O leão havia reunido toda a bicharia a fim de resolver sobre a terrível peste que estava arrasando o reino. Antes de decidirem qualquer coisa, os reis costumam consultar os sábios, os astrólogos, os bobos da corte e outras notabilidades do reino. Assim também fazia o Leão da Fábula. O primeiro consultado foi um macaco de barbas brancas, sabido como ele só.
— Qual a sua opinião, senhor mono, sobre a peste que nos desgraça?
O macaco alisou a barbaça, tossiu três vezes e disse:
— Saiba Vossa Majestade que esta peste é um castigo do céu. Ofendemos as majestades celestes, foi isso. Agora, o remédio é aplacarmos a cólera dos deuses com o sacrifício de um de nós.
— Muito bem — disse o leão. — Mas sacrifício do qual?
— Do mais carregado de crimes — respondeu o macaco.
O leão fechou os olhos e pôs-se a meditar. Recordou sua vida passada, suas injustiças, a crueldade com que matara tantas zebras, gazelas, veados, carneiros e até homens. E resolveu fazer um bonito: oferecer-se para o sacrifício como o mais carregado de crimes.
Nenhum animal teria a coragem de concordar com ele, de modo que ele fazia o bonito sem correr o menor perigo. Assim procedem os reis que desejam ficar famosos na história.
— Amigos — disse o leão com cara contrita. — Nenhuma dúvida me resta: quem deve ser sacrificado sou eu. Ninguém cometeu mais crimes do que o vosso rei, ninguém matou maior número de veados, carneiros, zebras e homens do que eu. Devo ser o escolhido para o sacrifício. Que acham?
Disse e correu os olhos pela corte, com ar de quem está pensando lá por dentro: “Quero só ver quem tem o topete de achar que sim”. Todos estavam convencidos de que de fato era o leão o maior criminoso da floresta, mas nenhum tinha a coragem de o dizer em voz alta. A raposa, então, adiantou-se e fez um discursinho.
— Bobagens, Majestade! — disse ela. — Se há no mundo um ente limpo de crimes, certo que é o nosso bondoso rei leão. Matou veados e carneiros e zebras e homens? Oh, isso em vez de crime constitui ato de nobre piedade. Para que servem tais bichos? Que é um veado, uma zebra ou um carneiro ou um homem, na ordem das coisas? Perfeitas imundícies, de modo que o que Vossa Majestade fez foi apenas uma obra de limpeza. Ninguém tome minhas palavras como lisonja, tenho horror a isso, mas Vossa Majestade, na minha opinião, em vez de ser um criminoso é um santo!
Uma chuva de palmas cobriu o discurso da raposa. O leão lambeu a bigodeira, de gosto, e agradeceu à raposa com um gesto cordial. Em seguida levantou-se o tigre e disse o mesmo que havia dito o leão. Acusou-se de grandes crimes e declarou que o merecedor do castigo só podia ser ele, não outro. A raposa fez novo discurso, ainda mais bonito que o primeiro, provando que o santo número dois da floresta era justamente o tigre. A cena repetiu-se com todos os animais de músculos fortes e dentuça afiada. Todos viraram santos.
Por fim chegou a vez do burro.
— Pondo a mão na consciência, não me sinto culpado de coisa nenhuma — declarou a burrísima criatura. Só como capim e outras ervas. Nunca matei um mosquito. Se mutuca me morde, o mais que faço é espantá-la com o espanador da cauda. Nunca furtei. Nunca tomei a mulher do próximo. Nem coices dou, porque sofro duma inchação nos pés, muito dolorosa. A consciência de nada me acusa.
Assim que o burro concluiu, todos os animais entreolharam-se.
Era muito grave aquela sua confissão! A raposa adiantou-se e falou, como intérprete do pensamento geral.
— Eis o grande criminoso, Majestade! — disse ela apontando para o pobre burro. — É por causa dele que o céu nos mandou esta epidemia. Ele tem que ser sacrificado. Não dá coices, confessou, “porque tem os pés inchados”. Quer dizer que se não tivesse os pés inchados andaria pelo mundo a distribuir coices como quem distribui cocadas. Morra o miserável burro coiceiro!
— Morra! Morra! — gritaram mil vozes. Vendo aquilo, o rei leão também indignou-se.
— Miserável burro de carroça! — berrou. — É por tua causa, então, que o meu reino está levando a breca? Pois te condeno a ser imediatamente estraçalhado pelo carrasco da corte. Vamos, tigre, cumpre a sentença do teu rei!...
Os olhos do tigre-carrasco brilharam. Estraçalhar animais era o seu grande prazer. Lambeu os beiços e armou o bote para lançar-se contra o trêmulo burro. Mas ficou no bote. Uma enorme pedra lhe caiu do teto da caverna bem no alto da cabeça — plaf! Grande berreiro!
Correria! Desmaios das damas. Quem é? Quem foi? Fora obra do Peninha.
— Bravos! — exclamaram os meninos. — Isso é que se chama boa pontaria.
— Fujamos enquanto é tempo — gritou Peninha. — O leão já nos farejou aqui e está lambendo os beiços.
Não foi preciso mais. Os meninos botaram-se pela montanha abaixo.
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Continua… Pena de Papagaio – IX - Os prisioneiros
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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