quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Maria Firmina dos Reis (Úrsula)


Ao publicar Úrsula, pela primeira vez em 1859, a autora, Maria Firmina dos Reis, assinou com o pseudônimo “Uma Maranhense”, estratégia muito utilizada por mulheres naquela época, por várias razões, entre elas porque deviam ficar com mais liberdade para expressar suas idéias, sem se preocupar tanto com as opiniões da sociedade. No caso de Maria Firmina, as novas idéias eram não somente sobre a condição feminina, mas também sobre a condição do negro.

Maria Firmina desconstrói igualmente uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afro-descendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, fato que, inclusive, nem todos os historiadores admitem. É também o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afro-descendente, que tematiza o assunto "negro" a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro no Brasil. Acresça-se a isto o gesto (civilizatório) representado pela inscrição em língua portuguesa dos elementos da memória ancestral e das tradições africanas. Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afro-descendente.

No prólogo da obra, a autora afirma saber que “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Por trás dessa declaração de modéstia, a escritora revelou sua condição social: o fato de não ter estudado na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum entre os homens educados de sua época, por si só indicava o lugar que ocupava na sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levantou sua voz através do que chamou “mesquinho e humilde livro”. E, mesmo sabendo do “indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros”, desafiou: “ainda assim o dou a lume”.

O romance trata de uma trágica história de amor entre dois jovens: a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo, e, aparentemente, é uma clássica história de amor impossível, como muitas de seu tempo. Porém, logo se nota, pelo tratamento dado aos personagens negros, às mulheres e à escravidão, que as preocupações presentes no romance são outras, pois, apesar de ter sido escrito num período de nacionalismo exacerbado, destoa da literatura produzida em sua época em muitos aspectos, já que não parece estar comprometido com o projeto romântico que era fundar a idéia de nação, construindo através de suas narrativas um ser nacional.

O prólogo estabelece o território cultural que embasa o projeto do romance. Era 1859, momento em que a prosa de ficção dava seus primeiros passos na literatura brasileira. Com seu gesto, sob muitos aspectos inaugural, Maria Firmina apontou o caminho do romance romântico como atitude política de denúncia de injustiças, há séculos arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher suas principais vítimas. Foi, portanto, como mulher e como afro-brasileira que a autora pôs-se a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada mãe, ao qual se acrescentaram os infortúnios de Tancredo, traído pelo próprio pai, e a tragédia dos escravos Túlio, Susana e Antero, que receberam no texto um tratamento marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana no Brasil. Essa solidariedade para com o oprimido é absolutamente inovadora se comparada àquela existente em outros romances abolicionistas do século XIX, pois nasceu de uma outra perspectiva, pela qual a escritora, irmanada aos cativos e a seus descendentes, expressou, pela via da ficção, seu pertencimento a este universo de cultura.

A narrativa se articula a partir de um triângulo amoroso formado por Adelaide, Tancredo e seu pai. Esse triângulo é desfeito com a derrota de Tancredo. Cria-se, então, um segundo triângulo formado por Tancredo, Úrsula e seu tio. Mas há, também, uma tríade, formada por três personagens negros, que vão aparecendo ao longo da narrativa, cuja importância vai tomando proporções cada vez maiores: Túlio, Mãe Susana e Antero que, juntamente com o jovem Tancredo, dão o tom diferente à narrativa. Um leitor desavisado pode entender seus papéis como mero acessório para o drama dos demais personagens, porém, ao ler com o cuidado que o romance merece, percebe-se que o drama dos escravos vai tomando proporções cada vez maiores, a ponto de prender a atenção do leitor.

Do ponto de vista formal, o texto marca-se pela linearidade narrativa e por personagens desprovidos de maior complexidade psicológica. Tais figuras vivem quase sempre situações extremas, marcadas pelo acaso e por mudanças bruscas do destino. Situando Úrsula no contexto da narrativa folhetinesca, pode-se aquilatar o quanto a escritora se apropria das técnicas do romance de fácil aceitação popular, a fim de utilizá-las como instrumento a favor da dignificação dos oprimidos, em especial a mulher e o escravo. O triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e pelo tio Comendador, que surge como encarnação de todo o mal sobre a terra, ocupa o plano principal das ações. Além de assassinar o pai e abandonar a mãe da protagonista anos e anos entrevada numa cama, o Comendador compõe a figura sádica do senhor cruel que explora a mão de obra cativa até o limite de suas forças. Ao final, enlouquecido de ciúmes, o vilão mata Tancredo na própria noite do casamento deste com Úrsula, o que provoca a loucura, o posterior falecimento da heroína e o inconsolável remorso que também leva o tio à morte, não sem antes passar pela libertação de seus escravos e pela reclusão num convento. O texto descarta o final feliz e opta pelos esquemas consagrados no romance gótico a fim de estabelecer a empatia com o público.

Todavia, o livro cresce na medida em que emergem os dramas dos escravos. A narrativa se inicia com o jovem Túlio – único cativo da decadente propriedade da mãe de Úrsula – salvando a vida de Tancredo num acidente. Não por acaso, o primeiro capítulo, destinado à apresentação do cenário e dos dois personagens, se intitula “Duas Almas Generosas” e logo sabe-se porquê. De imediato, destaca-se a humanidade condoída do sujeito afro-descendente, cujo perfil dramático e existencial vai além da mera força de trabalho ou do papel de porta-voz do ódio rancoroso dos quilombolas.

Na construção dos personagens nota-se uma valorização das características próprias dos afro-descendentes, rompendo-se, assim, com o estereótipo racial que sempre deu ao negro uma conotação negativa – o que podemos perceber na seguinte descrição de Túlio que é uma verdadeira exaltação à raça negra:

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar 25 anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a escravidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco (Reis, 2004: 22).

A composição do personagem já indica a perspectiva que orienta a representação do choque entre as etnias no texto de Maria Firmina dos Reis. A escravidão é “odiosa”, mas nem por isto endureceu a sensibilidade do jovem negro. Eis a chave para compreender a estratégia da autora de combate ao regime sem agredir em demasia as convicções dos leitores brancos. Túlio era vítima, não algoz. Sua revolta se fazia em silêncio, pois não tinha meios para confrontar o poder dos senhores. Não os sabotava nem os roubava, todavia, como os escravos presentes em As Vítimas-algozes, de Joaquim Manoel de Macedo (1869). Seu comportamento pautava-se pelos valores cristãos, apropriados pela autora a fim de melhor propagar seu ideário:

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. (Reis: 2004). Ressalte-se de início que não se trata de condenar a escravidão unicamente porque um escravo específico possui um caráter elevado. Trata-se de condenar a escravidão como instituição. E a autora o faz partir do próprio discurso religioso oriundo da hegemonia branca, que afirmou serem todos irmãos independentemente da cor da pele. Se pensar em termos do longínquo ano de 1859 e da longínqua província do Maranhão, pode-se aquilatar o quanto tal postura tem de avançado, num contexto em que a própria Igreja Católica respaldava o sistema escravista.

E não é só. O primeiro capítulo objetiva apresentar os dois personagens masculinos que irão encarnar a positividade moral do texto: um branco e um negro. Assim eles entram em cena, primeiro Tancredo; depois, Túlio. Entretanto, ao utilizar-se do artifício do acidente, a autora faz com que o segundo tome a frente do primeiro e cresça enquanto personagem. Já de início, o leitor passa a conhecê-lo em suas virtudes, enquanto do outro sabe apenas do atordoamento mental que provocou o acidente. Há mais: ao despertar do desmaio, Tancredo deparou-se com o negro à sua frente e, apesar da febre que já lhe turvava novamente os sentidos, vislumbrou no escravo o homem bom que o salvou:

O cavaleiro começava a coordenar suas idéias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo, arrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o salvara. (Reis: 2004)

O negro não foi apenas colocado na trama em pé de igualdade frente ao rico cavaleiro. Mais que isto, ele foi a “base de comparação” para que o leitor aquilatasse o valor do jovem herói branco. Ou seja, no discurso do narrador onisciente, o negro é parâmetro de elevação moral. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores numa sociedade escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas” a respeito da inferioridade natural dos africanos. Assim fazendo, a voz que narra mostra-se desde o início comprometida com a dignificação do personagem, ao mesmo tempo em que expressa com todas as letras qual o território cultural e axiológico que reivindica para si: o da afro-descendência. Esse pertencimento se traduz ainda na simpatia que a autora devota a Túlio e aos demais personagens submetidos ao cativeiro.

Ao abrigar o cavaleiro ferido na casa de sua senhora, o escravo propicia o encontro dos dois e o início da paixão que os leva à breve felicidade. Mais uma vez, sobressaem nesses momentos o zelo e a dignidade de Túlio, que termina ganhando a alforria como sinal de gratidão do homem branco. Um forte elo de amizade passa a uni-los e, a partir de então, o negro torna-se companhia inseparável de Tancredo. Ele faz a figura do jovem de bom caráter, que respeita a senhora por não tê-lo maltratado, e que se julga em dívida com aquele que o libertou. No entanto, sua nova condição é desmascarada por Mãe Susana, quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado – que afinal, irá conduzi-lo à morte – comparando-a à vida que levava em África:

- Tu! tu livre? Ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. (...) Liberdade... eu gozei em minha mocidade! – continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. (Reis: 2004)

Além de reforçar a própria condição afro-descendente do texto, a entrada em cena da velha africana confere maior densidade ao sentido político do mesmo. Mais uma vez, o território de origem é mencionado sem rodeios, ao contrário do que se vê em outros escritos do século XIX, inclusive assinados por afro-brasileiros. Sobressai, então, a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão representada pelo trabalho forçado. É Mãe Susana quem vai explicar a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a de um alforriado num país racista. Para tanto, a velha escrava recordava sua terra natal, a infância livre, o amor de seu companheiro e a vida feliz que levavam junto à filhinha até o dia em que foi capturada pelos “bárbaros” mercadores de seres humanos. Segue-se a narrativa do aprisionamento e da crueldade com que foi tratada ao deixar para sempre “pátria, esposo, mãe, filha, e liberdade”:

Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (...) Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa. (REIS: 2004)

Sobressai de imediato a postura do sujeito da rememoração, na qual o eu individual deságua num nó coletivo. É o discurso do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz dos escravizados. Voz política que denunciava, em plena vigência do espírito das luzes, o conquistador europeu como bárbaro, invertendo de forma inédita a acusação racista, corrente na Europa e presente no pensamento de filósofos do porte de Hegel, que excluía a África do mundo civilizado. O romance prossegue com o verismo da descrição sobrepujando-se à ficção propriamente dita. Com isto, o texto ganhou em densidade histórica e humana o que perdeu porventura em termos de aprofundamento psicológico dos personagens e do próprio andamento da trama, suspendendo-se esta para que se ouvisse a versão das vítimas. A narrativa da vida de Mãe Susana, na África, e de seu aprisionamento, ocupa todo o nono capítulo e foi inscrita no texto justamente no momento em que se deu a alforria de Túlio a fim de relativizá-la enquanto conquista da liberdade.

O discurso anti-escravista perpassa praticamente toda a obra de Maria Firmina.

Além das sofridas lembranças de Mãe Susana e da moldura cristã que preside a nova condição de Túlio, Úrsula trata ainda de um outro tipo de escravo: o que perde a auto-estima e se entrega ao vício. Surge então a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso dos costumes de sua terra e do “vinho de palmeira” bebido no ritual africano do descanso semanal, que Maria Firmina nomeia “festa do fetiche”, Antero cumpre na trama o contraponto dramático ao caráter elevado de Túlio. Além disso, ao ressaltar o vício do personagem, o texto escapa à idealização pela qual todo negro seria perfeito e todo branco ruim. Com Antero, fechou-se a estrutura trina encimada por Mãe Susana, e essa tríade negra vai aos poucos seqüestrando a atenção do leitor e superando em importância o previsível triângulo amoroso vivido pelos personagens brancos.

Assim, entre a positividade e a ingênua bondade do jovem afro-brasileiro e a negatividade representada pela decadência do velho africano, Maria Firmina abre espaço para o discurso de Mãe Susana, elo vivo com a memória ancestral e com a consciência da subordinação. Espécie de alter ego da romancista, a personagem configura aquela voz feminina porta-voz da verdade histórica e que pontua as ações, ora com comentários e intervenções moralizantes, ora como verdadeira pitonisa a tecer passado, presente e futuro nos anúncios e previsões que, por um lado, preparam o espírito do leitor e aceleram o andamento da narrativa e, por outro, instigam a reflexão e a crítica. Essa voz feminina emerge, pois, das margens da ação para carregá-la de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido: o da afro-brasilidade.

Fontes:
Eduardo de Assis Duarte, Prof. de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UFMG | Adriana Barbosa de Oliveira, Mestra no Programa de Estudos Literários - UFMG, disponível em Passeiweb

Nenhum comentário: