terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Guerra Junqueiro (João e os seus Camaradas)


Era uma vez uma viúva com um filho único.

Ao cabo de um Inverno rigoroso, possuía apenas um gaio e meio alqueire de farinha) João resolveu-se a correr mundo, à busca de fortuna. A mãe coseu o resto da farinha, matou o galo, e disse-lhe:

– Que é que preferes: metade desta merenda com a minha bênção, ou toda com a minha maldição?

– Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros há no mundo eu queria a tua maldição.

– Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e que Deus te abençoe.

E partiu. Foi andando, andando, até que encontrou um jumento, que tinha caído num atoleiro, de onde não podia sair.

– Oh! João, exclamou o burro, tira-me daqui, que estou quase a afogar-me.

– Espera, respondeu o João.

E, formando uma ponte com pedras e ramos de árvores, conseguiu tirar o quadrúpede do atoleiro.

– Obrigado, disse-lhe ele, aproximando-se do João. Se te posso ser útil, aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?

– Vou por esse mundo fora, a ver se ganho a minha vida.

– Queres tu que eu te acompanhe?

– Anda daí.

E puseram-se a caminho.

Ao passarem por uma aldeia, viram um cão perseguido pelos rapazes da escola, que lhe tinham atado ao rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para o João, que o acariciou, e o jumento pôs-se a ornear de tal maneira, que os rapazes com o medo deitaram todos a fugir.

– Obrigado, disse o rafeiro a João. Se para alguma coisa te for prestável, aqui me tens às tuas ordens. Aonde vais tu?

– Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha vida.

– Queres que te acompanhe?

– Anda daí.

Quando saíram da aldeia pararam junto de uma fonte. O pequeno tirou a merenda do alforje e repartiu-a com o cão. O burro pastou alguma erva que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato esfaimado a miar lastimosamente.

– Coitado! exclamou o João. E deu-lhe uma asa de frango.

– Obrigado, disse o gato. Oxalá que um dia eu te possa ser útil. Aonde vais tu?

– Procuro trabalho. Se queres, anda conosco.

– De boa vontade.

Os quatro viajantes puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um grito dilacerante e viram uma raposa correndo a toda a brida com um galo na boca.

– Agarra! agarra! bradou o pequeno ao cão.

E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da raposa, que, vendo-se em perigo, largou o galo para correr melhor. O galo pulando de contente, disse ao João:

– Obrigado. Salvaste-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vais tu?

– Arranjar trabalho. Queres vir conosco?

– De boa vontade.

– Então anda. Se te cansares, empoleira-te no jumento.

Os viajantes continuaram a jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não avistaram à roda nem uma quinta, nem uma cabana.

– Paciência, disse o João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a dormir ao ar livre; além disso a noite está sossegada e a relva é macia.

Dito isto, estendeu-se no chão; o jumento deitou-se ao lado dele, o cão e o gato aninharam-se entre as pernas do burro complacente e o gaio empoleirou-se numa árvore.

Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o galo começou a cantar.

– Que demônio! disse o jumento acordando todo zangado. Porque estás a gritar?

– Porque já é dia, respondeu o galo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que vem rompendo?

– Vejo uma luz, disse o João, mas não é do Sol, é de uma lanterna. Provavelmente há ali alguma casa, onde nos poderíamos recolher o resto da noite.

Foi aceite a proposta. Partiu a caravana, foi andando, andando, através dos campos até que parou junto da casa do guarda de um grande castelo, donde saiam gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfêmias horríveis.

– Escutem, disse o João; vamos devagarinho, muito devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.

Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se banqueteavam alegremente, sentados a unta mesa principesca.

– Que rico assalto acabámos de dar, disse um deles, ao castelo do conde, graças ao auxílio do seu porteiro. Que bom homem este porteiro! À sua saúde!

– À saúde do nosso amigo! repetiram em coro todos os ladrões.

E de um trago despejaram os copos.

João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz baixa:

– Uni-vos uns aos outros o melhor que puderdes, e, assim que vos der sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa gritaria diabólica.

O burro, levantando-se nas patas traseiras, lançou as mãos ao peitoril de uma janela, o cão trepou-lhe à cabeça, o gato à cabeça do cão e o galo à cabeça do gato. João deu o sinal, e estourou à uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o miar do gato e os gritos estridentes do galo.

– Agora, bradou o João, fingindo que comandava um destacamento, carregar armas! Dai-me cabo dos ladrões: fogo!

No mesmo instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando cada vez mais; os ladrões atemorizados refugiaram-se no bosque, saindo precipitadamente por urna porta falsa.

João e os seus companheiros penetraram na sala abandonada, comeram um excelente jantar, e deitaram-se em seguida. – João numa cama, o burro na cavalariça, o cão numa esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão e o galo no poleiro.

Ao princípio os ladrões ficaram muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas depois começaram a refletir.

– Era bem melhor a minha cama, do que esta erva tão úmida, disse um deles.

– Tenho pena do frango que eu começava a saborear, disse o outro.

– E que rico vinho aquele! acrescentou o terceiro.

– E o que é mais lamentável, exclamou um quarto, é ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde, tínhamos tirado das gavetas.

– Vou ver se torno lá a entrar! disse o capitão.

– Bravo! exclamaram os ladrões.

E pôs-se a caminho.

Já não havia luz na casa; o capitão entrou às apalpadelas, e dirigiu-se para o fogão; o gato saltou-lhe à cara e esfarrapou-lha com as garras. Soltou um grito doloroso, correu para a porta, mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta. Mas quando ia a sair, o galo atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com as unhas.

– Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão, como poderei eu sair?

Julgou encontrar refúgio na estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deixou quase morto no meio do chão.

Passado algum tempo veio a si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.

– Então? então? perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.

– Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste corpo, que o trago num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na cozinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e arrumou-me na cara com o sedeiro, deixando-me neste miserável estado. Quando ia a sair a porta, um demônio de um remendão atravessou-me as pernas com a sovela. Logo depois, Satanás em pessoa atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não acreditam, vão lá e experimentem.

– Acreditamos, disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado. Não seremos nós que lá tornaremos.

Pela manhã, João e os seus camaradas almoçaram ainda excelentemente, e partiram em seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos, com que carregaram o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram à porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do porteiro com uma libré esplêndida, meias de seda, calções escarlates, o cabelo empoado.

Olhou com ar de desprezo para a pequenina caravana, e disse a João:

– Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os recolher, vão-se embora.

– Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do castelo far-nos-á um bom acolhimento.

– Fora daqui, vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar imediatamente, quando não atiro-lhes já às pernas os meus cães de fila.

– Perdão, só um instante, replicou o gaio empoleirado na cabeça do jumento; não me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite passada a porta do castelo?

O porteiro corou. O conde que estava à janela, disse-lhe:

– Ó Barnabé, responde ao que este galo te acaba de perguntar.

– Senhor, replicou Barnabé, este galo é um miserável. Não fui eu que abri a porta aos seis ladrões.

– Gomo é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram seis?

– Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cansados do caminho.

– Ficai certos que sereis bem tratados.

O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato ficou na cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o dos pés à cabeça com um vestuário magnífico, deu-lhe um relógio de ouro e disse-lhe:

– Queres ficar comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.

João aceitou a proposta e mandou vir a sua velha mãe para ao pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu sempre felicíssimo.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

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