Pedrinho estava numa terrível aflição. O Visconde havia desaparecido misteriosamente e o público não cessava de reclamar o palhaço. O menino não podia explicar a si próprio o estranho acontecimento. Deixara o Visconde, já vestido, num canto dos bastidores, prontinho para entrar em cena logo que Emília acabasse de correr — e não havia meio de descobrir o Visconde. Isso o obrigou a alterar a ordem do espetáculo.
— Ande, Faz-de-conta — disse ele ao boneco — vá engolindo espadas enquanto eu campeio o Visconde — e empurrou-o para dentro do picadeiro.
Faz-de-conta entrou com um feixe de espadas debaixo de um braço e uma lata de brasa debaixo do outro. Foi colocar-se bem no meio do picadeiro, num tapetinho que havia. E começou a engolir espadas. Fez o serviço tão bem feito que o público esqueceu a feiúra dele e rompeu em palmas. Depois de engolida a última espada, começou a comer fogo, e glut, glut, glut, deu conta de todas as brasas da lata. Ao comer a última, porém, esbarrou nela com a ponta do nariz (que, como todos sabem, era formado por um pau de fósforo) e pegou fogo.
Foi uma sensação! O público desandou num berreiro.
— Incêndio de nariz! — gritava o Polegar. — Chamem o corpo de bombeiros!
Aladim, Ali Babá, o Gato-de-Botas e outros pularam no picadeiro para socorrer o incendiado. Mas foi inútil. O nariz de Faz-de-conta já estava totalmente destruído, só restando um toquinho de carvão... O curioso é que o boneco melhorou bastante de aspecto.
Ficou bem menos feio, porque sua feiúra era causada principalmente por aquele horrível nariz de fósforo que tia Nastácia lhe havia espetado na cara. Faz-de-conta foi levado para dentro e o público, chefiado pelo Pequeno Polegar, continuou a pedir palhaço. E como Pedrinho não conseguisse encontrar o Visconde, teve de aparecer com explicações.
— Respeitável público! — disse ele. — Uma grande desgraça aconteceu. O nosso famoso palhaço Sabugueira acaba de desaparecer misteriosamente. Com certeza algum malvado o raptou, de modo que não há mais palhaço. Também não há mais pantomima. A grande estrela Emília, que desempenhava o papel principal, está emburrada e recusa-se a representar. Em vista desses contratempos vou terminar o espetáculo com a SURPRESA!
Uns espectadores bateram palmas; outros assobiaram e o Gato Félix gritou:
— Cocadas, ao menos!
Nisto entrou a SURPRESA. Era — adivinhem se são capazes! era um elefante, o menor elefante do mundo, como Pedrinho foi dizendo enquanto arrumava no picadeiro as garrafas sobre as quais o elefantinho ia caminhar. Um verdadeiro sucesso, a surpresa! Era um elefante tão perfeito que até parecia natural — com tromba, presas de marfim e grandes orelhas caídas. Deu umas voltas pelo picadeiro, naquele andar sossegado dos elefantes grandes e depois começou a caminhar, com muito medo, sobre as garrafas que Pedrinho colocara de jeito.
— Berra, elefante! — gritou Polegar.
O elefante obedeceu e berrou três vezes com toda a força. Mas berrou numa voz muito parecida com voz de porco. Maroto, que estava lá fora tomando conta do circo, ouviu o berro e ficou de orelha em pé. Depois entrou por baixo do pano para ver o que era. Ao dar com aquele bicho nunca visto, pôs-se a latir furiosamente e avançou contra ele de dentes arreganhados. Tamanho susto levou o elefante, que tremeu em cima das garrafas e veio ao chão. Maroto agarrou-o e sacudiu-o, e tanto o sacudiu que a pele do elefante se rasgou pelo meio deixando escapar de dentro — coin, coin, coin — um animal que ninguém esperava: o senhor marquês de Rabicó!... Foi um sucesso! O circo quase veio abaixo de tanta vaia e gritaria. Pedrinho coçou a cabeça; depois danou e caiu de pontapés no Maroto, enquanto Rabicó fugia para o terreiro. Para salvar a situação Narizinho entrou no picadeiro com um cabo de vassoura de tabuleta na ponta, onde se lia em enormes letras vermelhas: INTERVALO.
— Intervalo tem dois LL! — gritou o Pequeno Polegar, que era partidário da ortografia antiga, a complicada.
Mas ninguém lhe deu atenção. Todos cuidaram de descer o mais depressa possível, de medo que as cocadas não chegassem. Tia Nastácia, no seu vestido do tempo da Sinhá Moça, ergueu a toalha que cobria o tabuleiro e começou a distribuição.
— Quero uma branca, duas cor-de-rosa e três queimadas ! — foi dizendo o Gato Félix.
Enquanto isso, o Gato de Botas argumentava com Pedrinho a respeito do misterioso desaparecimento do Visconde.
— Juro que foi Peter Pan quem o raptou — dizia o gato. – Peter Pan é muito amigo de pregar peças. Veio aqui às ocultas e “bateu” o palhaço. Garanto que não foi outra coisa.
Mas não era nada disso. Era apenas o seguinte. O Visconde havia encontrado uma Trigonometria velha que pertencera ao cônego Encerrabodes e Pedrinho pusera como calço dum dos esteios do circo. Tamanha foi a sua satisfação, que arrancou o livro dali e saiu de braço dado com ele para um passeio pelos arredores. E por lá ficaram até o dia seguinte, a conversar sobre “senos” e “co-senos”.
— Como isso, se o doutor Caramujo havia curado o Visconde da sua mania científica?
Muito simples. Havia curado, mas não havia curado completamente. Deixara em sua barriga algumas letras para semente e foi o bastante para que a festa de Pedrinho acabasse naquele fiasco.
Não há nada mais perigoso do que semente de ciência...
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Continua… Pena de Papagaio – I– A Voz
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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