domingo, 29 de janeiro de 2012

Guerra Junqueiro (O Fato Novo do Sultão)


Era uma vez um sultão, que despendia em vestuário todo o seu rendimento.

Quando passava revista ao exército, quando ia aos passeios ou ao teatro, não tinha outro fim senão mostrar os seus fatos novos. Mudava de traje a todos os instantes, e como se diz de um rei: Está no conselho, dizia-se dele: está-se a vestir. A capital do seu reino era uma cidade muito alegre, graças à quantidade de estrangeiros que por ali passavam; mas chegaram lá um dia dois larápios, que, dando-se por tecelões, disseram que sabiam fabricar o estofo mais rico que havia no mundo. Não eram só extraordinariamente ricos os desenhos e as cores, mas além disso, os vestuários, feitos com esse estofo, possuíam uma qualidade maravilhosa: tornavam-se invisíveis para os idiotas e para todos aqueles que não exercessem bem o seu emprego.

– São vestuários impagáveis, disse consigo o sultão; graças a eles, saberei distinguir os inteligentes dos tolos, e reconhecer a capacidade dos ministros. Preciso desse estufo.

E mandou em seguida adiantar aos dois charlatães uma quantia avultada, para. que pudessem começar os trabalhos imediatamente.

Os homens levantaram com efeito dois teares, e fingiram que trabalhavam, apesar de não haver absolutamente nada nas lançadeiras.

Requisitavam seda e ouro fino a todo o instante; mas guardavam tudo isto muito bem guardado, trabalhando até à meia-noite com os teares vazios.

– Necessito saber se a obra vai adiantada.

Mas tremia de medo, lembrando-se de que o estofo não podia ser visto pelos idiotas. E por mais que confiasse na sua inteligência, achou em todo o caso prudente mandar alguém adiante.

Todos os habitantes da cidade conheciam a propriedade maravilhosa do estofo, e ardiam em desejos de verificar se seria exato.

– Vou mandar aos tecelões o meu velho ministro, pensou o sultão; tem um grande talento; ninguém melhor do que ele pode avaliar o estofo.

Entrou o honrado ministro na sala em que os dois impostores trabalhavam com os teares vazios.

– Meu Deus! disse ele para si arregalando os olhos, não vejo absolutamente nada! Mas no entanto calou-se. Os dois tecelões convidaram-no a aproximar-se, pedindo-lhe a opinião sobre os desenhos e as cores. Mostraram-lhe tudo, e o velho ministro olhava, olhava, mas não via nada, pela razão simplíssima de nada lá existir...

– Meu Deus! pensou ele, serei realmente estúpido? É necessário que ninguém o saiba!... Ora esta! pois serei tolo realmente! Mas lá confessar que não vejo nada, isso é que eu não confesso.

– Então que lhe parece? perguntou um dos tecelões.

– Encantador, admirável! respondeu o ministro, pondo os óculos. Este desenho... estas cores.., magnífico!... Direi ao sultão que fiquei completamente satisfeito.

– Muito agradecido, muito agradecido, disseram os tecelões, e mostraram-lhe de novo as cores e desenhos imaginários, fazendo-lhe deles uma descrição minuciosa. O ministro ouviu atentamente, para ir depois repetir tudo ao sultão.

Os impostores requisitavam cada vez mais seda, mais prata, e mais ouro; precisavam-se quantidades enormes para este tecido. Metiam tudo no bolso, é claro; o tear continuava vazio, e apesar disso, trabalhavam sempre.

Passado algum tempo, mandou o sultão um novo funcionário, homem honrado, a examinar o estofo, e ver quando estaria pronto. Aconteceu a este enviado o que tinha acontecido ao ministro: olhava, olhava e não via nada.

– Não acha um tecido admirável? perguntaram os tratantes, mostrando o magnífico desenho e as belas cores, que tinham apenas o inconveniente de não existir.

– Mas que diabo! Eu não sou tolo! dizia o homem consigo. Pois não serei eu capaz de desempenhar o meu lugar? É esquisito! mas deixá-lo, não o deixo eu.

Em seguida elogiou o estofo, significando-lhes toda a sua admiração pelo desenho e o bem combinado das cores.

– É de uma magnificência incomparável, disse ele ao sultão.

E toda a cidade começou a falar desse tecido extraordinário.

Enfim, o próprio sultão quis vê-lo enquanto estava no tear. Com um grande acompanhamento de pessoas distintas, entre as quais se contavam os dois honrados magnatas, dirigiu-se para as oficinas, em que os dois velhacos teciam continuamente, mas sem fios de seda, nem de ouro, nem de espécie alguma.

– Não acha magnífico? disseram os dois honrados funcionários. O desenho e as cores são dignos de Vossa Alteza.

E apontaram para o tear vazio, como se as outras pessoas que ali estavam pudessem ver alguma coisa.

– Que é isto! disse consigo mesmo o sultão, não vejo nada! É horrível! serei eu tolo, incapaz de governar os meus estados? Que desgraça que me acontece! Depois, de repente, exclamou: É magnífico! Testemunho-vos a minha real satisfação.

E meneou a cabeça com um ar prazenteiro, e olhou para o tear, sem se atrever a declarar a verdade, Todas as pessoas do séquito olharam do mesmo modo, uns atrás dos outros, mas sem verem coisa alguma, e no entanto repetiam como o sultão:

«É magnífico!» Deram-lhe de conselho que se apresentasse com o fato novo no dia da grande procissão. «É magnífico! é encantador! é admirável!» exclamavam todas as bocas; e a satisfação era geral.

Os dois impostores foram condecorados e receberam o título de fidalgos tecelões.

Na véspera do dia da procissão passaram a noite em claro, trabalhando à luz de dezasseis velas. Finalmente fingiram tirar o estofo do tear, cortaram-no com umas grandes tesouras, coseram-no com uma agulha sem fio, e declaram, ao cabo, que estava o vestuário concluído.

O sultão com os seus ajudantes de campo foi examiná-lo, e os impostores levantando um braço, como para sustentar alguma coisa, disseram:

– Eis as calças, eis a casaca, eis o manto. Leve como uma teia de aranha; é a principal virtude deste tecido.

– Decerto, respondiam os ajudantes de campo, sem ver coisa alguma.

– Se Vossa Alteza se dignasse despir-se, disseram os larápios, provar-lhe-íamos o fato diante do espelho.

O sultão despiu-se, e os tratantes fingiram apresentar-lhe as calças, depois a casaca, depois o manto. O sultão tudo era voltar-se defronte do espelho.

– Como lhe fica bem! que talhe elegante! exclamaram todos os cortesãos. Que desenho! que cores! que vestuário incomparável!

Nisto entrou o grão-mestre de cerimónias:

– Está à porta o dossel sob o qual Vossa Alteza deve assistir à procissão, disse ele.

– Bom! estou pronto, respondeu o sultão. Parece-me que não vou mal.

E voltou-se ainda uma vez diante do espelho, para ver bem o efeito do seu esplendor. Os camaristas que deviam levar a cauda do manto, não querendo confessar que não viam absolutamente nada, fingiam arregaçá-la.

É, enquanto o sultão caminhava altivo sob um dossel deslumbrante, toda a gente na rua e às janelas exclamava: «Que vestuário magnífico! Que cauda tão graciosa! Que talhe elegante!» Ninguém queria dar a perceber que não via nada, porque isso equivalia a confessar que era tolo. Nunca os fatos do sultão tinham sido tão admirados.

– Mas parece que vai em cuecas, observou um pequerrucho, ao colo do pai.

– É a voz da inocência, disse o pai.

– Há ali uma criança que diz que o sultão vai em cuecas.

«Vai em cuecas! vai em cuecas!» exclamou o povo finalmente.

O sultão ficou muito aflito, porque lhe pareceu que realmente era verdade. Entretanto tomou a enérgica resolução de ir até ao fim e os camaristas submissos continuaram a levar com o máximo respeito a cauda imaginária.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

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