CAPÍTULO PRIMEIRO
Era uma tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.
Se a leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr. James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica. James Hope viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um compatriota, já nascida aqui, e mais
tarde fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração. Do seu matrimônio, teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e contava 26 anos ao tempo em que começa este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.
Sara Hope era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.
Por quê?
Esta pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a sua querida Sara.
Na tarde em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope. Dispensem-me de lhes pintar as visitas do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo, cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava doentes, por glória da ciência e sossego da humanidade.
James Hope estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam obter as boas graças de Sara, tão visivelmente que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.
Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.
Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que os igualava, os desprezava a todos.
James Hope acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era interessante, e o James sabia narrar, talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e em geral o desejo de viajar toda a Europa.
— Há de gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.
— É o que me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a pena de uma viagem.
Mateus e Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao velho mundo.
— Mas por que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o senhor pode realizar esse desejo.
— Sim, mas há um obstáculo...
— Não sou eu, acudiu rindo Carlos Hope.
— Não és tu, disse o pai, é Sara.
— Ah! disseram os rapazes.
— Eu, meu pai? perguntou a moça.
— Três vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou. Creio que descobri a causa da resistência dela.
— E qual é? perguntou Sara, rindo.
— Sara tem medo do mar.
— Medo! exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.
O tom com que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais contemplavam a bela Sara, cujo rosto pouco a pouco readquiriu a calma habitual.
— Ofendi-te, Sara? perguntou James.
— Ah! isso não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa; houve apenas uma tal ou qual impressão de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...
— Sei que não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo ao mar...
— Pois não é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...
— Pela minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra visse que flores pode dar uma planta sua, quando transplantada às regiões americanas.
Miss Hope seria lá o mais brilhante símbolo desta aliança de duas raças vivaces... Miss Hope sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.
CAPÍTULO II
Nessa mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se comunicarem uns aos outros as impressões ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir, pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias a respeito de Sara.
Aquela noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas. Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações começaram por alusões vagas, mas não tardou que assumissem um ar de franqueza.
— Por que negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela ainda não se manifestou por nenhum.
— Nem se manifestará, respondeu Jorge.
— Por quê?
— Porque é uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?
— Não concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido que é uma mulher superior, e que...
Estacou. Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.
— E quê? disseram eles.
Andrade não deu resposta.
— Conclui a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.
— Creio que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...
— Talvez tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós em pleno romance.
— Sem nenhuma dúvida.
Mateus discordou dos outros.
— Talvez não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento. Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um homem de ciência, etc.
— Isso ainda pior, observou Andrade.
— Pior será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?
Concordaram os dois com esta opinião.
— Ora bem, continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...
— Paixões, respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz do que eu.
— Minha idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.
— Eu? disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...
— Nesse caso... disseram os dois.
— Oh! continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...
Dizendo isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.
— Estamos pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com as suas preferências será o feliz...
— Fazemos um steeple-chase, disse Andrade.
— Não fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos outros. Aquele que se julgar vencedor, declare-o logo; e os outros deixarão o campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.
Concordes neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.
CAPÍTULO III
Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado. Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.
Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.
— A poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.
Seria esse o ponto vulnerável da moça? Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.
Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:
— A poesia é a linguagem dos anjos.
— O amor e as musas nasceram no mesmo dia.
— A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.
E outras coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.
Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.
Esteve assim calada durante longo tempo.
— Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.
— A minha pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.
— É a bela hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!
Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.
— Gosta então muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.
— Ah! muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.
— Isto é sublime! exclamou a moça, batendo palmas.
Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara. A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.
— Creio que meu pai me chama, disse ela; vamos.
Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família. Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranqüila.
— Não tem que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...
Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.
Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que bem o merece:
“... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma
aspiração constante para a região serena dos espíritos,
um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando
duas almas da mesma índole se encontram, como as
nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e
diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas
estrofes!... Vem, meu anjo, passemos uma vida assim!
Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante,
porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...”
E cinco ou seis páginas neste gosto. Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.
Digamos a verdade toda. Jorge passou a noite sobressaltado. Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.
Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.
— Minha demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.
— Ah!
— E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.
— Nisto quê?
— Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a coisa fica entre nós...
Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.
— Minha mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...
— Concordo que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...
— Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.
E saiu.
Jorge ficou só.
Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado. Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.
— Safa! disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.
— Não sei disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.
Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara. Qual deles acertaria?
Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.
CAPÍTULO IV
Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.
Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais recalcitrante. Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.
Sara era uma rocha. A nada cedia.
Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.
Restava Andrade.
Teria ele descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela. Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.
James Hope participou alegre esta notícia aos três moços.
— Mas vão já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.
— Daqui a dois meses, respondeu o velho.
— Valha-nos isso! pensou Andrade.
Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo. Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.
Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.
Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.
A distração da moça era evidente. Em que pensaria ela?
De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.
— Sabem a novidade? disse ele.
— Que é? perguntaram todos.
— Caiu o ministério.
— Deveras? disse James.
— Que temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.
— O mundo caminha bem sem o ministério, observou outra.
— Oremos pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira. Não se falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.
Assim seria para os outros.
Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente. Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois ficara algum tanto pensativa. Por quê?
Tomou nota do incidente.
Noutra ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.
— Que livro será esse? perguntou ele sorrindo.
— Veja, respondeu ela apresentando-lhe o livro.
Era uma história de Catarina de Médicis. Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo. Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor. Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:
“Empurraram-me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”
A peça era o Pedro.
No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado. Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?
Pela razão de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira. Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.
— Venha, disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.
— Ah!
— É um excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.
— Excelente só? perguntou ele.
— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?
— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.
— Tem razão, disse Sara.
— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?
Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado. Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços. Adivinhara tudo.
Tudo o quê? Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.
CAPÍTULO V
Eram duas pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se. Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo. Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.
Amor é bom para as almas angélicas.
Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.
Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.
Que mais queria a moça?
Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono, poria esse trono em perigo.
Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras. Andrade compreendera isso.
E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça. Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o nosso Andrade.
A paz era para ele o ideal. E a ambição não existe sem perpétua guerra. Como conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?
Deixava ao futuro?
Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?
A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.
— Perco ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.
— Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.
— Ande lá, disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.
O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí. Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.
Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.
Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideira.
Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano. Quis disfarçá-lo, mas não pôde.
E um dia disse a Andrade:
— Por que razão a águia perdeu as asas?
— Qual águia? perguntou ele.
Andrade compreendeu a intenção dela.
— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.
Sara recuou e foi encostar-se à janela.
Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.
— Suspiras? perguntou Andrade.
Não teve resposta.
Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente no chão. Afinal, levantou-se o rapaz.
— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?
A moça não respondeu.
— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.
Deu-lhe um beijo na testa e saiu.
Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima. Verteu duas. Uma pelas ambições abatidas e desfeitas. Outra pelo erro em que estivera até então. Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.
Que mais lhe direi para completar a narrativa?
Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos. Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.
Fonte:
Machado de Assis. Histórias Românticas. RJ: Edições W. M. Jackson, 1938.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1872.
Nenhum comentário:
Postar um comentário