A cigarra estava cantando num galho seco, perto dum formigueiro. Ao aproximar-se da árvore o senhor de La Fontaine parou.
— Gosto do canto das cigarras — disse ele. — Dá-me idéia de bom tempo, sol quente, verão. Este inseto é um pouco boêmio como em geral todos os cantores.
— Há muitas cigarras e enormes no sítio de vovó – disse Pedrinho. — Às vezes cantam até rebentar.
— Morrem cantando, como os cisnes — confirmou o sábio. – Já escrevi uma fábula sobre a cigarra e a formiga, que é outro inseto muito curioso, símbolo do trabalho incessante. Aqui temos um formigueiro onde vocês podem observá-las.
Todos se abaixaram em redor do formigueiro.
— Não param nunca, sempre ocupadas nos trabalhos caseiros — prosseguiu. — Cortam folhas, picam-nas em pedacinhos e guardam nas em perfeitos celeiros para que fermentem. Nessas folhas um cogumelozinho se desenvolve, com o qual se alimentam. São insetos de alta inteligência. A muitos respeitos a formiga está mais adiantada que nós, homens. Há mais ordem e governo na sociedade delas. São mais felizes.
— Felizes? — exclamou Emília com carinha incrédula. — Bem se vê que o senhor nunca sentiu o horrível cheiro de bebida que dona Benta costuma dar a elas lá no sítio, um tal formicida...
O fabulista riu-se com vontade e, voltando-se para Narizinho, disse que a boneca tinha uma “estranha e viva personalidade”. A menina não entendeu muito bem, mas começou dali por diante a olhar para Emília com mais respeito. Se a boneca tinha uma “estranha personalidade”, então tinha alguma coisa, não sendo simplesmente a boba, como lhe costumava chamar.
Nisto a fábula da cigarra e da formiga principiou de novo.
— Psiu. — fez o fabulista. — Silêncio, agora. Vamos ver se é mesmo como eu escrevi.
Todos se calaram, imóveis em roda do formigueiro. A célebre cigarra tuberculosa, que tossia, tossia, tossia, vinha chegando, embrulhada no seu xalinho esfarrapado. Vinha de rastos, como quem está nas últimas, a morrer de fome e frio. Parando à porta do formigueiro, bateu toc, toc, toc.
— Como ela bate direitinho! — murmurou Emília. — Bate tal qual uma gente.
A cigarra bateu e ficou esperando, toda encolhida. Instantes depois apareceu uma formiga coroca, sem dentes, com ares de ter mais de mil anos. Era a porteira da casa e rabugenta como ela só.
Abriu a porta e disse, na sua voz rouca dos séculos:
— Que é que a senhora deseja?
Vendo tanta cara feia, a pobre cigarra quase desmaiou de medo, e foi tomada de outro acesso de tosse. Nem podia falar. Em vez de sentir piedade, a formiga fechou ainda mais a carranca e disse:
— Errou de porta, minha cara. Isto aqui não é asilo de inválidos. Se está doente, vá para a casa do seu sogro.
— Perdão — disse a triste mendiga. — É que não tenho casa, nem sogro, e estou morrendo de fome e frio. Se a senhora não me dá uma folhinha para comer e um cantinho para me abrigar, certo que morrerei à míngua.
— É o melhor que tem a fazer — respondeu a formiga. — Que fazia no bom tempo?
— Eu? Eu cantava, senhora formiga. Sou cantadeira de nascença.
— Hum, já sei! Era a senhora quem cantava em cima dessa árvore o dia inteiro. Bem me lembro disso.
A cigarra sorriu, certa de que a lembrança das suas passadas cantorias tinha amolecido o coração da formiga. Ah, ela não imaginava o que era o coração duma formiga coroca de mais de mil anos!
— Bem me lembro — continuou a formiga. — Cantava de nos pôr doidas aqui dentro. Muita dor de cabeça tive por causa da sua cantoria, sabe? Agora está tísica e não canta mais, não é isso? Pois dance! Cantou enquanto era moça e sadia? Pois dance agora que está velha e doente, sua vagabunda!
E — plaf! deu-lhe com a porta no nariz. A triste cigarra, com o nariz esborrachado, ia pendendo para trás para morrer, quando Emília a susteve.
— Não morra, boba! Não dê esse gosto para aquela malvada. Está com fome? Vou já trazer um montinho de folhas. Está com frio? Vou já acender uma fogueirinha. Em vez de morrer, feito uma idiota, ajude-me a preparar uma boa forra contra a formiga.
A cigarra comeu as folhinhas que a boneca lhe trouxe, aqueceu o corpo na fogueirinha que a boneca lhe acendeu. Sarou da tísica imediatamente e quis começar a cantar.
— Não ainda — disse Emília. — Primeiro temos de ajustar contas com a formiga. Depois você canta até rebentar.
O senhor de La Fontaine, curioso de ver qual seria a vingança da boneca, pôs-se de lado, a observar disfarçadamente. Vendo isso, Narizinho não teve coragem de ralhar com Emília e deixou-a em paz. Emília mandou que a cigarra batesse na porta outra vez. A cigarra obedeceu, batendo três toc-tocs.
Veio a formiga espiar quem era. Dando com a mesma cigarra, disse-lhe um grande desaforo e já lhe ia batendo com a porta no nariz outra vez, quando Emília a agarrou pela perna seca e a puxou para fora.
— Chegou tua vez, malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca!
E, voltando-se para a cigarra:
— Amor com amor se paga. Eu seguro a bruxa e você malha com a porta no nariz dela. Vamos!
A cigarra cumpriu a ordem, e tantas portadas arrumou no nariz da formiga, que a pobre acabou pedindo socorro ao senhor de La Fontaine, seu conhecido de longo tempo.
O fabulista interveio.
— Basta, bonequinha! — disse ele. — A formiga já sofreu a sova merecida. Pare, se não ela morre e estraga-me a fábula.
Emília soltou a formiga surrada, que lá se foi para o fundo do formigueiro com o nariz deste tamanho e mais tonta do que se tivesse bebido um cálice de formicida.
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Continua… Pena de Papagaio – VII - Esopo
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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