo, estenderemo-nos um pouco mais sobre o assunto, para respondermos a questão: seriam os mitos produtos de sonhos e da imaginação?

"Estamos expostos - escreve Erich Fromm[10] - a mentiras racionalizadoras disfarçadas de verdades, absurdos fantasiados de bom senso ou de mais sabedoria do especialista, a conversas hipócritas, à preguiça intelectual ou desonestidade falando em nome da 'honra' ou de 'realismo', conforme o caso."

Isso tudo funciona como um "barulho" - para usarmos uma expressão do próprio Erich Fromm - capaz de embotar nossos sentidos e a própria intuição. Assim, a mente do homem, quando acordado, racionaliza seus julgamentos pelos parâmetros rígidos que seu meio, sua cultura e sua sociedade impõem. O contrário se dá quando ele está adormecido, pois é durante o sono que o homem está isolado desse "barulho" e em comunhão "consigo próprio, com suas próprias impressões e sentimentos".

É inquestionável a importância dos sonhos. Sabe-se que durante o sono as informações e impressões recebidas ao correr do dia são, depois de processadas e classificadas, sedimentadas no núcleo da memória. Experiências realizadas provaram que a pessoa desperta das todas as vezes que começavam a sonhar, ou quando estavam no estado chamado REM (sigla norte-americana para Movimento Rápido dos olhos), perdiam a capacidade de recordar coisas elementares, e até apresentaram distúrbios psicológicos, o que provocou a suspensão de tais experiências.

Sonhar é uma necessidade básica do ser humano, tal como a de criar símbolos. Os sonhos, da mesma forma que os mitos, possuem uma linguagem particular, própria, cuja chave para um claro entendimento já foi esquecida por quase todos. De forma prática, mas sem exageros, podemos afirmar que os mitos são "sonhos" de uma comunidade, de um povo ou de uma civilização.

Os sonhos ajudam a acomodar os conhecimentos absorvidos em vigília, mas também, ajudam a proteger e a preservar a personalidade individual, funcionando como válvulas de escape às repressões, às censuras e desejos irracionais que o indivíduo anela. Esta seria, para Freud, a própria essência dos sonhos. Os mitos, por seu turno, funcionariam de maneira semelhante, para a civilização ou comunidade que os criou. Eles ajudam a armazenar um conhecimento e facilitariam o seu output, como por exemplo, os mitos etiológicos, que tratam da origem e utilidade das diversas coisas.

A sociedade atual pressiona cada vez mais o homem contra as suas aspirações e desejos mais primitivos e irracionais (sexo, ambição, etc.), obrigando-o a encontrar formas de sublimação. Para Erich Fromm, "quanto mais a sociedade evolui e o obriga a reprimir esses impulsos, tanto mais aprende ele a criar formações reativas e sublimações". Tamanha pressão poderia forçar o surgimento de uma nova linguagem simbólica através da qual a sociedade pudesse revelar suas tendências intrínsecas, da mesma forma que os sonhos expressam de maneira cifrada as mensagens do inconsciente? Possivelmente! De fato temos um caldo nutriente favorável à criação de novos mitos, mas é mister que eles possuam a força dos antigos mitos - como o nosso Jurupari ou Curupira - se quisermos que funcionem como disciplinadores sociais ou reestruturadores do nosso caos interno e externo. Porém, o que podemos extrair desse bojo são mitos como os dos "Super-Heróis" Cyborgs (os biônicos) que são a expressão máxima da Cibernética; ou mitos como os dos paranormais dotados de poderes mentais quase ilimitados. Estes estão cada vez mais profusos na cienc fiction e mais próximos da realidade, mas há também mitos como o do Messias ou Enviado, presente em toda civilização ou cultura que se acha ameaçada ou deseja mudanças; ou ainda o dos "Protetores" que esperamos venham em nosso socorro quando uma situação se torna critica. Um exemplo de como uma sociedade oprimida cria mitos aconteceu durante a campanha das "Diretas' Já" e a "mi(s)tificação de Tancredo Neves"[11], mas isso já é outra história.

Retornando ao nosso tema principal, podemos concluir "a priori", que o mito é a resposta a um estimulo e uma necessidade pesíquica, enquanto a imaginação é o caldo nutriente, o meio de cultura onde a semente do mito germina e floresce. Creio que os mitos são, junto com os seus símbolos, a primeira manifestação de um aprendizado científico. Vemos assim que tanto o primitivo quanto o contemporâneo necessitam de ter seus mitos e crenças.

Carlos Suares, apud Martin Sagrera (1967: 83) escreve:

“Subyacente a toda civilización hay una equación mitica, es decir, una constelación de simbolos muy profundos agrupados de manera peculiar, que modelam el inconsciente colectivo.”

Engana-se, pois, quem pensa que o mito é arte da mente fantasiosa e irreal comum ao homem primitivo ou ao homem do mato; como se o homem citadino não fosse dotado de uma Imaginação tanto ou mais criativa. Mas, tanto o homem contemporâneo quanto seu ancestral, na busca ou tentativa de satisfazer suas inquietações interiores, de responder as indagações que os aflige, inventam suas soluções e seus meios para saciar a inquietude e pôr termo ao desassossego Intimo. Sim, inventa! Porém, não inventa o que não pode compreender ou entender. E as religiões podem ser tomadas como um exemplo disso, pois, estão pejadas de símbolos criados pelos primitivos, de imagens arquetipais elaboradas segundo as necessidades psíquicas de seus criadores. Jung bem o sabia quando elaborou sua teoria dos arquétipos, e com autoridade inconteste afirma:

“No le basta al primitivo com ver la salida y posta del Sol, sino que esta observación exterior debe ser al mismo tiempo un acontecer psíquico, esto es, que el curso del Sol debe representar el destino de un dios e de un heróe, el cual en realidad no vive sino en el alma del hombre."[12]

O MITO: CONCEITOS

“O mito é o nada que é tudo”
(Fernando Pessoa)


Como já vimos no início deste volume, o conceito de mito, malgrado nossos esforços, não ficou bem definido; confundindo-se com o de lenda. Neste capítulo vamos retomar essa discussão, com o auxílio de alguns autores, com os quais pretendemos encerrar a questão entre mito e lenda e a existência ou não de diferenças entre eles.

Luís da Câmara Cascudo acredita ter encontrado o elemento de distinção entre lenda e mito no fator tempo-espaço. No seu Dicionário de Folclore Brasileiro[13], o verbete lenda traz o seguinte:

LENDA - "Episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo [...]. Conserva as quatro características do conto popular: Antiguidade, Persistência, Anonimato, Oralidade [...]. Muito confundido com o mito, dele se distingue pela função e confronto. O mito pode ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um termo central com área geográfica mais ampla e sem exigência de fixação no tempo e no espaço."

Se para Câmara Cascudo mito e lenda "se distinguem pela função e confronto", para outros pesquisadores, no entanto, um confronto não esclarece a função. O fundamental no mito é a propriedade "não reflexiva" (André Lalande), isto é, não questiona, não é critico... Aceita-se ou não. Já Victor Jabouille dá-lhe uma definição muito próxima de folclore quando afirma que o mito "é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda a expressão cultural humana [...] é a materialização extremamente complexa do Imaginário humano" (1986:16). Na verdade, mito é um vocábulo de múltiplas aplicações.

O professor e folclorista paraense Ubiratan Rosário14 esclarece que, para Brandão, a lenda “é uma narrativa composta para ser lida: legenda. Distingue da parábola, que é um mito intencionalmente criado. Difere da fábula que é uma narrativa de caráter imaginário que objetiva transmitir uma lição moral, etc.”

Três parágrafos adiante ele acrescenta que “Malinowski disse que os mitos não são nem simples lendas interessantes, nem relatos supostamente históricos. Antes são ‘para o povo em questão a mais alta verdade de uma realidade primitiva’ que proporciona o padrão e o fundamento da vida contemporânea”

Vejamos mais alguns conceitos:

Victor Jabouille (1986: 32):

"Se o logos é a linguagem da demonstração, o mito é a linguagem da imaginação, mesmo a linguagem da criação."

* André Lalande (p. 38):

"Narrativa fabulosa, de origem popular e não reflexiva, na qual os agentes impessoais, na maior parte dos casos as forças da natureza são representadas sob a forma de seres personificados, cujas ações ou aventuras têm um significado simbólico."

* J. G. Frazer (p. 39):

"Compreendo por mito explicações erradas dos fenômenos, quer da vida humana quer da natureza exterior."

* R. Graves & R. Patai (p. 41):

"Os mitos são histórias dramáticas que constituem instrumentos sagrados, quer autorizando a continuação de Instituições, costumes, ritos e crenças antigas na área em que são comuns, quer aprovando alterações."

* M. Eliade (p. 98):

"Por outras palavras, o mito conta como, graças aos actos dos seres sobrenaturais, uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma Instituição. É sempre uma narrativa de uma 'criação' : conta-se como qualquer coisa foi produzida, como começou a ser. O mito não fala senão daquilo que aconteceu realmente, naquilo que se manifestou completamente. As personagens dos mitos são seres sobrenaturais."

Erlch Fromm (1966:174):

"O mito como o sonho, apresenta uma estória desenrolando-se no tempo e no espaço, estória essa que exprime em linguagem simbólica, idéias religiosas e filosóficas, experiências da alma em que reside o verdadeiro significado do mito. Se a gente não logra apreender o significado real do mito, fica em face de uma imagem ingênua, pré-cientffica do mundo e da história e, na melhor das hipóteses, um produto de uma bela imaginação poética, ou então - esta é a atitude do crente ortodoxo - a estória manifesta do mito é verídica, e tem-se de acreditar nela como um relato correto de fatos deveras ocorridos na 'realidade'."
*Apud. JABOUILLE, Victor. Op.

Carlos F. da Costa [15] (p 16):

"Um mito é um conjunto de símbolos que procuram falar daquilo que não se pode falar, não por ser um ser um segredo misterioso e proibido aos não-iniciados, mas por estar situado radicalmente fora da linguagem. Mito (gr. myein silenciar)

Concluímos que lenda e mito não passam de símbolos distintos para identificar a mesma coisa; enfim, são sinônimos, só que o termo lenda possui uma conotação poética.

Mario Mercier (1980: 52), transcendendo do significado cultural do mito, adverte:

"É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá reencontrar sua verdadeira identidade, sua identidade mágica. Para isso, deverá sair de sua cristalização intelectual e ultrapassar a concepção do símbolo que, embora energético, não deixa de ser bastante abstrato."

O mito "lato sensu" pode ser entendido como alegorias empregadas pelos antigos para revelarem ou perpetuarem verdades e conhecimentos; expressar conceitos morais, filosóficos e religiosos; justificar princípios; servir de referência histórica e geográfica, etc. Os mitos são projeções dos fatos reais, verdadeiramente acontecidos, aos quais os primeiros cronistas buscaram registrar com suas limitadas expressões e que, com a tradição oral, foram ganhando novas cores, inflacionando-se pelo calor da narrativa e pela imaginação do narrador; até que restou apenas uma "imagem" da verdade, refletida num espelho embaciado.

"Não devemos esquecer - escrevem Yolanda, Helda e Nobue16 -que todas as palavras são logogramas, isto é, símbolos construídos partindo-se de símbolos básicos...", dai que escrever, falar, fazer um relato ou contar uma história, é tentar descrever símbolos utilizando-se de outros símbolos. Numa forma mais simples equivale a dizer que "quem conta um conto aumenta um ponto", principalmente quando o conto é sobre a Amazônia. Já em 1923, Alfredo Ladislau [17] concluía que:

"... de mistura com essa névoa subtilíssima das lendas, que anda fluctuando na penumbra das florestas virgens, o itinerante passageiro pressente um balbuciar de histórias fantásticas, que o amedrontam. E será esse próprio forasteiro que propagará mais tarde, fora da Amazônia, o abuso das superstições, cuja teia finíssima ele mesmo ajudou a tecer inconscientemente."

Para concluirmos esse capítulo, tomemos emprestado a E. von Dâniken [18], o modelo que ele criou para ilustrar a sua tese de que o homem, na tentativa de explicar o que não compreende, cria mitos:

"Na selva africana desce, pela primeira vez, um helicóptero. Nenhum indígena jamais viu tal máquina. Com enorme estrondo aterrisa o helicóptero numa clareira. Pilotos em uniformes de campanha, com capacetes e metralhadoras saltam dele. O selvagem, em sua tanga, estaca tonto e abobadado, ante essa coisa que desceu do céu, e ante os "deuses" seus desconhecidos. Depois de algum tempo, o helicóptero eleva-se de novo e desaparece na atmosfera."

Deixamos à imaginação do leitor o desenrolar dessa aventura e a consequente narrativa que, por certo, o nativo faria quando de regresso à sua tribo.
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Notas
9 MERCIER, Mario. O mundo mágico dos sonhos. s. 1.: Pensamento, 1980, p. 48.
10 FROMM, Erich. A Linguagem Esquecida: uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos de fadas e mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
11 ver MICELI, Paulo. O mito do her6i nacional. s. l.: Contexto, 1988.
12 JUNG, Kar G. Arquétipos e Inconsciente Colectivo. Buenos Aires: Paidos, 1970, p. 20.
13 CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Brasília: INL/MEC, 72.
14 ROSÁRIO, Ubiratan. Op. Cit. p.45.
15 COSTA, Carlos F. da. Manual Prático de numerologia através do taró. Sao Paulo:Traço Editora, 1990.
16 Yolanda, Helda e Nobue. Ritos dos índios brasileiros (Xinguano e Cadiwéu). (textos). São Paulo: EBRAESP, 1975, p. 25.
17 LADISLAU, Alfredo. Terra ímmatura. Belém: J. B. dos Santos e da., 1923.
(N. A.) Terra Imatura é uma denominação literária para igapós.
18 DANIKEN, Erich von. Eram os deuses astronautas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984, p.79.

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Continua

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