sábado, 4 de fevereiro de 2012

Guerra Junqueiro (O Valente Soldado de Chumbo)


Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vede-os: que atitude marcial, de espingarda ao ombro, olhar fixo, e ricos uniformes azuis e vermelhos! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando se levantou a tampa da caixa em que eles estavam, foi este grito:

«Olha, soldados de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas de alegria. Tinham-lhos dado de presente no dia dos anos e o seu divertimento era formá-los sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se pareciam maravilhosamente uns com os outros, exceto um, que tinha uma perna de menos, porque o tinham deitado na forma em último lugar e já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não se firmavam melhor nas duas pernas do que ele na sua única, e é este o que precisamente nos interessa.

Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindíssimo castelo de papel. Pelas suas pequeninas janelas via-se-lhe o interior dos salões. À volta era circundado de uma floresta em miniatura, que se refletia poeticamente num pedaço de espelho que fingia um lago, onde nadavam pequeninos cisnes de cera. Tudo isto era encantador, mas não tanto como uma menina que estava à porta, e que era também de papel, vestia um lindo vestido de cassa, apertado com um cinto de fivela anil. A menina apresentava os braços arqueados, porque era dançarina, e uma pernita levantada a tal altura, que o soldado de chumbo a não podia ver, e imaginou que, como ele, não teria senão uma perna.

– Ali está a mulher que me convém, pensou, mas é uma grande fidalga. Mora num palácio, eu numa caixa em companhia de vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar para ela. No entanto preciso conhecê-la.

Deitou-se atrás de uma caixa de tabaco, e dali podia ver à sua vontade a elegante dançarina, que estava sempre num pé único, sem perder o equilíbrio.

À noite todos os outros soldados foram metidos na caixa, e as pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto, começaram a divertir-se, fizeram guerras, e afinal deram um baile. Os soldados de chumbo mexiam-se e remexiam-se na caixa, porque queriam lá ir; mas como haviam eles de tiram a tampa? O quebra-nozes começou a dar cabriolas e saltos mortais, o lápis traçou mil arabescos fantásticos numa lousa, enfim o barulho tornou-se tal que o canário acordou, e pôs-se a cantar. Os únicos que estavam quietos eram o soldado de chumbo e a dançarinhazinha, ela no bico do pé, e ele numa perna só a espreitá-la.

Deu meia-noite, e zás! a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé, saiu um feiticeirozinho preto. Era um brinquedo de surpresa.

– Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sítio.

Mas o soldado fez que não ouvia.

– Espera até amanhã e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.

No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado de chumbo à janela, mas de repente, ou por influência do feiticeiro ou por causa do vento, caiu à rua. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a barretina, e com a baioneta enterrada entre duas lajes.

A criada e o rapazito foram lá abaixo procurá-lo, mas estiveram quase a esmagá-lo, sem darem por ele.

Se o soldado tivesse gritado: «Cautela!» tê-lo-iam achado, mas ele julgou que seria desonrar a farda. A chuva começou a cair em torrentes, e tornou-se num verdadeiro dilúvio. Depois do aguaceiro passaram dois garotos.

– Olá! disse um deles, um soldado de chumbo por aqui! vamos fazê-lo navegar.

Construíram um barco de um bocado de jornal velho, meteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. Os dois garotos corriam ao lado, e com gritos de prazer. Que ondas! Santo Deus! que força de corrente! Tinha chovido tanto! O barco jogava de uma maneira horrorosa, mas o soldado de chumbo conservava-se impassível, com os olhos fixos e a espingarda ao ombro.

De repente o barco foi levado para um cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos soldados.

– Onde irei eu parar? pensou ele. Foi o tratante do feiticeiro quem me meteu nestes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquela linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão fosse duas vezes maior.

Dali a pouco apresentou-se um enorme rato de água; era um habitante do cano.

– Venha o teu passaporte.

Mas o soldado de chumbo não disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes e gritando às palhas e aos cavacos: – Façam-no parar, façam-no parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.

Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do dia e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz de assustar o mais valente. Havia na extremidade do cano uma queda de água tão perigosa para ele, como é para nós uma catarata.

Aproximava-se dela cada vez mais, sem poder suster-se, com uma rapidez vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda de água e o pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se atreveria dizer que o tinha visto fechar os olhos com o medo.

O barco depois de ter andado à roda durante muito tempo, encheu-se de água, e estava a ponto de naufragar. A água já chegava ao pescoço do soldado e o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a água passou por cima da cabeça do nosso herói. Nesse momento supremo, pensou na gentil dançarinhazinha, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:

– Soldado: o perigo é enorme, a morte espera-te.

O papel rasgou-se, e o soldado passou através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.

Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E além disso, que talas em que ele estava metido! Mas, sempre intrépido, o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao ombro.

O peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de meter medo, até que enfim parou, e pareceu que o atravessava um relâmpago. Apareceu a luz do dia, e alguém exclamou:

– Olha um soldado de chumbo!

O peixe tinha sido pescado, exposto na praça, vendido e levado para a cozinha, e a cozinheira tinha-o aberto com uma enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda a gente quis admirar esse homem extraordinário, que tinha viajado na barriga de um peixe. No entretanto o soldado não se sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali – tanto é verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo – achou-se na mesma sala, de cuja janela tinha caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio e a adorável dançarina sempre de perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão comovido, que de boa vontade teria derramado lágrimas de chumbo, mas não era decente. Olhou para ela, ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra um ao outro.

De repente um dos pequenos pegou nele e, sem motivo algum, deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da caixa do rapé.

O soldado de chumbo lá estava perfilado, alumiado por um clarão sinistro, e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se pudesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também olhava para ele. Sentia-se derreter, mas, sempre intrépido, conservava a espingarda ao ombro. De repente abriu-se uma porta, o vento arremessou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que apareceu no meio das labaredas. O soldado de chumbo, já não era mais que uma massa informe.

No dia seguinte, quando a criada veio tirar a cinza, encontrou um objeto que tinha o feitio de um pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina era a fivela do cinto azul, que o lume tinha enegrecido.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

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