A JÚLIO FURTADO
Enquanto a idade fria e indiferente,
Os teus cabelos, pérfida, descora,
O teu trabalho e o teu esforço ingente
Cercam?te a fronte de perpétua aurora.
É que teu viver religiosamente
Nas oficinas em que se elabora
A grande força rejuvenescente
Da natureza, no esplendor de Flora!
Flora te é grata, Flora te reanima,
E te confere a eterna mocidade,
Porque, em seu culto, ergueste uma obra?prima.
Teu nome jeito não conhece idade:
É imorredouro para a nossa estima
E para a gratidão desta Cidade!
HOMENAGEM DO "CENTRO DOS VELEIROS"
Tu que hoje cais no misterioso abismo,
Depois de incerta e tropeçante viagem,
Por teu amargo e mórbido humorismo,
Eras do nosso meio a própria imagem.
Não te valendo o musical lirismo,
Não te valendo o apuro da linguagem,
Foste arrastado pelo pessimismo,
Que ataca os que perderam a coragem.
No entanto, o verso teu era um escudo
De ouro polido e de cristal perfeito,
Que ora chamava ao sonho, ora ao estudo.
Tu, que vítima foste deste estreito
E torpe meio, que avassala tudo,
Descansa em paz no derradeiro leito.
EM VIAGEM
Ao fulgor sideral desta noite radiosa,
Foi que te vi partir, indiferente e fria.
Como que entre nós dois, em turbilhão, raivosa,
A avalancha do. Pólo um mar de gelo abria.
E eras tu! Eras tu! pois, no meu peito, ansiosa,
Um maelstrom de amor minh'alma percorria;
E tudo em mim vibrava essa canção saudosa
De tristeza e de fel que o meu lábio exprimia.
Mas, que importa a glacial, a rude despedida,
Se dentro d'alma, alegre, o teu perfil risonho
Levava o resplendor que me aureoleia a vida?
Que importa eu seja, agora, o espectro tristonho
De uma antiga paixão imensa e indefinida,
Se ainda tu és a luz do meu único sonho?
Vetusta catedral que, ao tempo, te esborcinas,
Choras a torre audaz que, aos céus erguendo a agulha,
Os mistérios e os bens, de que a Igreja se orgulha,
Do alto mostrava aos fiéis, nas sonoras matinas.
Já, de ti, longe vão as práticas divinas
Com que davas ao incréu a sagrada fagulha
E ainda julgas ouvi?Ia, em fragorosa bulha,
A oscilar no teu flanco e a desfazer?se em, ruínas.
Abateste, eu me lembro, à tarde, de repente,
Dourando, no clarão de um último arrebol,
0 pó que te envolveu sutil e refulgente!
Torre morta! Afinal, do orgulho, no crisol,
Tombaste amortalhada, ampla e gloriosamente,
No purpúreo esplendor da agonia do sol!
SONETO
(Carta íntima)
Que este soneto, assím, feito ao correr da pena
Possa, filha, dizer?te o que a voz te não diz,
Porque este afeto excede a linguagem terrena,
E não tenho expressões se te vejo infeliz.
Se a vida te não corre, acaso, alegre e amena,
Ouve, em vez da minha, as mil vozes hostis
Em que buscam, os teus, nos infligir a pena
De curvarmos a alguém, humildes, a cerviz,
Tu, que foste, que ainda és e que serás, por certo,
Aquela que, jamais, do interesse ouve a voz
Mais longe estás de mim quando de ti estou perto!
Deves, porém, saber que, quando fico a sós,
A própria multidão, para mim, é um deserto,
Porque o mundo não és nem eu sou: somos nós!
ÚLTIMOS VERSOS
A arte, amigo, em noss'alma só se interna
Por caminho em que o uso é um empecilho,
É a dor, a eterna dor, a estrada eterna
Que eu, entre versos, pés sangrando, trilho,
Quantas vezes o atro fundo da cisterna
A água que dela sai mostra no brilho
É o fulgor de uma lágrima paterna
A refletir a imagem de um mau filho.
Fonte:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes. RJ: Livraria José Olympio, 1980.
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