Alta madrugada os meninos pularam da cama, vestiram-se, e, pé ante pé, dirigiram-se ao pomar sem que dona Benta percebesse coisa nenhuma. Emília foi atrás, muito tesinha, também na ponta dos pés. O Visconde, de canastra às costas, fechava o cortejo. Assim que abriram a porteira, ouviram um canto de galo do lado do pé de goiaba.
— Cocóricó!
Pedrinho reconheceu a “voz”.
— É ele! — exclamou. — Já está à nossa espera no ponto marcado.
Correram todos para lá, mas como nada vissem, pararam desnorteados. Nisto um segundo cocoricó se fez ouvir no alto da goiabeira. O menino invisível, além de guloso, não perdia tempo...
— Você está aí em cima? — perguntou Pedrinho, de nariz para o ar.
— Não está “vendo”? — respondeu a voz. — Acostume-se a saber onde estou sem me ver — e para dar a primeira lição atirou com uma casca de goiaba bem na cara de Pedrinho, dizendo: — Aprendeu?...
— Aprendi — respondeu Pedrinho rindo. — Agora desça, que quero apresentar minha prima Lúcia e os outros.
— Não é preciso. Sei que Lúcia é essa de narizinho arrebitado.
A outra é a tal Emília, marquesa de Rabicó. Só não conheço o de cartolinha e canastra às costas.
— Este é o ilustre senhor Visconde de Sabugosa, um sábio.
— Que é que ele sabe ? — perguntou a voz, arrumando com outra casca de goiaba na cartola do Visconde.
Todos no sítio consideravam o Visconde um grande sábio, mas na realidade ninguém sabia o que ele sabia. Por isso atrapalharam-se com a pergunta. Mas Emília, que não se atrapalhava com coisa nenhuma, disse logo, toda espevitada:
— Ele sabe embolorar muito bem. Fica todo verdinho por fora, quando quer. É doutor em bolor.
Desta vez quem se atrapalhou foi a voz, que com certeza nunca tinha ouvido falar em bolor.
De repente — pluf! barulho de alguém que pula de árvore ao chão. Era a “voz” que havia descido, plantando-se no meio deles.
— Estamos na hora — disse ela. — Temos de partir antes que o sol nasça. Que é do mapa?
Pedrinho tirou do bolso o mapa e apresentou-o. A voz pegou-o, abriu-o e ficou a ver.
Narizinho arregalava os olhos. Aquele mapa que se abria no ar como que por si mesmo, e ficava parado, pareceu-lhe uma coisa extraordinária. O misterioso menino era invisível, mas não tornara invisíveis os objetos que pegava.
Isso deu imediatamente uma idéia a Pedrinho.
— Lembrei-me duma coisa — disse ele. — Como é muito enjoado lidar com um companheiro de viagem que a gente não pode ver, proponho que você traga uma pena no chapéu. Pela pena saberemos onde você está.
— Seria ótima a idéia — respondeu a voz — se eu usasse chapéu. Mas não uso coisa nenhuma sobre o corpo, se não todos me perceberiam e de nada valeria ser invisível.
— Ai, que vergonha! — exclamou Emília tapando a cara com as mãos. — Que não dirá dona Benta quando souber que estamos em companhia dum ente que não usa roupas?
— Deixe de ser idiota, Emília — ralhou Narizinho. — Você não entende nada de criaturas invisíveis.
Não podendo usar a pena no chapéu, que não tinha, Pedrinho propôs que a amarrasse à testa com um fio. Foi aprovada a idéia. Mas onde arranjar pena e fio?
— Tenho uma de papagaio na minha bagagem — gritou Emília. — Arreie a carga, Visconde, e abra a canastra.
O Visconde arriou a canastra, abriu-a e passou à boneca a pena de papagaio e um rolinho de fio de linha. A pena foi atada à testa do menino invisível e desde esse momento não houve mais dificuldade em lidar com ele. A pena flutuante no ar indicava a sua presença.
— Viva o Peninha! — gritou Emília — e aquele grito foi um batismo. Dali por diante só o iriam chamar assim — o Peninha.
Resolvido aquele ponto, trataram de partir. Para isso o menino invisível tirou dum saquinho certo pó de pirlimpimpim. Deu uma pitada a cada um, e mandou que o cheirassem. Todos o cheiraram — sem espirrar, porque não era rapé. Só Emília espirrou. A boneca espirrava com qualquer pó que fosse, desde o dia em que viu tia Nastácia tomar rapé. Assim que cheiraram o pó de pirlimpimpim, que é o pó mais mágico que as fadas inventaram, sentiram-se leves como plumas, e tontos, com uma zoeira nos ouvidos. As árvores começaram a girar-lhes em torno como dançarinas de saiote de folhas e depois foram se apagando. Parecia sonho. Eles boiavam no espaço como bolhas de sabão levadas por um vento de extraordinária rapidez. Ninguém falava, nem podia falar, a não ser a boneca, que em certo ponto gritou:
— Preciso mais pó, Peninha! Sinto que estou caindo!
— É que estamos chegando — respondeu a voz.
De fato. A tonteira começou a passar e as árvores foram se tornando visíveis outra vez. Segundos depois sentiram terra firme sob os pés. Tinham chegado. Os meninos abriram uns olhos do tamanho de goiabas.
Olharam em torno. Um rio de águas cristalinas corria por um vale de veludo verde. Na beira do rio, um carneirinho branco preparava-se para beber. Ao fundo, alta montanha azul erguia-se majestosa, e entre o rio e a montanha era a floresta.
— Estamos no País das Fábulas, também chamado Terra dos Animais Falantes — explicou Peninha. — Vamos começar aqui a nossa viagem pelo Mundo das Maravilhas.
––––––––––––––
Continua… Pena de Papagaio – IV - O Senhor de La Fontaine
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
Nenhum comentário:
Postar um comentário