sábado, 18 de fevereiro de 2023

Tertúlia da Saudade 01

 

André Carneiro (Do outro lado da janela)

Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados... Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. Alguns filmes terminavam por volta das três horas da manhã. O técnico foi chamado de novo, e tudo se repetiu, até que ele resolveu vender o aparelho por qualquer preço e comprar outro, com sacrifício, o melhor e o mais caro nos anúncios.

Até a meia-noite a imagem estava nítida, mas meia hora depois apareceu a sombra, vaga e móvel, como se fosse parte de outra transmissão. A mancha não era estática, tinha movimento, suas bordas modificavam-se, dissolviam-se como algo em crescimento, em evolução. É isso, em evolução. Ele notou que a mancha era uma coisa viva, às vezes tinha tanto interesse quanto os filmes. Ele se perturbava olhando para aquilo, tentando descobrir o que era, o que significava, enquanto se esforçava para não perder o que estava acontecendo atrás, no filme que acompanhava. Atrás? Por que atrás? A mancha não estava na frente, misturava-se à imagem do programa transmitido.

Ele já mudara a televisão de lugar, comprara filtros especiais, inutilmente. Embora não falasse com ninguém do prédio, um dia, no elevador, quando conversavam sobre novelas, criou coragem, perguntou se eles notaram um defeito, uma leve mancha na imagem. Não, ninguém vira nada parecido.

Aos poucos, desistiu de lutar contra a mancha. Não chamaria mais os técnicos, não tentaria eliminar o defeito. Estava aprendendo a conviver com ela. Entretanto, a mancha não era somente algo que tapava o que estava atrás. Ela vibrava e se mexia com tal sutileza que parecia um pequeno programa dentro do outro que ele via. Surpreeendeu-se, um dia, ao perceber que a mancha estava também aparecendo à tarde, nem se lembrava há quanto tempo. Agora, quando o programa não era de seu especial interesse, ele olhava para a mancha, acompanhava as suas bordas, tentava calcular quanto ela tinha crescido e até onde ia chegar.

Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreeendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

A mancha estava lá. Agora bem maior.

Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem , percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. Comia coisas frugais, olhando para o vídeo. Já não importava selecionar canais, procurar programas. A mancha estava ali e fixando-a com atenção revelava coisas, fisionomias que ele não identificava, mas lhe pareciam importantes. Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

Assistia aos programas até o fim. Quais programas? Não saberia descrever ou dar o título de nenhum. Ele via televisão e a mancha não existia mais. Era o próprio programa. O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram... o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas... não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 31 jan 2001. Disponível em CARNEIRO, André. A máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: EDUFSCar, 1997. p.21-23.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 11 – Madrigais

LAURÉIS

“Quanta razão há de te amar."
(Ct. 1.4)

Tua face é formosa,
É quente a tua mão,
Porém, muito mais
É o teu coração.

Teus lábios vermelhos
Só trazem saudade,
Porém, mais ainda
Traz tua bondade.

Teu timbre de voz,
Por si, tem alento,
Mas nada supera
Teu temperamento.

Cabelos em pluma
Qual véu de inocência,
Mas nada ao valor
Da tua consciência.

Teus olhos são virgens?
Teus seios - candura,
Mas quanto é maior
A tua alma pura.

Tua boca é preciosa
Como ouro de lavra,
E não se compara
Com tua palavra.

Teu ser é perfume
De mil manacás,
Mas é superior
O amor que me dás.

Teu ser, por inteiro,
É bela canção;
És letra de um hino,
És minha oração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERDOA-ME

"Volta, volta, ó Sulamita.”
(Ct.7.1)


Perdoa-me, Amor,
A intransigência;
Olha pra mim
Dá-me clemência;
Não vai deixar-me
Aqui sozinho;
Preciso muito
Do teu carinho!

Não me olhes mais
Com duros olhos!
- Olhos de águia
Nos meus escolhos!
No rosto lindo
Eu vi rancor,
Dilacerando
O meu amor.

Eu sou deserto
Perdido ao longe,
Que na oração
Medita o monge;
Eu sinto a brisa
Beijando a areia,
Teu doce hálito,
Linda Sereia!

Canta pra mim!
Sibila ao vento!
Ó Serenata,
És acalento!
Tens o amor
Que me inebria!
És meu manjar
- Minha ambrosia.

Oh, triste vida!
Oh, vida agreste!
Naquela escarpa
Há flor silvestre...
O sonho meu
É ter meu céu,
Quando provar
Teu doce mel...

Perdoa-me logo,
Se te feri,
Dá-me um presente:
Reza pra mim!
Fica comigo,
Se teu eu for!
Dá-me um sorriso!
- Eu quero amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERMUTA DE AMOR

"Tua voz é doce, e delicado o teu rosto”
(Ct. 2.14)


Permutarei contigo um bem precioso,
Façamos, em cartório, um bom negócio;
Que o digam a razão e o sentimento,
Porque serei de ti bem mais que sócio.

Que o poderoso cérebro, qual juiz,
Testemunhe também o nosso engenho;
Se me deres pra sempre o teu amor,
Dar-te-ei eternamente o amor que tenho.

Para não acontecer alguma dúvida,
Com tintas arteriais fiquem gravados
Os termos do contrato, ultra* "sui generis"**,
Em duas almas gêmeas registrados;

"Com ternura exclusiva visceral,
Quero que o teu amor sempre me ame;
E o véu da tua sombra bem me cubra,
Com puro pensamento, por mim, clame.

Irei viver - viver por teu amor,
Vencerei este mundo em torvelinho;
Serei gigante à frente das procelas,
Farei do leão um mero cordeirinho.

Quão milagrosa a força deste amor,
Que vai lançar o mal na sepultura;
Fará do vingador mundo perverso
Parnaso*** colorido de aventura.

= = = = = = = = =

* Ultra: Além.
** Sui generis: Locução adjetiva latina: Aquilo que não apresenta analogia com nenhuma outra (pessoa ou coisa). Inédito.
*** Parnaso: Fig. - Lugar de delícias.

Fonte:
Enviado pelo poeta. Disponível em Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Monteiro Lobato (Jeca Tatu: a ressurreição)

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.

Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha ideia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali murmuravam:

– Que grandíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.

– Por que não traz de uma vez um feixe grande? – perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:

– Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.

- Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.

- Bebo para esquecer.

- Esquecer o quê?

- Esquecer as desgraças da vida.

E os passantes murmuravam:

- Além de vadio, bêbado...

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça...

As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.

- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:

- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.

- Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?

- É que ele mata.

- E porque você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

- Quá! Não paga a pena...

- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.

- Amigo Jeca, o que você tem é doença.

- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.

- Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.

- Anqui... o quê?

- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.

- Essa tal maleita não é a sezão?

- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

VI

O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?"

- Ouvi, sim, senhor!

- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.

- Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras*.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

VII

Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.

- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota pra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.

Jeca abriu a boca, maravilhado.

- Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:

- Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.

- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.

- E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!...

- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.

- Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem pra remédio...

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.

- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano".

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a

- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira...

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...

XI

Ele, que antigamente só trazia três pauzinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.

- Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?

- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.

- Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!

- Quero mostrar a esta paulama (pauzada) quanto vale um homem que tomou remédio de Nhá Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.

- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!

XII

Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

- Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:

- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel...

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:

- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII

Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!

- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!

- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, veem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!...

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:

- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"...

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.

- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.

- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...

E ninguém duvidava de nada.

- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...

XVI

A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame...

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.

Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.

- Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.

O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..."

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.

Nota da redação:
Este conto foi adotado como peça publicitária do Laboratório Fontoura. Adaptado em história em quadrinhos ou na forma de folheto, ou ainda fazendo parte de almanaques, teve até os anos 60 uma tiragem de cerca de 18 milhões de exemplares. Há testemunhos de que sua leitura transformou a vida de muita gente.
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* Ringideira = o mesmo que rangedeira. Porção de couro ou de cortiça, que, colocada entre a palmilha e a sola do calçado, produz rangido quando se anda.
Fonte:
Projeto Memória. Conto em domínio público.

Jaqueline Machado (A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói)

Ivan Ilitch, este é o nome do cara, quer dizer, do personagem de Liev Tolstói, um juiz do interior que não vivia e cedia total confiança às normas da sociedade. Era um verdadeiro copiador de mentiras, um agradador de quem por ele não tinha amizade.

Tinha esposa e filhos, mas pouca estima pelo lar que, longe dos olhares externos, era conturbado. Ninguém se entendia. A casa e os móveis eram feitos conforme mandava as normas da época. A forma de trocar tratamentos uns com os outros, também. As mesmas roupas, os mesmos sorrisos, os mesmos vinhos. Nada podia fugir às regras.

Ivan nunca buscou realizar sonhos, encontrar o verdadeiro amor. Era um homem acomodado e de uma vida incolor, demasiadamente simples. Provavelmente suas células nunca sentiram a vibração prazerosa, que é dar uma boa gargalhada, e nem a emoção em realizar um sonho de infância.  

Levava uma vida sem emoções.  Até que, certo dia, ainda jovem, recebeu a notícia de que estava doente. E dali em diante, a situação foi piorando. Em seu leito, seu corpo se contorcia em dores de uma doença desconhecida.  Foi só então que se deu conta de que sua vida poderia ter sido totalmente diferente. E lamentou os amores não vividos, os sorrisos que ficaram presos, a liberdade de ser quem poderia ter sido e não foi. Só que o arrependimento veio tarde demais e Ivan Ilitch morreu abandonado, suplicando por um momento de felicidade, aos quarenta e cinco anos.

Essa história não é de romance, mas de vida real, faz pensar o que leva uma pessoa... Uma só não, a maioria, a ignorar sua personalidade, suas vontades, para viver de maneira pálida, fria, e segundo a vontade da falsa realidade pregada por uma sociedade inconsequente?

Eis uma boa questão para ser refletida...

A vida sem problemas é sem graça, mas sem momentos felizes, torna–se inexistente. Por isso, lute, caia, levante, ria das próprias desgraças, mas não deixe de viver! Independente de qualquer coisa não deixe de ser você.

Fonte:
Texto e capa do livro enviados pela autora.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 11

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 75

Tantas vezes vemos a alegria, o entusiasmo, a vibração dos outros, e ficamos contentes. Mas não há satisfação pessoal, porque o verdadeiro alimento do nosso bem-estar vem de nós mesmos - nossa visão de mundo, nossas realizações, nosso sucesso. E não enxergamos pequenos detalhes que são grandes insufladores de dias plenos de vida. Claro, gostamos de ver o que acontece na vida do próximo, mas a realização parte de nós mesmos, na convivência, no trabalho, no lazer.

Podemos fazer muito, realizamos pouco. E reclamamos. Não paramos para pensar que nada cai do céu graciosamente, a não ser chuva. Talvez devêssemos usar para nós a frase que Sócrates encontrou no templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". É simples, é profunda, é verdadeira.

Voltar-se para a intimidade, ocupando-se menos com as coisas materiais, povoando alguns vazios dentro de nós, cultivando as flores da estação e os frutos que surgem no caminho. Construir a alteridade, buscar a utopia que está no horizonte.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.


Sandoval Ferreira (O matuto e o fusca véio)

 

 
Havia recebido o livro do pernambucano de Iati, Sandoval Ferreira, “Meu Sertão em 12 Versos”, composto de vários “causos” em cordel, além de um DVD com o próprio autor declamando suas poesias. Já conhecia o trabalho deste escritor desde 2009, quando postei “Poesia da Água” com uma breve biografia. 

Sandoval (1983) mora em Guaranhuns/PE, é técnico agrícola e cursou a Faculdade de Marketing.

Transcrevo abaixo um “causo” que consta em seu livro, o primeiro que botei os olhos quando abri o seu livro.

Comprei um fusca fiado
Em catorze prestação
A primeira eu já paguei
O resto no pago não
É que o peste do fusca
Só na base do empurrão
 
Foi essa a reclamação
Do matuto que comprou
Um fusca véio usado
Que um malandro lhe passou
E ele voltou arretado
Pra matar o vendedor

Ele disse ao doutor
Dentro da delegacia
Nunca mais eu vou pagar
Por aquela porcaria
E Se eu não matá-lo hoje
Mato ele no outro dia

Grande foi a gritaria
E tamanha confusão
O matuto já nervoso
O vendedor com queixão
E o delegado no meio
Pra resolver a questão

O matuto disse então
O fusca não tem amortecedor
Arranhão na lateral
Falta um retrovisor
O banco já tá rasgado
E o pneu já estourou

O vendedor reclamou
Dessa vez bem irritado
Não vendi o fusca novo
Te vendi um fusca usado
Agora quer devolver ?
Tu não pegou emprestado

Pra o azar do delegado
O matuto retrucou
Só comprei aquela peste
Porque você me empurrou
Fui subir a ladeira
Ele bateu o motor

Tá vendo o senhor doutor
Ele quer subir ladeira
Comprou um fusca 69
Não uma égua andadeira
Mande esse cabra ir embora
Mode deixar de besteira

Acabou a brincadeira
Podem parar a zoada
Isso aqui não é um circo
Pra ficar com palhaçada
Ficam os dois no xadrez
E a coisa tá encerrada

Isso não meu camarada
Retrucou o vendedor
Devolvo o dinheiro dele
Dou um trocado ao senhor
Faço o que você quiser
Mas pra cadeia eu não vou

Tá muito bem seu doutor
Do jeitinho que eu queria
Eu sou um home direito
Não gosto de ingrizia
Ele pega o meu fusca
E se acaba a agonia

Livres da delegacia
Dessa vez mais conformado
O vendedor foi buscar
O fusca véio quebrado
E pra se livrar da bomba
Deu de graça ao delegado.


Fontes:
FERREIRA, Sandoval. Meu sertão em 12 versos: causos nordestinos.
Enviado pelo autor.

Guerra Junqueiro (A Mãe)


Uma desventurada mãe, louca de dor, velava o berço de seu filhinho agonizante. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava ansiosa, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer. A mãe, no entanto, causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.
 
Nisto bateram à porta, e entrou um velho miserável embuçado numa manta de arrieiro. Era em Dezembro. Lá fora, no escuro, um lençol de neve, e o vento cortando que nem uma navalha.

O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se, a chegar as brasas uma caneca de cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, tomou-lhe a mãozinha descarnada e disse para o velho:

– Oh! Nosso Senhor não mo há de levar! Não é verdade?

E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de modo estranho, em ar de duvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas deslizavam-lhe em fio pelo rosto. Sentiu-se estonteada, com um grande peso na cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou levemente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.

– Que é isto?! exclamou, lançando em roda o olhar alucinado. No berço ninguém! O velho partira, roubando-lhe a criança.

E a triste mãe, soluçante, correu desgrenhada por montes e vales, à procura do filho. Encontrou uma mulher no meio da neve vestida de luto.

– A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Vi-a a sair muito ligeira, levando o teu filho. Anda mais do que o vento, e o que ela rouba não torna a dar.

– Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-me-o! Diz-me-o pelo amor de Deus!

– Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de negro. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes te ouvi cantar, debulhada em lágrimas.

– Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.

A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram ainda mais do que as palavras.

No fim disse-lhe a Noite:

– Toma a direita, pela floresta escura de pinheiros. Por ai e que a Morte seguiu com o teu filho.

A mãe correu para a floresta. No meio, porém, dividia-se o caminho, e não sabia que direção escolher. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.

– Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou a mãe.

– Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho sem me aqueceres primeiro no teu seio, porque estou gelado.

E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima; tal é o calor febril do selo de uma pobre mãe angustiosa.

E o matagal ensinou-lhe o caminho por onde ela devia ir. Foi andando, andando, até que chegou: à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era profundo de mais para o passar a vau. Contudo urgia atravessá-lo. Num ímpeto do seu amor, arrojou-se de bruços a ver se poderia beber-lhe toda a água. Impossível! Lembra-se que Deus, compadecido, faria talvez um milagre…

– Não! Não és capaz de me esgotar, disse-lhe o lago. Sossega, e entendamo-nos. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave que as pérolas mais ricas que tenho possuído. Querendo, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: aí habita a Morte; e, as flores e as arvores que estão lá dentro, é ela quem as trata; em cada flor e em cada árvore habita a vida de um coração humano.

– Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! soluçou a mãe.

E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.

O lago então, arrebatando-a numa onda, depositou-a na outra margem, onde se erguia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe ninguém discriminava se era um monumento de arte ou uma grande montanha cheia de cavernas, grutas e florestas. Mas a pobre mãe nada podia ver, porque tinha dado os seus olhos.

– Ah! como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.

– A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste, tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?

– Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Anda, compadece-te de mim, e diz-me onde está o meu filho.

– Eu não o conheço, e tu és cega, tornou a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as levar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sitio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e descobrirás talvez o coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?

– Já nada me resta, disse a pobre mãe suspirando. Mas iria até ao fim do mundo buscar o que tu quisesses.

– Fora daqui, não preciso de coisa alguma, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros. Agradam-me. Troca-los-ei pelos meus cabelos brancos, que têm mais de mil anos.

– Só isso? volveu a mãe. Ei-los, dou-vos de boa vontade.

E arrancou os esplêndidos cabelos, o seu orgulho na juventude, outrora, recebendo em volta os cabelos curtos e inteiramente brancos da corcovada feiticeira.

Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.

Viam-se debaixo de campânulas de cristal, jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas a estourar de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas. Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois, num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes.

Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, quase a rebentar; mias viam-se também florzinhas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, cuidadas com esmero delicadíssimo. Tudo isto representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.

A velha queria-lhe mostrar tantas e tantas coisas misteriosas, porém a mãe impacientada rogou-lhe que a levasse aonde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o arfar, e, depois de haver tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração de seu filho.

– É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.

– Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte ganhará medo porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem Ele o permitir.

Nisto zuniu um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte que se aproximava.

– Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?

– «Sou mãe», balbuciou ela.

E a Morte estendeu a mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.

A mãe, porém, defendia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não magoar uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados de Dezembro.

– Não podes nada comigo! disse a Morte.

– Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe.

– É verdade. mas eu não faço senão o que Ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as, para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.

– Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que eu o encontro!

Suplicava e gemia. Tudo inútil: a Morte, impassível. Agarrou então em duas flores lindíssimas e gritou a Morte:

– Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só estas, mas todas as flores que estão aqui!

– Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração das outras mães!

– Outras mães! balbuciou a infeliz mulher, largando logo as flores.

– Aqui tens os teus olhos, volveu a Morte. Brilhavam com tal esplendor que os extrai do lago. Não sabia que eram teus, Mete-os nas Orbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que destruías, arrancando as flores. Contemplarás na miragem da água a sorte destinada a essas duas flores, e a que teria o teu filho, se porventura vivesse.

Inclinando-se então sobre a cisterna, viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e trágicos, e logo depois cenas inefáveis de miséria, de angústias e desolação.

– Nisto que vejo, tornou a mãe aflitíssima, não distingo qual a sorte que Deus destinava ao meu filho.

– É me possível revelar-te, acrescentou a Morte. Porém no que viste podias ler o destino do teu filho.

A mãe, alucinada, caiu de joelhos, exclamando:

– Suplico-te, diz: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade? Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horrendas. O meu querido filho! Quero-lhe mais que à vida. As angústias que sejam todas minhas. Leva-o para o reino dos Céus. Esquece estas lágrimas, estas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que te disse.

– Não compreendo, respondeu a Morte: Queres o teu filho ou desejas que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te?

Então a mãe, alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos, e, dirigindo-se a Deus, exclamou:

– Não me atendas, Senhor, se reclamo no fundo do coração contra a tua vontade que é sempre boa e sempre justa! não me ouças, meu Deus!

E deixou cair a fronte sobre o peito, mergulhada numa alegria dilacerante.

E a Morte, arrancando o pequenino açafroeiro, lá o foi plantar nos jardins da luz do Paraíso.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância. Livro em Domínio Público

Tautologia (Vícios de Linguagem)


A tautologia (do grego “dizer o mesmo”) é , na retórica, um termo ou texto que expressa a mesma ideia de formas diferentes. Como um vício de linguagem pode ser considerada um sinônimo de pleonasmo ou redundância. A origem do termo vem de do grego tautó, que significa “o mesmo”, mais logos, que significa “assunto”. Portanto, tautologia é dizer sempre a mesma coisa em termos diferentes.

Em filosofia e outras áreas das ciências humanas, diz-se que um argumento é tautológico quando se explica por ele próprio, às vezes redundante ou falaciosamente. Por exemplo, dizer que “o mar é azul porque reflete a cor do céu e o céu é azul por causa do mar” é uma afirmativa tautológica. Um exemplo de dito popular tautológico é “tudo o que é demais sobra”. Da mesma forma, um sistema é caracterizado como tautológico quando não apresenta saídas à sua própria lógica interna, conforme os exemplos: exige-se de um trabalhador que tenha curso universitário para ser empregado, mas ele precisa ter um emprego para receber salário e assim custear as despesas do curso universitário; exige-se de um trabalhador que ele tenha experiência anterior em outros empregos, mas ele precisa do primeiro emprego para adquirir experiência.

Observe a lista abaixo, e se utiliza alguma, procure fugir deste vício:

A partir de agora;
A razão é porque;
A seu critério pessoal (se é a seu critério, só pode ser pessoal);
A última versão definitiva (se a versão é definitiva, claro que é a última)
Abertura inaugural;
Abusar demais;
Acabamento final;
Almirante da Marinha (Só existem almirantes na Marinha);
Amanhecer o dia (amanhecer a noite você já viu?);
Anexo (a) junto a carta (se está anexo, é claro que está junto);
Atrás da retaguarda;
Beco sem saída;
Brigadeiro da Aeronáutica (Só existem brigadeiros na Aeronáutica);
Certeza absoluta;
Colaborar com uma ajuda / auxílio;
Colocar algo em seu respectivo lugar;
Com absoluta correção/ exatidão;
Comparecer pessoalmente (em pessoa);
Compartilhar conosco;
Completamente vazio;
Comprovadamente certo;
Continua a permanecer;
Conviver junto;
Criação nova;
Criar novos empregos;
De comum acordo;
Descer pra baixo;
De sua livre escolha;
Demasiadamente excessivo;
Despesas com gastos;
Destaque excepcional;
Detalhes minuciosos;
Discussão tensa;
Elo de ligação;
Em caráter esporádico;
Em duas metades iguais;
Empréstimo temporário (todo empréstimo é temporário);
Encarar de frente;
Entrar pra dentro;
Erário público (erário é o tesouro público, por isso, basta dizer somente erário);
Escolha opcional;
Exceder em muito;
Expectativas, planos ou perspectivas para o futuro.
Expressamente proibido;
Exultar de alegria;
Fato real;
Ganhar grátis;
General do Exército (Só existem generais no Exército);
Goteira no teto;
Gritar/ Bradar bem alto;
Há anos atrás;
Habitat natural;
Imprensa escrita;
Individualidade inigualável;
Inovação recente;
Interromper de uma vez;
Juntamente com;
Labaredas de fogo;
Manter o mesmo time;
Matriz cambiante;
Medidas extremas de último caso;
Monopólio exclusivo;
Multidão de pessoas;
Nos dias … , inclusive (ex: nos dias 8, 9 e 10, inclusive);
Obra-prima principal;
Outra alternativa;
Países do mundo;
Palavra de honra;
Passatempo passageiro;
Pessoa humana
Planejar antecipadamente;
Pode possivelmente ocorrer;
Preconceito intolerante;
Propriedade característica;
Quantia exata;
Repetir outra vez / de novo;
Retornar de novo;
Sair para fora;
Sentido significativo;
Sintomas indicativos;
Sorriso nos lábios;
Sua autobiografia;
Subir pra cima;
Sugiro, conjecturalmente;
Superávit positivo;
Surpresa inesperada;
Terminantemente proibido;
Todos foram unânimes;
Última versão definitiva;
Um mês de mensalidade;
Vandalismo criminoso;
Velha tradição;
Vereador da cidade;
Viúva do falecido;
Voltar atrás.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 47

 

Aparecido Raimundo de Souza (N... q... l... i...)


GABRIEL ENTRA sem tocar a campainha da casa de seu amigo Duda e, ao dar com ele, sentado na sala, diante da TV tela plana, vai logo indagando:
— Duda, o que você está fazendo?

Duda sorri, mostrando a perfeição dos dentes, e, sem olhar para seu interlocutor, responde austero e ríspido, destacando, uma por uma, as letras:
— Além de estar vendo meus desenhos preferidos, N... q... l... i...
— Como disse?
— N... q... l... i...
— Não entendi, Duda. Traduza.
— Traduzir? Como? Não faço à mínima!

Gabriel insiste:
— Explique essas quatro letras. N... q... l... i... repete o recém chegado se abrindo numa fisionomia carrancuda. — Está querendo me fazer de otário?
— Não, Gabriel. Longe de mim essa ideia. Juro por Deus que não sei...
— Não sabe o que quer dizer N... q... l... i...?
— Exatamente. Não faço a mínima.
— E como você vomita uma série de letras que desconhece, no seu dia a dia, se não tem a menor ideia de qual seja o significado?
— Foi o Beto, filho do seu Murilo, que saiu com essa “parada”.
— Ok! E ele não lhe explicou a “parada?”.
— Não.
— E por qual motivo o Beto, mencionou essa droga de N... q... l...  i...  pra você?
— Simples. Cheguei na casa dele justo na hora do almoço...
— E...?
— Entrei pelo corredor, ganhando os fundos. Ao ingressar na cozinha, topei com ele batendo na Dulcinha com um cabo de vassoura...
— Meu Deus! Que horror!
— Foi o que eu disse: “Meu Deus! Que horror!”.
— E você, Duda, para não se passar por um completo imbecil não perguntou o motivo dele estar surrando a irmã?
— Perguntei, lógico.
— E o que ele disse?
— Duda, seu intrometido. Caia fora. Por aqui, N... q... l...  i...!

Gabriel fica ainda mais curioso e pensativo. Diz:
— Estranho. Muito estranho!
— O que você acha estranho, Gabriel?
— O Beto, filho do seu Murilo, estar batendo na irmã dele com um cabo de vassoura...
— Quarenta minutos depois que deixei a casa do Beto, o pai do Luiz, seu Paulo, me disse a mesma coisa...
— Ele também achou estranho o Beto estar descendo o cacete na irmã?
— Não!
— Então?
— Foi assim, Gabriel. Eu passei na casa do Luiz para entregar o caderno de Português que ele havia me emprestado...
— E daí?
— Daí, que eu bati palmas no portão. Ninguém veio atender...
— E os cachorros?
— Latiram feito “cão sem dono”.
— E o que você fez?
— Como os animais me conhecem, abri o portão e segui adiante, igual você acabou de fazer aqui...
— Continue...
— Ao chegar a varanda, ouvi gritos vindos do quarto...
— Gritos?
— Sim. Eram do Luiz.
— E o que você fez?
— Segui firme e forte. Pé ante pé, a respiração presa. Enquanto ganhava terreno, ia chamando pelo Luiz.
— Termine...
— Ao chegar na porta do quarto do Luiz, vi seu Paulo dando uns belos e fortes tapas no rosto do nosso amigo, que chorava e soluçava feito um louco.
— Que barbaridade!!!
— Foi o que também achei, e, por essa razão, me escapou um “Que barbaridade!”.
— Qual foi a reação de seu Paulo?
— Nem te conto. Os dois — pai e filho — se voltaram e deram comigo espantado, assistindo a cena. Perguntei ao Luiz por que ele apanhava, como uma forma de disfarçar a minha intromissão...
— E o que o pobre respondeu?
— Ele nada, mas seu Paulo urrou feito um leão vindo em minha direção, os olhos vermelhos de raiva:
— Desinfeta daqui seu verme. N... q... l... i...!!! – Enfatizou colérico.
— E você, que atitude tomou? Enfrentou o filho da mãe?
— Tá louco, Gabriel? Fiz o que o meu medo receoso mandou. Aliás, a única coisa sensata que pintou na minha cachola. Botei “quatro na perna do veado”, como dizia meu avô...
Gabriel coça a cabeça. Solta um risinho meio que sem graça:
— “Quatro na perna do veado?”.
— Isso. Saí correndo.  Dei o fora. Ou melhor, me debandei, voando. Na rua, me veio à cabeça uma ideia genial. Perguntar ao Joe. O Joe é metido a saber tudo...
— Boa ideia. O Joe é inteligente. Estudioso, lê muito, sabe das coisas. Concluindo, você foi até ele, perguntou, se inteirou do assunto, e, agora, dando uma de João sem braço pretende me fazer de trouxa...
— Pare com isso, Gabriel. De onde tirou essa ideia absurda?
— Se não pretende tirar sarro da minha cara, me convença do contrário. Canta a pedra de uma vez.
— Depois de procurar pelo Joe, por todos os cantos da cidade, dei com ele tomando sorvete com a namorada sentado num dos bancos da praça da matriz.  Sem mais delongas, mandei brasa:
— “Joe, tira seu amigo aqui de uma enrascada das brabas?”.  
— O infeliz me fuzilou: — “Caraca, mano. Será que não tenho direito nem de tomar um sorvete sossegado com a “minha pequena?  — No que se encrencou agora?”.
— “Não é bem uma encrenca, argumentei. — Estou com uma dúvida. — Uma dúvida muito grande e cruel”.  

Ele, fazendo ares de zangado:
— “Desembucha logo, moleque”.
— Mandei a pergunta:
— O que significam as letras, N... Q... L... I...?”
— “Então é isso?”
— “Fiz que sim com a cabeça”. — “Você sabe o que elas querem dizer?”.

Joe, intrépido, quase me agrediu:
— “Claro. Qualquer burro sabe. — Seu jumento!”
 — “Eu não sei...” — respondi, com humildade”.

Desafiador, porém, o miserável me rebaixou como se eu fosse um boçal:
— “Você pra burro, Dudu, só falta a prefeitura lhe dar uma placa com a identificação”.
— Tentei ser educado:
— “Manera, véi... burro não usa placa de identificação””.
— Que filho da mãe... Desgraçado!
— Joe, então cheio de marra e arrogância, menosprezo e pouco caso, veio pra cima de mim.  Tripudiou comigo, até dizer chega:
— “Então, pra você ser um completo burro, não está faltando nada”.
— “Deixa de palhaçada e me esclarece de uma vez o significado dessas quatro letras. Fale Joe. Explica aí. Por favor”.

Joe repetiu as letras, uma a uma:
— “N... q... l... i...?  É isso que quer saber?”,
— “Sim, meu amigo!... juro por Deus que vou embora e lhe deixo em paz”.

Gabriel, irrequieto morde as unhas:
— Vai, Duda, continue... e depois, vamos para “o depois...”. Ele esclareceu a sua dúvida?
— Mano, nem lhe conto! Joe sorriu alto e, finalmente, cheio de rancor nos olhos (naquele momento dono da situação) se fez cabeçudo e indelicado diante da minha ignorância completa. Querendo, logicamente, aparecer para a mulherzinha dele, risonho e feliz, vociferou, pondo fim ao nosso papo:
— “Imbecil essas quatro letras do nosso alfabeto querem dizer e, aliás, dizem: — “N... Q... L... I...!”.

Gabriel a ponto de ter um piripaque, treme as mãos, completamente fora de si:
— Que droga, cara. Pelo visto, você não insistiu. Meteu o rabinho entre as pernas e caiu fora?
— Pinoteei, meu caro... cai na estrada. Que mais poderia ter feito? O que você faria no meu lugar, depois de ser rebaixado, pisoteado e humilhado?
— Se fosse comigo, meu caro Dudu, juro por tudo quanto é sagrado. Ia até o armazém do seu Chico Jenipapo, comprava uma garrafa de coquetel molotov, acendia a bomba e jogava nos cornos dele e da namorada, ou mulher, sei lá... e faria isso sem nenhum remorso...
- Não que lhe interesse.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 2


A gatona amalucada
tem amantes de montão...
Pode ser meio "pancada",
mas é mesmo um "pancadão!"
= = = = = = = = =

A Raimunda chega ao baile,
e logo se esquenta o clima,
pois alguns "cegos" em braile,
querem só tocar na rima!
= = = = = = = = =

"Colesterol sempre sobe
se bebo e como torresmo"
— Diz a mulher: "Não se afobe!
Só isso é que sobe mesmo..."
= = = = = = = = =

Com tristeza e desencanto,
vejo um mundo injusto e louco;
Há tão poucos tendo tanto,
e há tantos tendo tão pouco!
= = = = = = = = =

Em devaneio profundo,
esqueço os dias tristonhos
e, assim, transformo meu mundo
em universo de sonhos...
= = = = = = = = =

Em teu amor não confio...
Já se acabou a ilusão,
pois ele é vento vadio:
sopra em qualquer direção.
= = = = = = = = =

Esta angústia indefinida,
que à tarde sempre me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarce da saudade?
= = = = = = = = =

Eu te espero noite afora...
Plange o som de um carrilhão,
fatalmente, de hora em hora,
compassando a solidão...
= = = = = = = = =

Fujo em estrada penosa,
temendo um amor adverso,
mas a saudade, teimosa,
percorre o caminho inverso.
= = = = = = = = =

Mesmo em flagrante apanhado,
o malandro finca o pé:
— Trambique? Foi, delegado...
mas com toda a boa fé...
= = = = = = = = =

Minha alma se enleva ao vê-las
em seu fulgor que seduz;
piscapiscando as estrelas
parecem ilhas de luz!…
= = = = = = = = =

Minha mulher é nanica,
mas na cama é colossal:
ronca mais do que cuíca
em bloco de carnaval!
= = = = = = = = =

Na igreja, em rito divino,
nossa união faz supor
que as badaladas do sino
são de aplauso ao nosso amor.
= = = = = = = = =

Não me importam a censura
e o louvor da sociedade:
procuro viver à altura
da minha própria verdade.
= = = = = = = = =

Não receio o que vier,
pois já vislumbro a partida...
mas luto, enquanto eu tiver
uma fagulha de vida!
= = = = = = = = =

Na vitória, é teu dever
respeitar o opositor;
mais difícil que vencer
é saber ser vencedor!
= = = = = = = = =

— O que te disse o Doutor?
Te deu muita informação?
— Informação? Não, amor,
é bebê... "em formação!"
= = = = = = = = =

Pode a vingança depressa
ter consequências fatais.
Sabe-se como começa,
como termina, jamais!
= = = = = = = = =

Quando a mulher do mascate,
parte pro tapa e, na luta,
chama a outra de "biscate",
esta revida e... disputa!
= = = = = = = = =

Se a solidão é um açoite,
mágoas... não quero retê-las,
pois, entre as sombras da noite,
sempre posso ver estrelas.
= = = = = = = = =

Se é apanhado numa treta,
mineiro não se retrai:
quando vê a coisa preta,
vai logo dizendo "uai!"...
= = = = = = = = =

Sem teu amor, meu fanal,
naufraguei entre os escolhos
na profundeza abissal
do mar azul dos teus olhos!
= = = = = = = = =

Sozinha, na caminhada,
fugindo ao mundo enfadonho,
troco os atalhos do nada
pelas veredas do sonho…
= = = = = = = = =

Vendo o noivo em dura lida,
num constante vem e vai,
a mineira, embevecida,
somente suspira... "uai"...
= = = = = = = = =

— Vendo pipoca, que é o fraco
da criançada, no recreio,
e de tanto que encho saco,
já estou de saco cheio!

Fonte:
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.
Enviado pela trovadora.

H. G. Wells (O Fantasma inexperiente)


Meu pensamento volta-se, constantemente, para a derradeira história que Clayton contou, relembrando-a em todos os seus pormenores. Ele passara a maior parte do tempo no sofá, junto à lareira, estando a seu lado Sanderson, fumando um daqueles cachimbos especiais, que trazem seu nome gravado. Evans e Wish, este o famoso e tão modesto ator, faziam parte do reduzido grupo.

Era um sábado de manhã, e havíamos chegado ao clube todos juntos, exceto Clayton, que ali pernoitara, o que motivou esta história. jogáramos golfe até ao escurecer e, depois de cear, caíramos naquele estado de bem aventurança, quando se fica em condições de ouvir qualquer fantasia que nos contem. E assim que Clayton iniciou sua extraordinária narrativa, quisemos tachá-lo de mentiroso. A princípio, julgamos que se tratasse, apenas, de uma de suas anedotas reais, no que ele era mestre.

— Já sabem que passei a noite sozinho, aqui? interrogou ele, depois de ter ficado muito tempo fitando as fagulhas que saiam das brasas, reanimadas por Sanderson.

— Com os criados... - emendou Wish.

— Sim, mas que dormem na outra ala - retrucou Clayton, que, antes de prosseguir, soltou mais algumas baforadas do charuto. E, sem perder sua habitual fleuma, declarou, calmamente:

— Apanhei um fantasma.

— Um fantasma! - exclamou Sanderson. - E onde está ele?

Evans, que passara quatro semanas na América e era grande admirador de Clayton, gritou com sua voz anasalada:

— Você agarrou mesmo um fantasma, Clayton? Extraordinário! Vamos, conte, logo, como tal aconteceu!

Clayton pediu que fechássemos a porta e, olhando para mim, à guisa de desculpa, disse:

— Não quero chamar ninguém de bisbilhoteiro, mas não desejo divulgar a história e assustar nossos excelentes servidores. Os cantos escuros e os estranhos adornos da arquitetura do prédio dão margem à imaginação... E o fantasma a que me refiro, quero que saibam, era um fantasma incomum. E talvez nunca mais volte...

— Mas... você não o prendeu? - perguntou Sanderson.

— Faltou-me ânimo para tanto - respondeu Clayton.

Enquanto nós desatamos a rir, Sanderson dava mostras de surpresa e Clayton parecia perturbado.

— Parece mesmo singular, - disse, sorrindo contrafeito - mas a verdade é que lidei realmente com um fantasma, tão certo quanto estar aqui conversando com vocês. Nada de gracejos, sei bem o que falo.

Sanderson mamava seu cachimbo, com mais vigor, concentrando seus olhos congestionados em Clayton e, após expelir uma espessa coluna de fumaça, resmungou algo a que Clayton não prestou atenção.

— Nunca me ocorrera uma aventura tão singular. Os amigos já conhecem minha descrença a esse respeito, mas, quando menos pensava nisso, apanho um fantasma, num dos cantos do prédio.

Mergulhou de novo em reflexões e puxou do bolso outro charuto.

— Conversou com ele? - perguntou Wish, curioso.

— Uma hora, mais ou menos.

— E que lhe contou? - indaguei, chegando mais perto dos incrédulos.

— O coitado pareceu-me encabulado...

— Ele chorou? - perguntou outro.

Clayton suspirou, ao pensar nessa circunstância.

— Sim, coitadinho, chorava que dava dó.

— E onde o apanhou? - quis saber Evans, com seu sotaque americano.

— Jamais poderia ter imaginado que um fantasma fosse uma coisa tão lamentável, prosseguiu Clayton, ignorando a pergunta.

E, após essas palavras, deixou-nos de novo em suspenso, fingindo que declarava em encontrar os fósforos e acendia, depois, o charuto.

— Apenas, consegui aproveitar uma oportunidade disse, afinal, como que respondendo à pergunta anterior.

E, como ninguém o interrompesse, prosseguiu:

— Posso afirmar que, mesmo sem o seu corpo, o caráter de uma pessoa permanece invariável, embora constantemente nos olvidemos disso. Indivíduos de vontade firme e forte dão espectros de firme e forte vontade. A maioria desses fantasmas obsecados que andam por aí deve ter uma ideia fixa qualquer, como qualquer maníaco, e se demonstram mais obstinados que um burrico. O meu pobre fantasma, porém, era diferente. Levantou subitamente os olhos, de maneira estranha, e seu olhar pesquisou todos os cantos do recinto.

— Afirmo-o com a minha melhor boa-fé, pois é a pura verdade. Logo de início, percebi que se tratava de um débil mental. - Soltou umas baforadas e continuou. - Agarrei-o no fim do longo corredor. Ele me dava as costas e, por isso, eu o vi antes que me percebesse. Certifiquei-me imediatamente de que era um espectro, tanto era transparente e esbranquiçado. Através de seu tórax, eu distinguia o reflexo dos vidros da janelinha. Pelo seu físico e atitudes, deduzi-lhe a fraqueza. Ele não sabia, absolutamente, o que iria fazer. Segurava um dos adornos da janela, com uma das mãos, e a outra passava-a constantemente pela boca. Desta maneira...

— Qual seu aspecto?

— Muito magro. Seu pescoço parecia formar duas calhas, nas costas, aqui e aqui. Cabeça pequena, cabelos despenteados, orelhas disformes. Ombros imperfeitos e mais estreitos que os quadris. Usava um colarinho caído, casaco curto, calças remendadas, à altura dos joelhos, e mais alguns rasgões, logo abaixo. Tal seu aspecto. Eu ia subindo sossegadamente as escadas, sem levar luz, já que as velas costumam ficar cá embaixo, e ali existe uma lâmpada. Ao subir, vi-lhe os chinelos. Estaquei de súbito, ao notá-lo. . . e examinei-o. Não me incutiu medo algum. Creio que, na maior parte de casos assim, o indivíduo não se assusta tanto como se poderia supor. Somente fiquei intrigado e surpreso. "Meu Deus!" exclamei, para mim mesmo. "Finalmente, vejo um fantasma! E justamente eu, que nunca acreditei nisso!"

— Hum! - rosnou Wish.

— Ao chegar ao patamar, o fantasma deu pela minha presença. Virou de novo a cabeça e dei com a cara de um jovem, nariz fino, bigode ralo e um esboço de barbicha. Ficamos alguns instantes a olhar um para outro. Olhava-me por cima do ombro. Afinal, pareceu recordar-se de suas altas funções. Esticou-se, virou-se de completo, espichou o rosto, estendeu a mão, no clássico estilo dos espectros, e veio para meu lado. Deixou cair seu pequeno queixo e emitiu um prolongado, mas fraco "Bu! No..." Como veem, nada de apavorante. Eu havia ceado muito bem e esvaziado uma garrafa de champanhe, e, depois de ter ficado sozinho, tomara mais alguns copinhos de uísque, por isso me encontrava mais firme que uma rocha e não mais amedrontado do que se tivesse visto uma rã.

— Bu! - retribuí-lhe eu. - Deixe de ser bobo. Você não tem nada que fazer aqui. Notei que ele estremecia.

— Buuu! - repetiu.

— Bu! Vá para o diabo! Você é sócio cá do clube? Mexeu-se algo, como que querendo sair do caminho, mas seu aspecto parecia abatido.

— Não... não sou sócio do clube, - respondeu o espectro, ante a insistente interrogação de meus olhos. - Sou um fantasma.

— Muito bem, mas isso não o autoriza a frequentar o Clube Mermaid. Está procurando alguém por aqui?

Dito isto, acendi logo minha vela, para que ele não julgasse que meu tremor era de medo e não por causa do uísque que eu ingerira. Perguntei-lhe:

— Que está fazendo aqui?

O espectro deixou pender os braços, parando de rosnar, e ali se ficou, meio sem jeito, acabrunhado, nítida imagem de um fantasma frouxo, inocente, sem vontade de ação.

— Estou dando uma voltinha... - respondeu, afinal.

— Seu lugar não é aqui, procure outras paragens.

— Eu sou um fantasma... - murmurou, como desculpa.

— Pode ser, mas aqui não é seu lugar. Este é um clube particular, bastante respeitável. Aqui, vêm, com frequência, pessoas com crianças, pajens, e, se alguma delas o encontrar por aí, pode ficar louca de susto. Não pensou ainda nisso?

— Não me havia ocorrido ainda essa hipótese, senhor.

— Pois devia ter pensado. Creio que não possui nenhum motivo ponderável para vir aqui, pois não? Suponho que não morreu assassinado nem sofreu morte violenta.

— Oh, não, meu senhor... mas, como esta casa é velha, possui seus enfeites de madeira, julguei...

— O pretexto é demasiado pueril - interrompi-o, fitando-o firme. - Foi um erro, sua vinda aqui - ajuntei, com amistosa superioridade.

Disfarcei, procurando fósforos nos bolsos, e olhei francamente para ele.

— Sabe que faria eu, em seu lugar? Procuraria evaporar-me, sumir daqui, antes do galo cantar.

Tais palavras deixaram-no perturbado.

— Na verdade, meu senhor...

— Eu me evaporaria - repeti, com insistência.

— Mas, então... eu não posso...

— Não pode, não?

— Não, porque me esqueci de algo. Tenho andado vagando por aqui, desde a última meia-noite, escondendo-me nos armários dos quartos desocupados... e já meio desorientado, tonto. Fiquei desconcertado, pois nunca rondara, antes.

— Ficou desconcertado?

— Sim, senhor, não me saio nunca bem. Parece que olvidei alguma coisa... e não consigo lembrar-me de quê...

— Essa circunstância impressionou-me bastante - afirmou Clayton. - Ele olhava para mim, tão desanimado, que me deixou incapaz de continuar mantendo aquele tom altivo e fanfarrão que adotara.

— Isso é muito singular - disse-lhe.

Nesse instante, julguei ouvir rumor, no andar inferior.

— Vamos para meu quarto e conte-me tudo, porque, até agora, nada compreendi .- convidei-o.

Procurei puxá-lo por um braço, mas, está claro, foi como se tentasse segurar uma nuvem de fumaça. Penso que até me esquecera o número do quarto. Assim, entrei em vários aposentos, antes de descobrir o meu, e foi sorte estar ali sozinho, naquela parte do prédio.

— Bem, agora, sente-se e conte-me sua história - disse-lhe, sentando-me também. - Pelo que vejo, meu amigo, meteu-se numa enrascada. O fantasma declarou não desejar sentar-se e que preferia ficar andando pelo quarto. Não me opus e, dali a instantes, estávamos numa prosa animada. Assim que me libertei dos vapores do uísque, comecei a ter noção do caso absurdo, fantástico, em que me enredara. À minha frente, se encontrava, meio transparente, o tradicional fantasma, sem outro ruído a não ser o de sua voz sideral, e seu nervoso vaivém pelo quarto, recoberto de tapetes. Através do seu corpo, eu podia vislumbrar o reluzir dos candelabros de cobre, o resplendor dos abajures e os quadros nas paredes, ao passo que ele me ia narrando sua desditosa e breve odisséia. Sua feição não era lá muito honrada, mas podem crer que falava a verdade, tanto era transparente.

— Como? - interrogou Wish, levantando-se de pronto.

— Que quer saber? - perguntou, por sua vez, Clayton.

— Porque era transparente... não podia deixar de dizer a verdade?... Não estou entendendo nada - explicou Wish.

— Muito menos eu - ajuntou Clayton, com incrível seriedade. - Contudo, era essa minhá impressão. Juro até que não se afastou por nada da pura verdade. Contou-me como morrera - descera a um porão londrino, para verificar um escapamento de gás, com uma vela na mão. E, quando isso ocorreu, exercia as funções de professor, numa escola particular de Londres.

— Pobre homem... - lamentei eu.

— Também fiquei com pena dele, e mais ele falava mais me comovia. Não tinha objetivo algum na vida e ficara fora dela. Falou-me, com desprezo, sobre seu pai, sua mãe, a respeito de seu professor, na escola, e de todos quantos conhecera no mundo. Tinha sido exageradamente impressionável e nervoso. Ninguém o havia apreciado verdadeiramente e muito menos o compreenderam, conforme contou. Penso que não chegou a ter nenhum amigo sincero nem jamais obtivera êxito algum. Mantivera-se alheio das diversões e fracassara em vários exames. Alegou que esquecia tudo, quando entrava na sala de exames. Estava noivo, naquela época, prestes a casar-se com outra pessoa igualmente impressionável, quando o escapamento de gás pôs termo aos seus amores.

— E onde foi você parar, depois da morte? - perguntei-lhe. - Não será em... A respeito disto, foi algo confuso. Parecia encontrar-se numa espécie de estado impreciso, intermediário, num lugar reservado às almas demasiado inexistentes para coisas tão positivas como o pecado e a virtude. Não soube explicar direito. Era bastante egoísta e indiferente para fornecer-me uma idéia clara quanto ao lugar ou região em que se encontrava. Muito além das coisas, estivesse onde estivesse, ele caíra, suponho, no meio de uma série de espíritos da mesma natureza; fantasmas de jovens londrinos, fracos, com os mesmos prenomes, entre os quais se devia falar muito em rondar. Sim, sair e rondar. Parece que, para esses fantasmas, o "rondar" fosse uma grande aventura e a maior parte deles não parava de falar nisso. Instigado, curioso, meu fantasma resolvera sair e... rondar.

— Ora, será isso possível? - perguntou, descrente, Wish.

— São as conclusões que tirei - respondeu Clayton, modestamente. - É bem possível que eu também me encontrasse num estado d'alma pouco favorável para discernir, mas essa impressão foi ele que ma deu. Não cessava de andar de um lado para outro, falando com voz fininha do seu mísero ego, porém sem nunca emitir uma declaração nítida e firme, do princípio até ao fim. Era bem mais minucioso, ingênuo e monótono do que se estivesse vivo e real. Se estivesse vivo, aliás, não o teria deixado em meu quarto. Teria saído dali a pontapés!

— Sim, - concordou Evans - há tipos dessa espécie.

— Mas que possuem tantas propriedades de ser fantasmas como os demais.

O que lhe dava algum interesse era sua convicção de lhe ser impossível desaparecer. A confusão que resultara de sua aventura deprimira-o de maneira incrível. Disseram-lhe que aquilo seria um mero passeio, e viera para cá esperando que assim fosse, mas encontrou apenas mais um fracasso a ajuntar aos de seu longo rol. Confessou-me, e acreditei, que jamais tentara coisa alguma, na vida, que não houvesse resultado num desastre e que isso continuaria acontecendo, pela eternidade afora. Caso tivesse encontrado simpatias, talvez... Não terminou e ficou a olhar para mim. Disse-me, ainda, que, por mais incrível que pareça, ninguém lhe havia dispensado nunca a dose de simpatia que eu lhe demonstrava. Adivinhei logo aonde queria chegar e decidi libertar-me dele, no mesmo instante. Pode ser que isso seja brutalidade de minha parte, mas, ser o único amigo sincero, o confidente de um desses débeis egoístas, seja ele homem ou fantasma, era algo
superior à minha resistência física. Levantei-me de supetão.

— Não se iluda - disse-lhe. - O melhor que lhe resta a fazer é ir-se embora, sair imediatamente. Reúna suas forças e experimente.

— Não consigo... - murmurou.

— Experimente! - intimei-o.

E ele experimentou.

— Experimentou?! - exclamou Sanderson. - E de que modo?

— Com passes - respondeu Clayton.

— Com passes?

— Sim, uma série de complicados movimentos, executados com as mãos. Fora assim que viera, e, assim, devia ir-se embora. Meu Deus! Que trabalho lhe custou!

— Mas, com uma série de passes. .. - comecei.

— Meu amigo, - interrompeu Clayton, voltando-se para mim e dando uma entonação especial às palavras - você quer que tudo seja bem explicado. Sei, apenas que ele executou esses passes. Após muitos esforços, conseguiu realizá-los perfeitamente, sumiu.

— Você prestou atenção nos passes? indagou Sanderson, lentamente.

— Sim, - respondeu Clayton, que parecia refletir.

Foi uma coisa extraordinariamente inédita. Estávamos ali, ambos, o vago e transparente fantasma e eu, naquele silencioso quarto, naquela casa silente e vazia, numa silenciosa noite de sexta-feira, na pequena cidade. Não se ouvia o menor ruído, exceto nossas próprias vozes e um ligeiro arfar, que produzia o espectro ao executar seus gestos. Estávamos iluminados pela vela do quarto e por outra, que havia no aparador. Nada mais. Uma ou outra vez, as velas produziam, durante alguns segundos, uma chama alta e esquia. E, então, se passaram coisas estranhas.

— Não, não posso... - gemia o fantasma. - Nunca mais.

Sentou-se subitamente numa cadeira e começou a soluçar. Deus meu! Que modo horrível de chorar!

— Reúna suas forças! - disse-lhe.

Tentei dar-lhe umas palmadinhas nas costas, porém minha maldita mão atravessou por ele. Nesse instante, devem compreender, já não me sentia tão... firme como quando chegara à escada. Notava perfeitamente tudo quanto ocorria de incomum. Recordo-me de que retirei a mão dele, com um leve estremecimento, e que fui até à mesa do aparador.

— Reúna suas forças, - repeti - e experimente.

E, no intuito de animá-lo e auxiliá-lo, procurei experimentar, também.

— Como! - exclamou Sanderson. - Os passes?

— Exatamente, os passes.

— Mas - disse eu, levado por uma idéia que não sabia traduzir.

— Muito interessante - comentou Sanderson, batendo a cinza do cachimbo. - Quer dizer
que esse fantasma lhe revelou...

— Sim, fez tudo quanto pode para revelar o segredo da maldita barreira.

— Mas não o conseguiu, - interveio Wish, - nem poderia fazê-lo, pois, do contrário, você também teria sumido.

— Essa é precisamente a questão - concordou Clayton, olhando, pensativamente, para as chamas.

Houve um breve silêncio.

— E, afinal, conseguiu? - perguntou Sanderson.

— Finalmente, conseguiu-o. Envidei enormes esforços para que não desanimasse, mas, enfim, conseguiu-o. .. e bastante bruscamente. Estava já desesperado, tivemos uma cena, todavia, de súbito se levantou e pediu-me que fizesse todos os movimentos lentamente, para que os pudesse ver. Creio, confiou-me, que, se pudesse ver bem, descobriria o que não estava certo. E tal ocorreu.

— Agora já sei! - exclamou enquanto me observava os movimentos.

— Sabe o quê? - perguntei-lhe.

— Sim, já sei - repetiu, ajuntando, a seguir, mal-humorado. - Se fica assim a olhar para mim, nada posso fazer. Na verdade, não posso. E é por isso que até agora nada fiz. Sou de tal modo nervoso que o senhor me desconcerta.

Entabulamos uma discussão. Certamente, eu queria ver como fazia, mas ele era mais teimoso que um burro, e eu me senti, de súbito, exausto, sem forças. Virei-me para o espelho do armário próximo da cama. Iniciou uma série de movimentos, muito rápidos. Procurei acompanhá-lo pelo espelho, para ver qual deles tinha esquecido. Seus braços e mãos rodopiavam, assim e assim, e depois veio, precipitadamente, o gesto final, - o corpo erguido e os braços abertos - e nesta atitude ficou. E, de repente, não mais o vi! já ali não se encontrava! Rodei sobre meus calcanhares e olhei. Nada! Eu estava só, diante da chama das velas, e com o espírito vacilante. Que teria acontecido? Tudo teria sido um sonho?. . . E aí, num tom absurdo de remate final, o relógio do patamar julgou chegado o momento de dar UMA hora. Assim: Ping! E eu me encontrava tão sério e tão atento quanto um juiz, sem vestígios de minha champanha nem de meu uísque. Mas, presa de estranha sensação, compreendem? Horrivelmente estranha! Singular! Santo Deus!

Olhou um momento para a fumaça do charuto e acrescentou:

— E foi tudo quanto aconteceu.

— E, depois, foi deitar-se? - indagou Evans.

— Que mais poderia fazer?

Olhei Wish, bem dentro dos olhos. Queríamos gracejar, mas havia algo na voz e nos gestos de Clayton que se opunha ao nosso desejo.

— E os passes? - perguntou Sanderson.

— Creio que seria capaz de executá-los, neste momento.

— Oh! - exclamou Sanderson, puxando um canivete e raspando a cinza do cachimbo. - Por que não os faz, agora?

— Vou fazê-los já! - disse Clayton.

— Nada conseguirá - profetizou Evans.

— Mas, se conseguir. . . - observei.

— Ouça, eu preferiria que o não fizesse - disse Wish.

— Por quê? - interveio Evans.

— Eu preferiria que o não fizesse, repetiu Wish.


— Mas, se já aprendemos bem ... volveu Sanderson, enchendo de fumo o cachimbo.

— De qualquer modo, eu preferiria que não o fizesse! insistiu Wish.

Discutimos com Wish, o qual afirmava que, permitir a Clayton executar tais gestos, era como que brincar com algo de sério, de misterioso.

— Mas você não vai acreditar nisso, vai? - disse eu.

Wish lançou um olhar de esguelha a Clayton que, com os olhos presos ao fogo, refletia sobre qualquer determinação de seu espírito.

— Eu creio... pelo menos, mais da metade, sim, acredito... - respondeu Wish, em tom sério.

— Clayton, - falei - você é um inventor de histórias bom demais, para nós todos. Quase tudo quanto você contou estava certo. Mas... essa coisa de desaparecer... não me convenceu muito. Vamos, fale, trata- e de um conto terrorífico?

Clayton ficou de pé, sem prestar atenção às minhas palavras, pondo-se ao centro do tapete, bem na frente de mim. Por alguns minutos, olhou pensativamente para os próprios pés e passou, depois, a fitar intensamente a parede oposta, com expressão decidida. Ergueu lentamente ambas as mãos à altura dos olhos e, assim, começou... Agora, muito bem, Sanderson era maçon e pertencia à loja dos Quatro Reis, que, com tanta pericia, se dedica ao estudo e esclarecimento de todos os mistérios da maçonaria passada e presente. E, entre os pesquisadores dessa loja, Sanderson não era de maneira alguma dos mais insignificantes. Acompanhava os movimentos de Clayton, com invulgar interesse, refletido em seus olhos avermelhados.

— Não vai indo mal - observou, quando Clayton terminou. - Na verdade, você consegue fazer isso de maneira assombrosa. Falta, todavia, um pequeno detalhe.

— Já sei! - respondeu Clayton. - E penso que lhe poderei dizer qual.

— Sim?

— Veja, este - disse Clayton, fazendo um movimento, que consistia em retorcer as mãos e atirá-las para a frente.

— Exatamente.

— Quero que saibam que este era o que ele não conseguia executar bem, mas, como VOCÊ ...

— Eu não entendo quase nada desse negócio e, principalmente, como pode você inventá-lo - retrucou Sanderson - esse gesto, porém, eu o conheço, está claro. - Refletiu um instante e continuou: - Em resumo, trata-se de uma série de sinais relativos a certo ramo de maçonaria esotérica ... Com certeza, você os conhece... pois, do contrário ... como?

Tornou a refletir mais ainda, e prosseguiu:

— Não penso que haja mal algum em revelar-me o sinal exato. Além disso, se você já o conhece, melhor para si, mas, se o não conhece, fica tudo na mesma.

— Eu nada sei, além do que me ensinou o pobre, naquela noite - declarou Clayton.

— Então, tanto faz - murmurou Sanderson, pousando o cachimbo, cuidadosamente, no modilhão. Em seguida, passou a executar rápidos movimentos, com as mãos.

— É assim? - perguntou Clayton, imitando-o.

— Isso mesmo! - certificou Sanderson. voltando a pegar o cachimbo.

— AGORA, - disse Clayton - sou capaz de executar a série toda... bem. Encontrava-se de pé, diante do fogo, que ia morrendo, e sorria para nós. Contudo, pareceu-me haver certa hesitação naquele sorriso.

— Vou começar... - preveniu-nos.

— Em seu lugar, eu não começaria, - observou Wish.

— Nada poderá acontecer - afirmou Evans. - A matéria é indestrutível. Você não irá pensar que uma invenção dessas seja capaz de lançar Clayton para o mundo das sombras. Teria graça! Quanto a mim, Clayton, pode bracejar à vontade, até que seus braços se separem dos punhos.

— Não concordo com isso - atalhou Wish, que se levantou e pôs a mão no ombro de Clayton. - Saiba que quase me fez acreditar em sua história, por isso, não quero que faça tal coisa.

— Valha-me Deus! - exclamei - Parece que Wish está assustado!

— Sim, estou - confessou Wish, com veemência real, ou notavelmente fingida. - Penso que, se fizer tais gestos esotéricos, acabará desaparecendo.

— Nada disso acontecerá! - exclamei. - Os homens somente podem sair deste mundo por um caminho, e Clayton ainda tem mais de trinta anos à sua frente. Você não julga que...

Wish interrompeu-me, todo agitado. Saiu de entre nossas poltronas e, parando junto à mesa, gritou:

— Clayton, você está maluco!

Clayton voltou-se sorrindo, com um brilho humorístico no olhar.

— Wish tem razão - disse - e vocês; todos estão equivocados. Desaparecerei. Levarei até ao fim estes passes, e, quando o derradeiro movimento rasgar o ar ... pronto! Este tapete ficará vazio, a sala ficará inundada de mudo assombro, e um cavalheiro de noventa e cinco quilos, decentemente trajado, mergulhará em cheio no mundo das sombras! Tenho certeza disso, e vocês também não tardarão em tê-la. Desisto de continuar a discussão por mais tempo. Que se faça a prova!

— NÃO! - intimou Wish, dando mais um passo à frente. Mas estacou, e Clayton ergueu as mãos, mais uma vez, para repetir os passes do fantasma.

Naquele instante, nos encontrávamos numa deplorável tensão de espírito, principalmente por causa da atitude de Wish. Permanecíamos imóveis, olhares fixos em Clayton, e eu, pelo menos, experimentava uma estranha sensação de tensão e rigidez, como se, desde a nuca aos músculos, meu corpo fosse de aço. Nesse ínterim, com uma gravidade imperturbável e serena, Clayton se inclinava, movimentava-se e agitava as mãos e braços, à nossa frente. Ao aproximar-se o fim, nossa tensão nervosa se tornou insustentável e percebi que rangiam os dentes. O derradeiro movimento, como já disse, consistia em abrir completa- mente os braços, com o rosto voltado para cima. Quando, finalmente, iniciou esse gesto, cheguei a conter a respiração. Podia ser uma coisa ridícula, evidentemente, mas vocês já irão conhecer a impressão que causam essas histórias de fantasmas. E notem, ainda, que isso acontecia numa casa fora de comum, escura e antiga. Chegaria, depois de tudo, a ... ?

Durante um estarrecedor momento, Clayton permaneceu naquela posição, de braços abertos e cara virada para o alto, firme e resplandecente, sob o fulgor da lâmpada. Todos nós nos quedamos em suspenso durante aquele lapso de tempo, que nos pareceu um século, e, depois, brotou de nossas gargantas um som que era, ao mesmo tempo, um suspiro de infinito alivio e um NÃO! tranquilizador, pois, que, visivelmente... Clayton... não desaparecia. Tudo aquilo não passara de uma mentira. Clayton nos contara uma história banal, infantil, e quase nos fizera acreditar nela. Nada mais que isso! ... Mas, exatamente naquele momento a fisionomia de Clayton se transformava. Mudou-se completamente. Tal como se transforma uma casa iluminada, quando se lhe apagam subitamente as luzes, assim se transformou seu semblante. Seus olhos se vidraram bruscamente, o sorriso se lhe gelou nos lábios, subitamente exangues, e ele continuou de pé, imóvel. E assim se conservou, balançando-se suavemente.

Mas, aquele momento valeu, também, por um século. E, pouco depois, as cadeiras bailavam, objetos caíam ao chão, e todos nós nos sentíamos em movimento. Os joelhos de Clayton deram a impressão de que iam dobrar-se e ele tombou para a frente, ao passo que Evans dava um pulo e o amparava nos braços...

Isso nos deixou atônitos. Durante o espaço de um minuto, creio que nenhum de nós disse nada coerente. Estávamos vendo; no entanto, custávamos a acreditar... Sai de minha estupefata admiração para me encontrar ajoelhado junto ao corpo estendido. Seu casaco e sua camisa estavam rasgados, e Sanderson lhe auscultava o coração. Esse gesto, tão simples, podia ter sido deixado para mais tarde, para quando estivéssemos menos emocionados, pois não tínhamos pressa alguma em compreender. O cadáver permaneceu ali cerca de uma hora, mas ainda se conserva em minha memória, negro e desconcertante como então. Clayton passara, efetivamente, para aquele mundo que se encontra tão perto, e, ao mesmo tempo, tão distante de nós. Clayton fora para lá, realmente, pelo único caminho que pode seguir um mortal. Mas, que para lá seguiu unicamente graças aos conjuros daquele inexperiente fantasma ou repentinamente atacado de apoplexia, no decorrer de uma história banal, - como o médico-legista nos deu a entender - é o que não posso precisar. De qualquer maneira, trata-se de um dos muitos enigmas que hão de permanecer sem explicação até que estejamos em condições de compreender todas as coisas misteriosas que nos cercam. Tudo quanto posso garantir, porém, é que, no próprio momento, no instante exato em que Clayton acabava de executar aqueles passes esotéricos, transfigurou-se, cambaleou e tombou no chão, bem diante de nós... morto!

Fonte:
POE, Edgar Allan e outros escritores. Mestres do terror. dezembro de 1999. http://www.virtualbooks.com.br/ (in CR-ROM Biblioteca Eletronica vol. III. Magister) Conto em Domínio Público.