A construção do circo deu muito trabalho. Pedrinho tinha de fazer tudo, mas o pior era abrir buracos para fincar os esteios e o mastro. E quantos buracos. Mais de trinta. Suou que não foi brincadeira; chegou a criar calos d’água nas mãos. Emília, que de vez em quando vinha sapear as obras, deu-lhe uma idéia.
— Eu, se fosse você, arranjava um tatu para fazer esse buracos. Os tatus são melhores do que cavadeira para buracos bem redondinhos.
— E eu, se fosse você — respondeu o menino de mau humor – ia pentear macacos.
Emília pôs-lhe a língua e começou a brincar com o carro de carretel. Atrelou nele o cavalo de rabo de pena, botou o tostão dentro e disse de brincadeira: “Agora, senhor cavalo, vá correndo ao palácio do rei e entregue-lhe este queijo de prata, que eu mando. Ao palácio do rei, não; ao palácio do príncipe. Ao palácio do príncipe, não; ao palácio do duque. Ao palácio do duque, não; ao palácio do marquês.
Ao palácio do... Abaixo de marquês o que é, Pedrinho? Perguntou ela, já esquecida da zanga.
Mas o menino não estava para prosa, porque justamente naquele instante havia dado uma martelada no dedo.
— É martelo — respondeu assoprando a machucadura.
— Martelo, martelo! Como é bonito! Por que você não vira o marquês de Rabicó em martelo?
— E por que você não vai lamber sabão, Emília?
A boneca botou-lhe a língua outra vez e foi queixar-se a Narizinho lá dentro. A menina estava justamente acabando o sol da roupa do palhaço; ia começar o saiote da dama que corre no cavalo.
— Aquele bobo! — disse a boneca fazendo um muxoxo.— Dei lhe uma idéia tão boa e o bobo me mandou lamber sabão. Bobão!
— Pedrinho, quando está trabalhando, não gosta que ninguém o atrapalhe, você sabe.
— Mas eu...
— Cale a boca e venha me ajudar na costura. Estou acabando este sol para começar o saiote com que você vai correr no cavalo.
— Que bom! Mas eu também quero um sol atrás.
Narizinho deu uma risada.
— Isso é um despropósito, Emília! Sol, só os palhaços usam. Você, quando muito, poderá ter uma lua.
— Lua cheia ou minguante?
— Acho que quarto crescente fica melhor. Emília bateu o pé.
— Quarto não quero. Quero sala crescente! A menina riu-se de novo e abraçou-a, dizendo:
— Assim, é assim que gosto de você, Emília. Bem asneirentazinha — e não sabichona como tem andado ultimamente. Asneira de boneca é a única coisa interessante que há neste mundo.
— E no outro mundo?
— No outro há muitas. Há fadas, ninfas, sacis, sereias e há o famoso Peter Pan que Faz-de-conta ficou de convidar.
— E ele vem?
— Não sei, mas acho que vem. Peter Pan me parece um grande moleque — e os moleques gostam muito de circo.
A conversa das duas continuou naquela toada por longo tempo.
Enquanto isso Pedrinho fez os últimos buracos e começou a fincar os paus. Finca que finca, bate que bate, soca que soca — três dias levou na luta suando que nem vidraça em manhã de frio lá fora. O circo foi tomando cara de circo de verdade e quando Pedrinho armou o pano, ficou tal qual o Circo Spinelli.
A alegria do menino foi imensa. Botou as mãos no bolso e extasiou-se diante de sua obra, cheio de orgulho. Depois gritou:
— Gentarada, venham ver!
Todos se reuniram no terreiro e admiraram a obra e bateram palmas.
— É extraordinário! — disse dona Benta à preta. — Este meu neto vai quando crescer virar um grande homem, não resta dúvida.
— É o que eu sempre digo, sinhá — confirmou tia Nastácia.
— Pedrinho é um menino que promete. Na minha opinião, ainda acaba delegado.
Ser delegado de polícia era para tia Nastácia a coisa mais importante que um homem podia ser — “porque prendia gente” — explicava ela.
Depois de construído o circo, começaram os ensaios. Pedrinho e a menina lá se trancaram com os artistas, não consentido que ninguém os fosse espiar. Maroto havia chegado e já estava no serviço de montar guarda à porta, para que nem dona Benta, ou a preta pudessem aproximar-se. Maroto tinha ordem de latir, de morder não.
Terminados os ensaios da primeira parte, Pedrinho cuidou da pantomima. Foi um custo! Essa pantomima tinha sido imaginada por Pedrinho de um certo jeito mas como todos metessem o bedelho saiu uma mexida completa. Emília fez questão de dar o título — e deu um título muito sem pé nem cabeça: O PANTASMA DA ÓPERA.
— Fhantasma, Emília, corrigiu Narizinho. Ph é igual a F, como você pode ver nesta caixa de “phosphoros”. Ninguém lê POSPORO. (Isso foi no tempo da velha ortografia etimológica.)
— Sei disso muito bem — replicou a boneca. — Mas quero que seja Pantasma, se não saio da companhia e não empresto o meu cavalinho, nem o meu carro, nem o meu tostão novo.
— Como é birrenta! A gente quando quer uma coisa precisa dar as razões e não ir dizendo quero porque quero. Isso só rei é que faz.
— Mas eu tenho minhas razões — tornou Emília. – Pantasma nada tem que ver com fantasma. Pantasma é uma idéia que tenho na cabeça há muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovelo, tem cotovelos nas costelas, tem costelas no...
— Chega! — berrou a menina tapando os ouvidos. — Não precisa contar o bicho inteiro. Fica Fhantasma, como você quer. Mas esse ÓPERA, que é?
— Não sei. Acho ópera um nome bonito e por isso o escolhi. Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. É o mais que posso fazer.
Os dois primos se entreolharam.
— Acho que ela está ficando louca — cochichou Pedrinho ao ouvido da menina.
––––––––––––––
Continua… Circo de Cavalinhos – IV– Chegam os convidados
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
— Eu, se fosse você, arranjava um tatu para fazer esse buracos. Os tatus são melhores do que cavadeira para buracos bem redondinhos.
— E eu, se fosse você — respondeu o menino de mau humor – ia pentear macacos.
Emília pôs-lhe a língua e começou a brincar com o carro de carretel. Atrelou nele o cavalo de rabo de pena, botou o tostão dentro e disse de brincadeira: “Agora, senhor cavalo, vá correndo ao palácio do rei e entregue-lhe este queijo de prata, que eu mando. Ao palácio do rei, não; ao palácio do príncipe. Ao palácio do príncipe, não; ao palácio do duque. Ao palácio do duque, não; ao palácio do marquês.
Ao palácio do... Abaixo de marquês o que é, Pedrinho? Perguntou ela, já esquecida da zanga.
Mas o menino não estava para prosa, porque justamente naquele instante havia dado uma martelada no dedo.
— É martelo — respondeu assoprando a machucadura.
— Martelo, martelo! Como é bonito! Por que você não vira o marquês de Rabicó em martelo?
— E por que você não vai lamber sabão, Emília?
A boneca botou-lhe a língua outra vez e foi queixar-se a Narizinho lá dentro. A menina estava justamente acabando o sol da roupa do palhaço; ia começar o saiote da dama que corre no cavalo.
— Aquele bobo! — disse a boneca fazendo um muxoxo.— Dei lhe uma idéia tão boa e o bobo me mandou lamber sabão. Bobão!
— Pedrinho, quando está trabalhando, não gosta que ninguém o atrapalhe, você sabe.
— Mas eu...
— Cale a boca e venha me ajudar na costura. Estou acabando este sol para começar o saiote com que você vai correr no cavalo.
— Que bom! Mas eu também quero um sol atrás.
Narizinho deu uma risada.
— Isso é um despropósito, Emília! Sol, só os palhaços usam. Você, quando muito, poderá ter uma lua.
— Lua cheia ou minguante?
— Acho que quarto crescente fica melhor. Emília bateu o pé.
— Quarto não quero. Quero sala crescente! A menina riu-se de novo e abraçou-a, dizendo:
— Assim, é assim que gosto de você, Emília. Bem asneirentazinha — e não sabichona como tem andado ultimamente. Asneira de boneca é a única coisa interessante que há neste mundo.
— E no outro mundo?
— No outro há muitas. Há fadas, ninfas, sacis, sereias e há o famoso Peter Pan que Faz-de-conta ficou de convidar.
— E ele vem?
— Não sei, mas acho que vem. Peter Pan me parece um grande moleque — e os moleques gostam muito de circo.
A conversa das duas continuou naquela toada por longo tempo.
Enquanto isso Pedrinho fez os últimos buracos e começou a fincar os paus. Finca que finca, bate que bate, soca que soca — três dias levou na luta suando que nem vidraça em manhã de frio lá fora. O circo foi tomando cara de circo de verdade e quando Pedrinho armou o pano, ficou tal qual o Circo Spinelli.
A alegria do menino foi imensa. Botou as mãos no bolso e extasiou-se diante de sua obra, cheio de orgulho. Depois gritou:
— Gentarada, venham ver!
Todos se reuniram no terreiro e admiraram a obra e bateram palmas.
— É extraordinário! — disse dona Benta à preta. — Este meu neto vai quando crescer virar um grande homem, não resta dúvida.
— É o que eu sempre digo, sinhá — confirmou tia Nastácia.
— Pedrinho é um menino que promete. Na minha opinião, ainda acaba delegado.
Ser delegado de polícia era para tia Nastácia a coisa mais importante que um homem podia ser — “porque prendia gente” — explicava ela.
Depois de construído o circo, começaram os ensaios. Pedrinho e a menina lá se trancaram com os artistas, não consentido que ninguém os fosse espiar. Maroto havia chegado e já estava no serviço de montar guarda à porta, para que nem dona Benta, ou a preta pudessem aproximar-se. Maroto tinha ordem de latir, de morder não.
Terminados os ensaios da primeira parte, Pedrinho cuidou da pantomima. Foi um custo! Essa pantomima tinha sido imaginada por Pedrinho de um certo jeito mas como todos metessem o bedelho saiu uma mexida completa. Emília fez questão de dar o título — e deu um título muito sem pé nem cabeça: O PANTASMA DA ÓPERA.
— Fhantasma, Emília, corrigiu Narizinho. Ph é igual a F, como você pode ver nesta caixa de “phosphoros”. Ninguém lê POSPORO. (Isso foi no tempo da velha ortografia etimológica.)
— Sei disso muito bem — replicou a boneca. — Mas quero que seja Pantasma, se não saio da companhia e não empresto o meu cavalinho, nem o meu carro, nem o meu tostão novo.
— Como é birrenta! A gente quando quer uma coisa precisa dar as razões e não ir dizendo quero porque quero. Isso só rei é que faz.
— Mas eu tenho minhas razões — tornou Emília. – Pantasma nada tem que ver com fantasma. Pantasma é uma idéia que tenho na cabeça há muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovelo, tem cotovelos nas costelas, tem costelas no...
— Chega! — berrou a menina tapando os ouvidos. — Não precisa contar o bicho inteiro. Fica Fhantasma, como você quer. Mas esse ÓPERA, que é?
— Não sei. Acho ópera um nome bonito e por isso o escolhi. Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. É o mais que posso fazer.
Os dois primos se entreolharam.
— Acho que ela está ficando louca — cochichou Pedrinho ao ouvido da menina.
––––––––––––––
Continua… Circo de Cavalinhos – IV– Chegam os convidados
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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