- Zé, vou precisar de dinheiro. Meu pagamento é só na semana que vem.
-Dinheiro extra, você deve estar de brincadeira. Só tenho trocados pro café.
-A professora falou que o Maurício precisa de um dicionário.
-O inferno, sabia que a sua idéia ia dar nisso. Escola particular pensa que dinheiro dá em barranco?
- Quem paga a escola dele sou eu. Dou um duro danado pra que tenha um futuro melhor, e o único caminho e o estudo. Deixa prá lá, vou pedir adiantamento pra patroa.
(...)
As chuvas mais uma vez trouxeram pânico as periferias. Os bombeiros, sabem que sob a
montanha de lixo e entulho, que desceram morro abaixo, não deve haver sobreviventes da sala de aula da escola particular de educacao infantil. Zanzando como um morto vivo, José não chora, carrega suas dores em silêncio, atormentando-se com as recordações da conversa da noite anterior.
-Pai, não fica nervoso por causa do dicionário. As palavras não perderam sentido, mas todo mundo precisa conhecer outras diferentes. Você sabe por exemplo o que quer dizer flatulência?
-Não, parece nome de flor, igual Hortência!
-Nossa pai, errou feio, flatulência são os gases que nós e outros animais eliminamos. Sabia que os cientistas descobriram, que nas flatulências das ovelhas, existe gás metano, responsável pela destruição da camada de ozônio?
-Taí, você acabou de falar um monte de palavras que nunca ouvi. Flatulência quer dizer pum...e saber isso vai melhorar a minha vida em que?
-Não adianta, Maurício. Seu pai não entende. Pode deixar, vou pegar adiantamento na sexta, sábado vamos comprar o dicionário.
-Não sou nenhuma besta não, mulher. Sei que estudo é importante, se pudesse também teria estudado, e hoje não trabalharia tanto, pra ganhar um salário de fome. Posso ser ignorante, mas não sou burro.
-Vocês não vão brigar por causa de um dicionário, né?
-A gente não tá brigando, filho, eu e seu pai estamos “dialogando acaloradamente”, não é assim que fala?
-Olha a mãe usando palavras novas! Ouviu essa, pai?
-Claro, garoto, tambem sou capaz de aprender novidades, quer ver? Bia, na janta não vou comer feijão preto, me dá muita fatulência.
-Muito bem, pai, só tem uma correçãozinha: é flatulência.
-Pelo jeito quando o dicionário chegar, todo mundo vai virar doutor nessa casa, mas vamos pessoal, a janta tá esfriando.
(...)
Ele continua ali, perdido dentro de um pesadelo do qual sabe não poderá acordar. Um grupo de repórteres cerca uma autoridade, sem querer, acaba ouvindo as vazias divagações sobre a tragédia:
Começa a sentir uma revolta estranha, um ódio avassalador, um rancor ao ver as cenas de demagogia costumeira. Eles sempre aparecem para pedir votos, ou se desculpar diante de um desastre. Nunca assumem sua responsabilidade.
Do jeito que falam, parece ser do povo a culpa de tudo. Se acaso ele soubesse das condições impróprias do terreno, teria dado um jeito de sair daquela sujeira enterrada, que transformou o sonho da casa própria, em túmulo do seu único filho.
(...)
-Oi, Zé, ainda bem que acordou!
- Onde estou? Minha cabeça está doendo.
- Não se lembra do que aconteceu? Você estava perto do desmoronamento, tinha uma multidão em volta. Disseram que de repente você correu em direção a um grupo de jornalistas que faziam uma reportagem, acho que para ouvir o que dizia o pessoal da prefeitura. O chão estava escorregadio, tanto que estava com um pedaço de pau na mão, certamente para se apoiar, não é? Caiu e bateu com a cabeça, você desmaiou. Ainda bem que o pessoal do corpo de bombeiros estava por perto e te socorreu. Não se mexa muito, tem um corte grande na testa, mas já suturaram. O médico garantiu que está tudo bem; quando acabar esse soro pode ir pra casa.
-Pelo amor de Deus e o nosso menino, acharam ele?
-Calma, Zé, na hora do seu acidente, estava justamente te procurando pra avisar. Ele foi com os coleguinhas até a biblioteca. Na falação de ontem, esqueci de falar: como vários alunos estavam sem o dicionário, a professora resolveu leva– los para fazer a pesquisa. Foi por Deus, a sala deles foi completamente destruída.
(...)
Algum tempo depois, longe do local da tragédia, a família refaz a vida em lugar seguro.
-Mãe, hoje o pai chega tarde, né?
-Sim filho, ele tem aula no curso supletivo. Ah, ele pediu pra deixar o dicionário, que ele precisa fazer uma pesquisa amanhã, disse que é sobre o pum da ovelha.
-Ele quis dizer: os efeitos do gás metano, na destruição da camada de ozônio.
Fonte:
Revista Varal do Brasil: Literário, sem frescuras. Edição Especial: Nosso Planeta Terra. Genebra: abril de 2011.
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