AS REDUÇÕES JESUÍTICAS
-E deu certo o esquema?
-Nem tanto. Os padres chegaram com ordem expressa do governador e do bispo de Assunção para, em nome do rei, impedir a escravização dos índios. Isso irritou muito os colonizadores. Habituados a utilizar a mão de obra indígena, sentiram-se “traídos”, passando então a sabotar o trabalho dos jesuítas. Apesar, porém, dessas dificuldades, foram implantadas as reduções, umas vinte, ao longo dos rios.
-Onde exatamente?
-Distantes cerca de 45 quilômetros umas das outras, as reduções eram uma espécie de “municípios indígenas”, formando uma confederação em que os administradores de Ciudad Real e Villa Rica não podiam interferir. As duas primeiras foram erguidas em 16l0: Nossa Senhora do Loreto e Santo Inácio, na confluência do Pirapó com o Paranapanema. Em seguida formaram-se muitas outras, entre as quais se destacavam as de São José, São Francisco Xavier, Encarnação e São Miguel, no rio Tibagi; Jesus Maria e Santo Antônio, no rio Ivaí; São Tomé e Sete Arcanjos,no rio Corumbataí; e Santa Maria, no rio Iguaçu, perto das cataratas. Compunham, juntas, o que se sonhou ser a República Teocrática Guarani.
-Comovente utopia!
-De fato. Mas vamos em frente: as reduções, que como eu lhe disse obedeciam a um esquema semelhante ao da Praça Dom Pedro II, de Maringá, tinham ao centro um grande largo para festas, esportes e outras atividades coletivas; em torno, a igreja, a escola, um salão de oficinas e artesanatos, o escritório do alcaide e demais repartições públicas (cabildo, armazém, enfermarias etc.) e, em fileiras, os pavilhões residenciais dos índios, cabendo a cada família um aposento com divisões internas feitas de couro e esteira. No pátio havia ainda um relógio de sol. Em algumas reduções, mantinha-se também um alojamento para hóspedes eventuais. Nas terras em volta formavam-se as lavouras e os pastos para criação de gado.
-Quem administrava a aldeia?
-Em cada redução moravam dois ou três padres, que era ao mesmo tempo sacerdotes, médicos, professores, catequistas, contabilistas, engenheiros, veterinários, agrônomos... A administração geral, todavia, era exercida pelos próprios índios, que escolhiam, por eleição direta, o alcaide (prefeito), o corregedor (encarregado dos assuntos judiciários) e os membros do cabildo (conselho de chefes setoriais). O regime político era uma forma primitiva de socialismo, preservando os costumes tribais.
-Tinham tudo em comum?
-Edifícios, ferramentas e outros bens pertenciam à comunidade. A produção da terra e das oficinas era distribuída de forma equitativa entre as famílias. A produção excedente era exportada via Assunção, sobretudo a erva-mate. Com os lucros desse comércio, realizavam-se melhoramentos nas aldeias.
-E os índios se adaptavam facilmente a essa forma de vida?
-Os jesuítas eram muito hábeis. Sabiam como conquistar a simpatia dos nativos, a ponto de convencê-los a andar vestidos. Os homens usavam calções; as mulheres, longas saias, embora continuassem pintando o rosto e enfeitando os cabelos com charmosos cocares. Com os missionários os índios aprenderam técnicas agrícolas e pecuárias, aprimoraram-se na produção de tecidos, tornaram-se carpinteiros, ferreiros, fundidores, pintores, escultores. As crianças freqüentavam a escola, aprendiam a ler e escrever, até em latim...
-Como era o regime de trabalho?
-Não se permitia a ociosidade, e a disciplina era rigorosa, mas ninguém trabalhava mais que seis horas diárias, respeitando-se os domingos e os dias santos. Havia tempo para o lazer, para o estudo, para o namoro, para as orações, como em qualquer sociedade organizada.
-Muito bonito. Mas não teria sido uma forma de agressão à cultura original dos índios?
-Esse é um assunto bastante polêmico. Discute-se sobre até que ponto teria sido válida a “ajuda” dos jesuítas. Talvez os indígenas tivessem sido mais felizes sem essa intromissão na vida deles. Quem sabe? Pode-se afirmar, contudo, a favor dos religiosos, que suas intenções eram honestas. A obra que tentaram realizar junto aos guaranis merece máximo respeito.
OS CAÇADORES DE GENTE
-Não deu certo, principalmente, por quê?
-Durante alguns anos os aldeados prosperaram em relativa paz. Os espanhóis de Ciudad Real e Villa Rica se conformavam em manter a seu serviço uns poucos nativos preados nas matas e aos quais diziam remunerar na forma de alimentação e roupas... como se os índios precisassem disso. Era um modo disfarçado de escravizá-los. A maior ameaça, entretanto, eram os portugueses de São Paulo, que à caça de índios penetravam seguidamente a região do Guairá Vinham pelos rios ou pelo Caminho do Peabiru.
-O Tratado de Tordesilhas não vigorava mais?
-Portugal e Espanha estando na época sob o mesmo rei, o Tratado foi mais ou menos esquecido. Alinha divisória era facilmente “furada”, de um lado e de outro. Os castelhanos tentando conquistar a costa leste e os lusitanos invadindo o sertão. Em 1607, Manuel Preto, um terrível sertanista, já estivera nas matas do Guairá. Consta que até 1612 os paulistas já haviam levado daqui uns 5 mil nativos.
-O senhor disse que havia uma lei proibindo a escravização de índios...
-Ocorre que Madri estava muito longe para fiscalizar o cumprimento da lei. Por outro lado, os fazendeiros paulistas enfrentavam grave crise: sem mão de obra indígena, diziam sem impossível prosseguir a colonização. Até ameaçaram abandonar as terras. No litoral os índios tornavam-se escassos: muitos deles fugiam para lugares distantes, os demais estavam envelhecendo e morrendo. Era urgente renovar a escravatura, e a solução seria buscar nativos no Guairá.
-E foi assim que os bandeirantes se tornaram “caçadores de gente”...
-Os primeiros bandeirantes eram portugueses arrojados e ambiciosos que vieram para o Brasil atraídos pelo sonho do enriquecimento rápido. Despertando neles a sede do ouro, Portugal usava-os para expandir seu domínio em terras brasileiras e conquistar parcelas do chão espanhol além da linha de Tordesilhas. Como a essa altura já estavam todos desiludidos da esperança de encontrar montanhas de ouro, prata e esmeralda nos sertões a sudoeste de São Paulo, a nova forma de lançá-los mata adentro era incentiválos a caçar outro “tesouro”, os nossos irmãos índios, altamente cotados no mercado de escravos.
-Os donos da terra transformados em “ferramentas de trabalho” dos invasores...
-Durante vários anos os bandeirantes vasculharam as florestas do Paraná. Nas primeiras incursões não lhes foi muito fácil prear os nativos: tinham de usar diversos artifícios, como, por exemplo, oferecer presentes, embebedá-los com cachaça e depois acorrentá-los. Passaram então a botar “olho gordo” nas reduções, em cada uma das quais viviam perto de 4 mil índios. Bastaria aos caçadores fazer o cerco em torno da aldeia e “colher”, numa só investida, milhares de “peças”.
-Isso significa que os jesuítas, nucleando os guaranis, sem querer acabaram facilitando o “trabalho” dos paulistas...
-O diabólico projeto foi discutido em São Vicente e São Paulo, formando-se na ocasião uma arrasadora bandeira, tipo “arrastão”, cujo comando foi entregue ao sanguinário Antônio Raposo Tavares.
-O Raposo Tavares que é nome de praça em Maringá?
-Ele mesmo. Se eu fosse vereador trocava o nome da praça. Esse homem, a meu ver, não merece homenagem alguma.
-Poderia ser Praça Montoya, como alguém já sugeriu. Ou Praça do Trabalho. Ou Praça do Café, lembrando o produto que deu o impulso inicial no desenvolvimento da região.
-Estou de pleno acordo. Mas voltemos à história. Raposo Tavares, então com 30 anos, era um homem alto, arrogante, ambicioso e frio. Português nascido no Além-Tejo, viera para São Paulo já fazia uns 10 anos. Tinha muitos inimigos, mas, pela sua fama de valente e pela capacidade de liderança em tarefas desse tipo, foi o escolhido para chefiar o ataque às reduções, assessorado pelo velho e experiente Manuel Preto. Saiu de São Paulo no dia
18 de setembro de 1628, com 69 portugueses, 900 mamelucos (mestiços de brancos com índios) e 3 mil nativos aliados (na maioria escravos), dirigindo-se à região do Guairá. Sabiam que os espanhóis de Ciudad Real e Villa Rica não lhes fariam oposição, interessados que estavam em também escravizar os índios. Em defesa dos guaranis haveria, portanto, e tão somente, a força moral dos jesuítas.
-Foram chegando e destruindo tudo?...
-Não exatamente, Raposo acampou a tropa nas proximidades da redução de Santo Antônio e, acompanhado de pequena guarda, fez uma “visita de cortesia” ao padre Mola, cura da aldeia. Almoçaram juntos. Durante a conversa, afirmou cinicamente que seu propósito era colaborar na conversão dos índios levando-os para São Paulo a fim de viverem com famílias cristãs, que lhes ensinariam os “bons costumes”. O jesuíta retrucou, argumentando que o Cristo não aprovaria tal método de “conversão na marra”, preferindo deixar os nativos onde estavam, confiados à paciente e amorosa catequese dos missionários. “O pastor não escraviza as suas ovelhas”, acrescentou. O bandeirante não se deu por vencido. Citou uma nova lei editada por Filipe III, na qual se mantinha a proibição de submeter os índios a trabalhos forçados, permitindo-se todavia a escravização daqueles considerados “turbulentos” ou que fossem feitos prisioneiros em “guerra justa”. -Inventar uma “guerra justa” não deveria ser difícil...
-Dou-lhe um exemplo: os caçadores de gente erguiam cruzes ao lado dos seus acampamentos; dois dias após, alegavam que faltava uma cruz e punham a culpa nos índios, acusando-os de “desrespeito à religião”. Era o bastante para iniciarem uma “guerra justa”, aprisionando centenas de “inimigos da fé”.
-E os padres não podiam fazer nada?...
-Bem que tentavam, mas como? Naquele tal encontro com Raposo Tavares, padre Mola fez o possível, porém o máximo que conseguiu foi obter do perverso a “generosa” promessa de que só levaria índios pagãos, deixando em paz os batizados.
-Coitados dos pagãos...
-Era uma estratégia. O missionário, sabendo que os arcos e flechas dos guaranis pouco valeriam contra a pólvora dos agressores, aceitou o acordo como forma de ganhar tempo.
-Começo a entender.
-Enquanto isso, procuraria batizar o máximo possível de nativos, aldeados ou não, e mandaria emissários aos padres das outras reduções sugerindo que tomassem a mesma providência.
-Os bandeirantes cumpriram o acordo?
-O que você acha?... Raposo era manhoso. Também ele estava querendo ganhar tempo, à espera de um pretexto para atacar. O pretexto surgiu quando o sertanista ficou sabendo que o padre Mola andava a acolher em Santo Antônio escravos fugidos, que escapavam tanto dos paulistas quanto dos espanhóis.
-Ai então...
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continua…
O e-book pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com
Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.
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