segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Antonio Callado (A Revolta da Cachaça)


A Revolta da Cachaça, é uma brilhante metáfora da condição do negro no Brasil, e compõe, juntamente com O tesouro de Chica da Silva, Pedro Mico e Uma rede para Iemanjá, o Teatro Negro de Antonio Callado: rico, corajoso e solidário, um marco na história da dramaturgia brasileira.

Aparentemente leves, as quatro peças tematizam problemas profundos da sociedade brasileira, marcada pelo estigma da escravidão e do preconceito, da discriminação e da marginalização do negro, no passado e no presente. Para conviver com isso o negro deve apelar seja à malandragem, feito Chica, seja aos deuses afros, como ela e a mãe do filho de Iemanjá, seja à violência como Ambrósio e Pedro Mico.

A gravidade do tema contrasta com a leveza do estilo de modo a torná-la mais impressionante. O espectador ri mas ri culpado, principalmente se ele é branco e bem de vida. O custo do seu riso é um certo mal-estar que dura para além do espetáculo.

No caso de Pedro Mico, a problemática social do abismo econômico entre os habitantes da favela e os habitantes da zona sul, metonimicamente representada pela Lagoa que se vê do alto dos barracos vizinhos, cruza-se com a problemática racial e regional. Aparecida imagina o dia em que a favela vai descer e invadir a casa dos ricos da Lagoa. Pedro Mico sabe que, se o fizerem, vão acabar atraindo a polícia, que vai tirá-los à força de lá, mas avalia o quanto pode ser divertido e o quanto podem aproveitar das casas ricas nem que seja por pouco tempo.

A Revolta da Cachaça

Em A Revolta da Cachaça a referência histórica nos recorda o episódio que ficou conhecido com este nome, no Rio de Janeiro, de que resultou a morte de João de Angola e de Jerônimo Barbalho, decapitados no dia 6 de abril de 1661, na frente do Convento de Santo Antônio, por contrariar uma proibição da metrópole referente à produção de cachaça na colônia.

Dedicada ao ator negro Sebastião Prata, conhecido como Grande Otelo, essa peça se passa no Rio de Janeiro dos anos 50-60.

Pode-se dizer que se trata de um meta-teatro, porque seu tema é uma peça de teatro que deveria ter como ator principal um negro, mas que não se termina, porque o diretor tem dificuldade de acabá-la talvez por isso mesmo. Esse autor e diretor é Vito, que começou a escrever a peça há 10 anos atrás para seu amigo negro, Ambrósio. Dez anos depois Ambrósio volta para reclamá-la a ele e a sua mulher, Dadinha, com quem, no passado tivera uma história de amor.

Em A Revolta da Cachaça a referência histórica nos recorda o episódio que ficou conhecido com este nome, no Rio de Janeiro, de que resultou a morte de João de Angola e de Jerônimo Barbalho, decapitados no dia 6 de abril de 1661, na frente do Convento de Santo Antônio, por contrariar uma proibição da metrópole referente à produção de cachaça na colônia. Mas esta não é a trama da peça. O episódio deveria compor o argumento de uma peça que um ator negro, Ambrósio, luta para representar mas se vê impedido no seu propósito por não contar com a cooperação de um dramaturgo branco, supostamente seu aliado, comprometido com o sucesso junto à mídia. As informações históricas são prestadas pelo personagem Ambrósio que não só se revela um conhecedor da revolta como também um crítico do momento histórico em que vive. Além disso, representa a consciência crítica do ator que exige a sua participação na composição da peça, o que desencadeia o conflito principal na relação ator/dramaturgo, levando à catástrofe.

As relações amorosas e de amizade são desmascaradas no final, pois o autor se nega a terminar a peça e acaba provocando a ira de Ambrósio, que tenta matá-lo, mas morre no final, sem consegui-lo. Nessa versão, o negro acaba representando o papel ao qual sempre esteve confinado e do qual queria fugir: o de marginal e criminoso.

Vito é um intelectual que trata o negro de forma paternalista. Dadinha, a mulher branca que o utiliza como objeto sexual. Aí se insinua algo que voltará em peças mais recentes de autores negros, que é a visão da mulher branca atraída sexualmente pelo negro, ou melhor, pela projeção que faz dele em suas fantasias: o violador forte e bruto contra a vítima indefesa da barbárie.

A peça, que teria Ambrósio no papel principal, semi-escrita e nunca terminada, como já citado, se chamaria "A revolta da cachaça", e o papel heróico do negro seria feito por Ambrósio.

A discussão sobre a peça e suas várias versões se dá enquanto todos bebem cachaça (enviada em um grande barril por Ambrósio, como presente misterioso, antes de sua chegada em pessoa à casa dos antigos companheiros de teatro). Ambrósio ameaça Vito com um revólver. A problemática do negro está condensada aí. A peça é complexa e não há espaço disponível para mostrar isso aqui, mas as citações abaixo, de Ambrósio, podem dar uma idéia dessa complexidade.

Sobre a discriminação do negro pela polícia:

"Eu procuro sempre andar meio almofadinha, como se dizia antigamente. Crioulo tem que andar com ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva viva no bolso. Se ele não se enfeita e de repente pinta uma cana–quem é o primeiro a entrar no camburão? Até o negro se explicar..."

A respeito do teatro:

"Quando pensamos que peças de teatro são escritas no Brasil desde que Cabral abriu a cortina deste palco... parece incrível que esta seja a primeira que tem um preto como protagonista.
E o preto protagonista é o crioulo mesmo e não o branco pintado de preto.
Se você continuar assim quem fica sem peça sou eu, porra. Acabo outra vez fazendo papel de criado, de ladrão, de bicheiro, ou chofer.

(...)

Me dá a peça, Vito! Não aguento mais ser copeiro, punguista eassaltante.
Vim aqui cobrar a fama que você me deve. Vim para morar, pra morrer. Mas no meio do rio ou da rua. Chega de margem."


A peça encena a contradição branco e negro, mas cercada de outras que ainda a fazem mais atual e complexa: a relação homem-mulher e homem-homem, já que sugere uma paixão homossexual entre Vito e Ambrósio no passado e no presente, assim como entre este e a mulher de Vito, Dadinha. A questão de não escrever a peça se cruza, assim, com o racismo e a questão sexual; ela não se conclui apenas porque o ator é negro, mas porque Vito tem ciúmes, como marido e como homossexual.

No final, depois de disparar em Vito e de colocá-lo dentro do Barril de Cachaça, Ambrósio foge para o jardim. Um policial dispara e o fere. Mas parece que morre do coração. As reações da polícia são representativas do preconceito racial, pois ela só pode esperar do negro o papel de assassino. A palavra final é de Dadinha, para a qual o crioulo se transforma no morto que, impessoalmente, como um pobre desconhecido, será conduzido diretamente ao necrotério.

A primeira versão, identificada pelo ator como "enredo de escola de samba", lembra a tendência geral para a representação estereotipada do negro em papéis secundários, e o ator negro se nega a participar desta mistificação, pedindo - ou intimando o dramaturgo a produzir a outra versão. A peça acaba por transformar-se numa discussão sobre problemas de ordem estética e ideológica, envolvendo a produção de um texto em que um ator negro deve definir a sua participação como artista e como conhecedor da sua história. É através deste que uma série de informações são anunciadas, de tal forma que o público fica sabendo quem são os integrantes da Revolta, em que circunstância aconteceu e qual foi o seu resultado. É através do ator negro que o público toma conhecimento da história de Jerônimo Barbalho, um fidalgo que produzia cachaça no seu engenho, embora não dispensasse o vinho da Madeira. Foi traído pelo irmão Agostinho Barbalho que o denunciou ao governador por produzir cachaça sem licença, o que irá ocasionar a sua perseguição e punição. Mas o ator deve representar outro personagem, por quem manifesta especial simpatia: João de Angola, cúmplice na Revolta. Sobre este, Ambrósio informa: "João de Angola fazia as armas de Jerônimo Barbalho e o abebé de Iemanjá. Os pretos em Luanda e Benguela se escravizando entre eles mesmos porque lá ninguém obedecia. Todos mandavam. Tomavam posse uns dos outros, trocavam de dono, se vendiam em troca da cachaça que vinha do Rio."

Assim, as informações vão se somando e o leitor ou espectador vai compondo uma história de resistência, acontecida no passado, ao mesmo tempo em que se processa outro conflito, no presente, no processo da produção do texto, quando o personagem negro luta para imprimir nele a sua marca, exigindo do dramaturgo uma versão que não contemple as exigências do mercado.

O ator negro vive o conflito do marginalizado que deve "andar meio almofadinha", com "ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva viva no bolso" para não ser o "primeiro a entrar no camburão" no confronto com a polícia. O personagem cria, assim, na vida real, uma máscara para defender-se. No teatro precisa de um papel principal para reverter os estereótipos humilhantes que envolvem a presença do negro em papéis secundários ou pontas. Por isto Ambrósio explode: "Estou de saco cheio de fazer papel de marginal, o cara que fica na praia espiando barco, no meio-fio olhando automóvel, sempre na beira, na margem. Vim aqui cobrar a fama que você me deve. Vim pra morar, pra morrer. Mas no meio do rio ou da rua. Chega de margem." Movido por esta hybris o personagem negro vai às últimas conseqüências na sua empresa, decidido a matar ou morrer, literalmente. A obsessão leva-o a uma série de estratégias para forçar o dramaturgo a concluir a versão definitiva da peça, a começar por um insólito presente que é anonimamente enviado ao dramaturgo antes da sua chegada: um enorme barril de cachaça que chega à casa de Vito, intrigando a todos pela sua origem. Depois chega inesperadamente o ator que procura sensibilizar o dramaturgo com a manifestação de um último desejo de artista frágil, doente, vaticinando uma morte próxima. Entretanto, diante da insensibilidade do dramaturgo aos seus apelos de Ambrósio o ator saca de uma arma, precipitando o desenlace da peça, que culmina com a intervenção policial, tiroteio e morte do ator, cumprindo-se, desta forma, a premonição de Ambrósio, que não morre propriamente do tiro, desfechado na sua perna pelo policial, mas em decorrência de problemas cardíacos. A cena final, com o dramaturgo saindo comicamente de dentro do barril de cachaça, onde estivera escondido, e a constatação da morte de um negro, como acontecimento banal que causa alívio a todos, reproduz uma situação típica das manchetes policiais, envolvendo negros que previamente são julgados como marginais perigosos.

Nesta peça de Callado é importante lembrar a presença do ator negro, como personagem principal, que luta para representar um papel vivido por um outro negro na história, levando-nos ao tema da resistência, como forma de afirmação do negro, numa sociedade que tende a conferir-lhe papéis secundários na vida e no teatro, como lembra o personagem Ambrósio. Entretanto a consciência crítica do personagem não se traduz numa ação política organizada, capaz de levá-lo resistir ou pelo menos a tentar resistir diante dos obstáculos que se interpõem à sua realização profissional como negro dentro do teatro. O personagem luta isoladamente e de forma suicida, provocando, inconscientemente, a sua própria aniquilação, marcado por uma desmedida que levará à queda inevitável. Ele tem uma arma de fogo que não sabe manejar. Vito, o vencedor, confirma a sua superioridade. O barril de cachaça, presente do ator negro, é, ironicamente, a barricada que defende o inimigo, quando, num lance cômico o dramaturgo se esconde dentro do barril e sai de lá encharcado de cachaça depois do perigo. O negro é relegado para o seu lugar. A peça termina melancolicamente com a confirmação da sua derrota. A sua hybris o fulmina. A hamartia, ou a falha aristotélica, para lembrar a tragédia clássica, decorre da necessidade e urgência, por parte do ator, de arrancar de um suposto aliado a peça impossível, em função dos valores opostos que ator e dramaturgo representam. A recognição do inimigo por parte do ator desencadeia neste um sentimento de revolta que precipita a catástrofe.

A peça apresenta, assim, alguns traços da tragédia, não faltando ao personagem negro a premonição da própria morte e a desmedida que o arrasta para ela. Para atenuar a seriedade trágica, Callado apela para alguns expedientes cômicos, mas no seu conjunto a peça tende mais para um drama que conserva algumas marcas do trágico.

Pedro Mico

Pedro Mico é uma das mais importantes obras de Antonio Callado. Peça em um ato, cuja ação transcorre em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 50.

Pedro é um negro que tem a fama de ser muito bom na arte de enganar a polícia, que o busca por crimes de roubo. Sua grande agilidade em escalar prédios altos é a razão pela qual os jornalistas lhe deram o nome de Mico. Para essas ocasiões ele tem sempre uma corda ao alcance da mão. Pedro não sabe ler e, como quer estar informado sobre o que aparece nos jornais, sobretudo na seção policial, para inteirar-se se e como falam dele, resolve seu problema com ajuda de mulheres que sabem ler e que lêem para ele as principais notícias. A peça apresenta uma cena entre ele e sua mais recente conquista, a prostituta Aparecida, a quem pede que lhe leia os jornais do dia, como uma espécie de prova ou condição para que continuem a relação amorosa. Aparecida faz isso muito bem, mas o encontro de trabalho e amor é interrompido pela ciumenta Melize, vizinha de Pedro Mico no Morro da Catacumba, onde vivem e onde transcorre a ação.

Melize não sabe ler, mas está tentando aprender para ver se conquista Pedro, por quem tem uma grande paixão. Seu irmão, Zemelio, é admirador de Pedro e o avisa que a polícia está vindo apanhá-lo. Melize, por ciúmes, o havia denunciado. Antes disso, Aparecida havia contado a Pedro a história de Zumbi, o escravo, líder do quilombo de Palmares.

Esse quilombo existiu no Brasil entre 1630 e 1695 na Serra da Barriga, hoje região de Alagoas, estado do nordeste brasileiro de onde provém Aparecida. Zumbi se matou quando a polícia venceu a resistência dos quilombolas e ia prendê-lo. Matou-se jogando-se num abismo e se transformou no herói mítico para os negros e para o movimento negro.

Na peça de Callado, quando chega a polícia, para prender Pedro, Melize e Aparecida saem para tentar detê-la, ganhando tempo. Quando voltam, a janela aberta e uma roupa de Pedro pendurada em uma árvore levam a pensar que ele se houvesse matado, imitando o gesto desesperado de Zumbi. A polícia desce para buscar o cadáver e as mulheres ficam chorando. De repente, reaparece Pedro na janela, pois tudo havia sido um de seus truques. Enquanto a polícia o busca lá em baixo do morro, ele escapa com Aparecida. No horizonte fica a possibilidade de que um dia Pedro volte para guiar a conquista da cidade pelos negros da favela, tal qual um Zumbi redivivo. É o sonho de Aparecida que tenta vendê-lo a Pedro: “Você já pensou, Pedro, se a turma de todos os morros combinasse para fazer uma descida dessa no mesmo dia?... Tu já pensou, Pedro?”, pergunta Aparecida no final, que se fecha com a resposta enigmática de Pedro: “Não. Mas vou pensar”.

Pedro Mico trata com leveza e humor de questões que encontram-se em nossa conjuntura sócio-econômica atual: exclusão social, a condição do negro, a falta de perspectiva de sobrevivência e a condição da mulher, diante da condição de objeto.

Como vimos, a peça Pedro Mico tem também como personagem principal um negro, que, entretanto, não dispõe de dotes artísticos ou de conhecimentos históricos para tentar compor a sua história, identificando-se com um herói negro a exemplo do ator Ambrósio, da peça anterior, A Revolta da Cachaça. Quem detém a memória histórica, desta vez, é a companheira de Pedro, Aparecida, a mulher que sabe ler o suficiente para deslumbrar o iletrado marginal que, de forma narcisista, quer saber o que publicam a seu respeito.

Em Pedro Mico nos defrontamos com a figura típica do malandro, um ser deslocado das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja pelo modo de andar, falar ou vestir-se. Pedro Mico não reproduz, entretanto, apenas a sagacidade e os gestos peculiares do malandro assim concebido, vivendo de expedientes. É possível verificar que se trata de um "autêntico marginal ou bandido", categoria em que se inscreve o nosso anti-herói "sem nenhum caráter", correndo os riscos que a sua marginalidade plena apresentam. A homologia com o personagem Zumbi fica por conta dos dotes de habilidade e sagacidade exigidos pelo negro a ser escolhido para governar os Palmares. Só que a sagacidade de Pedro Mico serve a outros fins: é o típico malandro, favelado de morro carioca, que tenta escapar das batidas policiais e é, de fato, envolvido com a criminalidade. O seu sucesso presumível junto às mulheres lhe garante uma precária segurança emocional num espaço em que o malandro subsiste na corda bamba, literalmente pendurado no morro, sempre em atitude defensiva.

A história de Zumbi dos Palmares que é contada pela prostituta Aparecida que acaba motivando no companheiro a ardilosa escapada da polícia. Na cena final ambos tencionam, efetivamente, fugir para a terra dos quilombos (Alagoas) indiciando, simbolicamente, uma mudança de perspectiva para o negro alienado que preserva a imagem do crioulo astucioso, prepotente, agressivo e sedutor.

Vimos que Aparecida é a porta-voz da História. Compete à mulher, também marginal, a iniciativa de transmitir conhecimentos e gerar transformações. Os dados por ela apresentados sobre a história de Zumbi são pouco precisos, relembra antigas lições de escola, mas é o suficiente para dar a conhecer ao companheiro (e à platéia) a história do herói que "fugiu com os outros negros que estavam cheios de apanhar de chicote e de viver nuns barracos imundos e meteu o peito no mato até chegar no tal morro dos Palmares. Lá não perdeu tempo com samba nem nada disso tudo que se faz hoje não. Fez muro, botou lá uma fortaleza, cercou o morro e aquilo ficou feito um país." Não faltam, ainda, através da mesma personagem, informações sobre a expedição militar que derrotou Zumbi, que "brigou feito um gato bravo, matou gente que não foi brincadeira" e no final se atirou num precipício, seguindo a versão mítica mais conhecida de Sebastião Rocha Pita, segundo a qual o herói perseguido se atira no despenhadeiro no reduto do Macaco para fugir à escravidão. A perspectiva da morte provoca, neste ponto, uma reação do companheiro: "Esse negócio de morrer no fim é danado. Ganha quem fica vivo."

A figura de Aparecida surpreende para a época, em se tratando de Brasil. Ela representa a mulher nordestina, transladada para a capital do país, que se nega a trabalhar como doméstica (destino da maioria), entregando-se à prostituição, mas sem perder a ambição de sair dessa vida para uma melhor. Uma arma importante para isso ela tem: sabe ler e tem uma compreensão maior que a do malandro das contradições sociais em que está inserida.

A imagem da prostituta é positiva. A iniciativa é sempre dela. O seu saber vem das letras mas também das lendas de sua terra, Alagoas. Ela é a portadora e transmissora do mito de Zumbi, cuja história conta como se contam contos, aumentando um ponto e associando-a ao seu amante: "Zumbi deve ter sido um crioulo assim como você".

A justaposição da história de Zumbi dos Palmares com o aparente epílogo de Pedro Mico produz, como apontou a crítica na época, um choque de efeito dramático extraordinário. A sabedoria de Aparecida, que lhe vem dessa combinação especial entre letra e oralidade, é captada intuitivamente por Pedro Mico que a trata de modo entre machista e cavalheiresco, proibindo Melize de desrespeitar a que agora é sua mulher, o que parece redimi-la do passado.

Pedro Mico, negro, perseguido pela polícia, marginal de morro, vai transformando-se numa réplica moderna do Zumbi, ou melhor dizendo, numa paródia deste. A sua fuga juntamente com a companheira, para Alagoas, ou Bahia, conforme uma segunda decisão de Aparecida, comandando a ação, contraria idéia enunciada pelo malandro segundo a qual as mulheres servem para obedecer os homens. No desfecho da peça, após uma perseguição policial, Pedro, não tem o mesmo destino de Ambrósio, assim como não tem o destino de Zumbi. Influenciado pela história do herói palmarino, contada pela companheira, faz de conta que se atira na ribanceira que dá para a janela do seu barraco, deixando um casaco dependurado nela, como sinal de que havia precipitado no abismo. Quando os policiais descem para conferir a suposta morte do perseguido, Pedro reaparece vitorioso, saindo do seu esconderijo, debaixo do barraco, e se proclama, ironicamente: "-— Zumbi, mas vivo." O anúncio do anti-herói pode também ser interpretado como inversão da história que virou lenda, segundo a qual o herói dos Palmares teria se atirado num precipício, versão que a moderna historiografia não confirma. De qualquer forma o personagem da peça de Callado se constrói como um Zumbi às avessas, que sobrevive precariamente, confinado nas margens de uma sociedade em que a repressão policial não é forma de combater a criminalidade, na medida em que a polícia acaba contaminada igualmente pela corrupção, conforme o demonstra a peça.

Uma rede para Iemanjá

Uma rede para Iemanjá, peça em um ato, escrita em 1961, tem como protagonista Jacira, mulher jovem e loura, que, grávida e abandonada pelo marido, busca uma rede onde possa se deitar para parir.

Essa peça se passa no Rio de Janeiro, nos anos 50. Aí se mesclam mulheres brancas com trabalhadores da construção civil, negros e nordestinos, por sua vez mestiços de índio; um negro tem o apelido de Manuel Seringueiro; uma mulher branca leva o nome de Jacira, mas se diz filha de Iemanjá e a única coisa que almeja é ter o seu filho numa rede, porque assim quer a sua deusa.

Tudo gira em torno desse parto na rua, em uma rede, deixada aí pelo marido de Jacira, que a abandona, mas não sem antes atender esse seu desejo: uma rede para parir. No parto ela é ajudada por um velho, cujo filho, Juca, morreu afogado. Ela o encontrara na praia rezando para Iemanjá trazer seu filho de volta. O menino que nasce na rede é visto assim como uma espécie de reencarnação de Juca. Como isso se passa pouco antes do 31 de dezembro, dia em que se homenageia Iemanjá, a peça pode ser lida como uma versão afro-brasileira de um auto de natal.

O tesouro de Chica da Silva

O tesouro de Chica da Silva, em 2 atos, é uma peça de fundo histórico, escrita em 1958.

A escrava Chica da Silva é a principal figura, cercada por suas mucamas, também negras, que formam uma espécie de coro. Além delas, há outras personagens importantes que com elas atuam, o seu amante, contratador de diamantes, João Fernandes, o Conde de Valadares, anti-herói, e outros brancos e negros que fazem parte do ambiente do Arraial do Tijuco (hoje, Diamantina) no século XVIII, tempo em que se passa a história.

Quando a peça começa, Chica é a amante do contratador e vive muito feliz com ele. Mas encontra-se no Tijuco o corrupto Conde de Valadares, governador da Capitania, embaixador do Rei de Portugal e do temido Marquês de Pombal. Ele está encarregado de fazer uma devassa que irá provocar a ruína de Chica e de João Fernandes. Na peça, Chica tenta primeiro comprar o conde, mas ele sempre quer mais.

Como ela não tem um tesouro em pedras preciosas que lhe havia prometido, ele ordena a prisão do contratador e a devolução de Chica para a senzala, para que volte a viver como as outras escravas. Aí ocorre o inesperado: o filho do Conde, D. Jorge, que não era publicamente reconhecido como tal, apaixona-se por Chica e, por amor, mata o capitão enviado pelo conde para levá-la à senzala. O tesouro prometido por Chica se converte então, para surpresa final do conde e do público, no filho deste, que ela lhe presenteia adormecido em sua cama, quando descansava do stress sofrido por matar o capitão. Como o conde não quer que o crime se divulgue e muito menos seu autor, o que o desmoralizaria, rende-se e faz o que Chica quer. Propõe-se a soltar o contratador que estava preso, mas Chica lhe ordena que ainda o deixe dormir na prisão uma noite, para que aprenda a ser mais corajoso, já que ela o condena por deixar-se vencer tão facilmente pelo conde. Como se vê, Chica domina a cena, apresentando-se como mulher forte, ao contrário do passivo contratador.

Um aspecto importante a assinalar nessa peça é que a rusticidade mal disfarçada de Chica serve freqüentemente para revelar a pseudo-cultura de uma elite de brancos tão ou mais ignorantes do que ela. O contraste se obtém ainda contrapondo elementos da cultura branca a elementos da cultura negra, como na música, por exemplo, onde o lundu africano aparece ao lado da música austríaca, apreciada pelos nobres portugueses. Mas também se evidencia a capacidade de os negros, representados por Chica e seus companheiros e companheiras, se apropriarem da música estrangeira e da música de brancos, valorizando, entre outras, a modinha de origem portuguesa.

Aqui, como em Pedro Mico, estão presentes os mitos afrobrasileiros. Além de Zumbi, são mencionados os Orixás, a quem Chica sempre recorre nos momentos difíceis, ficando com fama de feiticeira.

A personagem Chica da Silva reproduz também, tal como Pedro Mico, a figura do negro esperto e sedutor. No caso, trata-se da mulata com toda a sua ambiguidade de caráter, postada entre os poderosos detentores da riqueza produzida pela mineração, e um séquito de mulatas que a servem. Aqui, o enredo se presta a uma alegoria de escola de samba. É a mulata por quem os portugueses se entregam, a exemplo do Contratador de Diamantes João Fernandes e do jovem D. Jorge, filho do Conde de Valadares. A lendária história da amante do contratador não conhece limites para a mulata herdeira de grandes fortunas em jóias, propriedades e escravos, que quase perdeu seus privilégios com a intervenção do temível Conde de Valadares, na figura do Governador da Capitania e Embaixador d'El Rei D. José e do Marquês de Pombal.

Ao contrário de Pedro Mico, a astúcia, simplesmente, não seria suficiente para livrar Chica da Silva e o companheiro das malhas do fisco português que tencionava tirar o máximo proveito das riquezas minerais produzidas na colônia, à custa de condenações rigorosas, usando toda a violência possível. Foi graças à providencial aparição do apaixonado D. Jorge que Chica e o Contratador se livram da ruína anunciada, como se constata no desfecho cômico, com a sedutora mulata encontrada pelo furioso Conde, na cama, nos braços de D. Jorge, após o assassinato pelo próprio filho do Capitão da Guarda. Com a família envolvida no escândalo e a garantia de vantagens pessoais o fiel vassalo do rei bate em retirada e silencia sobre os desmandos morais da colônia degenerada e os desvios de riquezas entre gente desclassificada, conforme julga o Governador.

A representação da personagem Chica da Silva já não nos remete ao “negro heróico”, como paradigma de uma história da resistência, que sofre a perseguição e a morte para afirmar-se. Chica da Silva possibilita uma atrevida convivência com os poderosos, com todos os riscos que esta parceria pode provocar, ao reproduzir a relação da senhora com o seu séquito de mucamas, prestes a servir, felizes a colaborar.

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