Narizinho sabia duas palavras em francês — bon jour e au revoir. Os outros não sabiam nenhuma. Em vista disso os outros a empurraram para falar com o fabulista. A menina atrapalhou-se já no começo, porque em vez de bon jour disse:
— Au revoir, senhor de La Fontaine! Acabamos de chegar do sítio de vovó e vimos a bengalada que o senhor pregou no focinho daquele lobo antipático. Muito bem feito. Queria aceitar os nossos parabéns. Bon jour.
O fabulista achou muita graça em tanta inocência e, erguendo-a do chão, deu-lhe um beijo na testa. Depois disse:
— Não precisa falar francês comigo, menina. Entendo todas as línguas, tanto a dos animais como a das gentes.
Os outros já o haviam rodeado — inclusive Emília, que deixou para brincar com o carneirinho depois. Estava ela muito admirada das roupas do fabulista. Homem de gola e punhos de renda, onde já se viu isso? E aquela cabeleira de cachos, feito mulher! Quem sabe se o coitado não tinha tesoura? — pensou a boneca.
O senhor de La Fontaine conversou com todos amavelmente, dizendo que era aquele o lugar do mundo de que mais gostava. Ouvia os animais falarem, aprendia muita coisa e depois punha em verso as histórias.
— Eu já li algumas das suas fábulas — disse Pedrinho. – O senhor escreve muito bem.
— Acha? — disse o modesto sábio, sorrindo. — Fico bastante contente com a sua opinião, Pedrinho, porque muitos inimigos em França me atacam, dizendo justamente o contrário.
— Não faça caso! — gritou Emília. — Eles não sabem o que dizem. Pedrinho quando diz uma coisa é porque é. Pode acreditar nele.
— Obrigado pelo consolo, bonequinha. Tua opinião e a de Pedrinho valem muito para mim, porque em ambas vejo grande sinceridade.
Emília não tirava os olhos da cabeleira do fabulista. O coitado morava sozinho naquelas paragens e com certeza nem tesoura tinha, pensava ela. De repente teve uma lembrança. Abriu a canastrinha e, tirando de dentro a perna de tesoura, ofereceu-a ao sábio, dizendo:
— Queira aceitar este presente, senhor de La Fontaine.
O fabulista arregalou os olhos, sem alcançar as intenções da boneca.
— Para que quero isso, bonequinha?
— Para cortar o cabelo...
— Oh! — exclamou o fabulista, compreendendo-lhe afinal a idéia e sorrindo. — Mas não vês que a tua tesoura tem uma perna só?
Emília, que não se atrapalhava nunca — respondeu prontamente:
— Pois corte o cabelo dum lado só.
Narizinho interveio. Puxou-a dali e disse ao fabulista que não fizesse caso visto como a boneca sofria da bola.
Nesse momento o menino invisível, que tinha estado longe, aproximou-se. Ao ver aquela pena flutuante no ar, o senhor de La Fontaine ficou intrigado. Pôs-se a olhar, com rugas na testa, sem poder descobrir o mistério.
Emília deu uma risada caçoísta.
— O senhor, que é um sábio da Grécia, adivinhe, se for capaz, que pena de papagaio é aquela, sem papagaio atrás...
O fabulista olhava, olhava e cada vez compreendia menos.
— Não posso — disse afinal. — É um perfeito mistério para mim.
— Pois eu sei — berrou Emília. — É a marca do menino invisível, o Peninha.
O fabulista ficou na mesma. Foi preciso que Pedrinho contasse tudo desde o começo para que o enigma se aclarasse. Mesmo assim o senhor de La Fontaine ficou de boca aberta e olhos arregalados porque nunca em sua vida tinha encontrado uma criatura invisível.
Pedrinho chamou-o de parte e disse-lhe ao ouvido:
— Ando desconfiado que esse menino é o mesmo Peter Pan.
Tem igual modo de falar e igual mania de cantar de galo. Que é que o senhor pensa disto?
O pobre fabulista, que não tinha a menor idéia de quem fosse Peter Pan, menino descoberto na Inglaterra muito recentemente, não pôde dar opinião a respeito.
— Não sei, Pedrinho. Vocês estão a falar de coisas muito novas para um homem tão antigo como eu.
Depois, vendo o sol já alto, propôs:
— Aproveitemos o tempo para mais uma fábula.
Disse e dirigiu os passos para o ponto onde havia uma árvore com cigarra cantando. Todos o acompanharam. Pedrinho ia rente.
Prestava a maior atenção aos menores movimentos do fabulista porque desejava aprender a escrever fábulas lindas como as dele. Até da marca e número do lápis que o senhor de La Fontaine usava Pedrinho tomou nota, para comprar um igual. Em certo momento Emília criou coragem e, colocando-se longe de Narizinho para evitar algum beliscão, disse para o sábio:
— Em troca da tesoura eu quero uma coisa, senhor de La Fontaine.
— Dize lá o que é, bonequinha.
— Quero uma fábula.
— Uma fábula duma perna só? — caçoou ele.
— Uma fábula onde apareça um carneirinho, uma boneca de pano e um tatu-canastra.
Narizinho agarrou-a e enfiou-a no bolso, dizendo:
— É demais. Parece que os ares deste campo lhe desarranjaram a cabeça duma vez.
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Continua… Pena de Papagaio – VI - A formiga coroca
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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