sábado, 5 de agosto de 2017

Francisco J. Pessoa (Se eu pudesse eu comprava a mocidade/Nem que fosse pagando à prestação)


Conto Africano (Tamina, cor do sol)

Hoje, o céu desabou sobre o coração de Tamina. À volta dos olhos de azeviche, pairam duas nuvens e, nas faces de ébano, dois pequenos riachos deslizam silenciosamente e pousam nos lábios um beijo com sabor a sal. Tamina corre a refugiar-se atrás do loureiro, ao fundo do jardim. Por detrás da folhagem espessa, os ramos abrem os braços para acolherem todos os segredos. Escondida no meio da ramagem, Tamina explica ao arbusto de onde vem este seu desgosto. Ela não compreende por que é que não tem a pele clara das manhãs de Inverno, como as outras crianças.

O arbusto não sabe o que responder. Conhece bem os amigos de Tamina, que vêm muitas vezes brincar no jardim. Acha que são todos parecidos: as roupas coloridas, os rostos alegres e os olhos travessos. Diferente, talvez apenas a cor da pele, mas não vê em que é que isso poderia ter importância.

Um melro curioso deslizou por entre a folhagem. Ao esgravatar a terra à procura de algum bichinho para comer, de saltinho em saltinho acabou por se aproximar. Tamina reconhece-o, é ele que costuma vir regalar-se com os frutos caídos, debaixo da macieira.

Em poucas palavras, o arbusto explica-lhe o problema da pequena. O melro declara que, quanto a ele, está totalmente satisfeito com a cor da sua plumagem porque o amarelo do bico sobressai muito mais no preto do que no branco.

Tamina ficou na mesma. Não tem nenhum bico amarelo para justificar a vantagem de ter a pele negra. E depois, é muito bonito, pensa ela, mas todos os melros são pretos. Se fosse o único melro branco no meio de melros pretos, talvez pensasse de outra maneira!

A poucos batimentos de asas do local, o pássaro conta à sua amiga pega o que viu e ouviu debaixo do loureiro.

A pega vai contar ao gaio, o gaio repete-o à gralha-das-torres, a gralha-das-tores presta contas ao corvo, o corvo transmite-o imediatamente à toutinegra.

Correndo assim de bico em bico, de ramo em ramo e de nuvem em nuvem, o assunto depressa chegou aos ouvidos do sol.

Com a ponta dos dedos de luz, o sol ergue delicadamente uma folha do silvado, afaga o rosto de Tamina e, uma a uma, bebe todas as pérolas do seu desgosto.

— Quando vieste ao mundo — diz-lhe o sol — eras linda, tão linda… Acho que eras o bebê mais lindo que a terra algum dia conheceu. Eu passava dias inteiros a olhar para ti mas, de tanto te admirar, a tua pele ficou dourada, tal como acontece com a espiga de trigo. À noite, não conseguia ir deitar-me, mantinha-me na linha do horizonte, porque os meus olhos não eram capazes de te deixar. Quanto mais fixava o meu olhar na tua beleza, mais a tua pele tomava a cor do café. Se eu imaginasse todo o sofrimento que isso viria a causar-te, teria pedido às nuvens que te protegessem. Foi tudo culpa minha, serás capaz de me perdoar?

Na palma das mãos, Tamina faz uma grinalda de beijos. Pede ao vento que a leve.

E no rosto de Tamina, um sorriso desenha finalmente a curva da felicidade, porque o segredo da sua cor brilha agora bem dentro do seu coração.

Fonte:
Ghislaine Biondi; Laurent Corvaisier. Tamina Couleur Soleil. Paris, Hachette Livre/Gautier-Languereau, 2001. Disponível em Contos de Encantar

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Marco Hruschka (Poemas Escolhidos)

 Empréstimo

Emprestei estas palavras
Do baú das ideias esquecidas
Para escrever uns versos
Desambicionados
Sem sede, sem meta, sem norte

Na gênese, não sabia ao certo
No que podia dar
E agora já não sei de mim
Se serei capaz de versejar

Às vezes, a poesia se apresenta
E é tão encantadora
- Sereia de cantos enfeitiçados -
Que deixo que me possua
Já não sendo mais capaz de evitar

De repente sou um servo,
Um escravo,
Um criado,
E me deixo levar pela inspiração
Que me explora,
Me usa por inteiro,
Me transmuta
E então me guia
Por uma mágica alameda
De oportunidades e
De sonhos
Que me elevam
Ao topo do mundo

E de repente sou o Sol
======================

 Boa nova

A palavra é vida
É a mãe de todas as ideias
E quando o poeta escreve
Dá à luz um sentimento novo
Capaz de transformar o mundo

O poema é a palavra ao extremo
É a potência
Latência
Paixão

Linguagem erigida
Castelo de significação
Mensagem decodificada
Comunicação

Um verso é uma lição de vida
Um ensinamento
Uma doutrina
Que o poeta constrói
Com sua própria alma
E espalha pelo mundo
Feito um apóstolo

A semear a boa nova
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Mirante

Calo-me diante do insólito
Daquilo que não faz parte de mim
Do desconhecido
Do intruso
Do invasor
Pois nem tudo é capaz de construir
Nem tudo é edificante
Fico entre o limbo e o torpor
Amordaçado por mim mesmo
À parte de mim

E em mim permaneço
De olhos abertos,
Bem abertos e vigilantes,
Pés firmes no chão.
Sou o próprio belvedere:
Mirante!
Mirante!
Um voyeur em posição privilegiada
Separando o joio do trigo
Fazendo a triagem...
Desinfectando-me!

Meu inimigo, esse mundo
Insano e arrogante, insistirá!
E com sua arma,
Incansável e idealista arma,
Arremessará com força
Toda a podridão do mundo...
Mas eu sou sentinela
Imponente, imutável, perseverante!
Guardarei meu templo
Com unhas e dentes,
Pois é aqui,
Na minha fortaleza, meu forte,
Dentro de mim que pretendo me salvar,
Sou a minha terra,
Minha própria pátria,
Meu lar!

Fonte:

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

José Roberto Balestra (Papelzinho de bala)

Lembro-me da primeira vez que vi você caminhando pela minha rua. Era manhã duma quinta-feira, fazia um pouco de frio, um arzinho gelado, chato, e você ia com pressa, mas pisava tão leve que sequer eu ouvia o som de seus sapatos tocando o chão enquanto passava perto de mim. Com sua roupa simples e bonita, parecia flutuar, mas muito além de ser só bonita sua roupa; caia-lhe especial. Sem me dar conta do tempo, do portão fiquei te olhando, te olhando, você indo já lá longe, quase no fundo da rua, foi ficando menor, menor, até que sumiu num cruzamento.

Voltei para dentro de casa, retomei a ordinariedade das coisas tão triviais da vida; o arrumar da cama, o dobrar minhas roupas que usava em casa, o escovar e o guardar dos sapatos na gaveta. Assim ia eu meu dia. Todavia, de repente vi que sua imagem andando fincara-me, fixada como um painel de rua no breu da noite chamando sua presença: iluminava-se, crescia, eu olhava, via, e depois tudo ia sumindo afunilado. Em pouco, como as ondas de um lago em dias de vento brando, voltava. Sinceramente, não entendi o porquê daquilo comigo.

Mas saí também à minha faina; era preciso trabalhar. Sem perceber o meu projetor daquele filminho desligou-se. As coisas da cidade, os carros passando, a vida corrida, meus anseios de vitória, o trabalho, os bancos, a escola, contas pra pagar, o namoro rápido às vitrines das lojas com a moda chegando, tudo isso me reconduziu à normalidade, à velha ordinariedade de que falei.

A semana acabou, veio o domingo. Fui à missa das sete na catedral, lugar mágico que a gente, esquecendo as vaidades tão vãs, acha que fica mais perto de Deus de verdade. À saída do templo assustei-me: vi você de novo. E como uma caixa de tarol à frente duma fanfarra, meu coração rufou acelerado. Pensei que ia morrer. Mas se fosse, teria sido muito bom ter morrido daquele jeito, feliz, te vendo! De novo você, sem perceber nada que comigo acontecia, se misturou ao povo que respeitosamente deixava a igreja. Desapareceu como bruma ventilada...

Parei na escadaria da catedral, olhei para os lados para te achar, e por fim conclui: sumira mesmo dos meus olhos, que pena! Resolvi ir pra casa. Misturei-me também à pequena multidão. E quando parei na calçada para olhar os carros e atravessar a rua, novamente outro luminoso susto me invadiu; você estava ali, pertinho de mim, até ao alcance de minhas mãos, desenrolando o papel duma bala de cereja.

Como se conhecidos fôssemos de muito tempo, meus olhos cruzaram-se com os seus. Você me sorriu. Depois é que percebi que eu, ao impulso do coração rufando, houvera lhe sorrido primeiro. Você apenas me respondera. Ou correspondera? Atacou-me essa dúvida insana. Fingi esperar um pouco, e assim que você atravessou a rua, discreta e rapidamente abaixei-me e peguei o papelzinho de bala, da sua bala. O vento repentino dum carro que passava o soprou para mais longe de mim, mas apressei-me e pude recolhê-lo sem você ver. Enrolei-o em borboleta, com carinho. Por algum tempo fiquei olhando pr’aquilo. Depois, levantei os olhos. Não mais lhe vi. Então guardei comigo o meu troféuzinho do coração.

Os ventos da vida fizeram seus itinerários sobre mim, até que num sábado de manhã, enquanto eu comprava uma revista na banca, sem que eu visse você chegou bem perto de mim e disse bom dia! Pensei que fosse alguém cumprimentando o dono da banca, e continuei olhando as capas expostas, distraidamente. Mas aí, mais perto de mim, você me desmontou ao repetir: 

– Bom dia! Como vai? 

E antes que a resposta presa na minha garganta saísse você quase me matou do coração:

– Ainda está guardado?

– O quê?

– O papelzinho de bala?!

Sem palavras, naquel’instante meus olhos correram-lhe o corpo de cima a baixo. Sorri sem graça, disfarcei um olhar sobre as revistas e jornais expostos e, perdoe-me aquele meu atrevimento, mas eu não pude me conter quando meus braços, como um autômato, levantaram-me as mãos e foram encontrar-se com as suas que estavam tão quentinhas. Foi mais que um aperto de mãos aquele cumprimento: eu te abracei sem você saber...

Um fiozinho de raio de sol bateu em meus olhos. À estranha sensação, acordei. Olhei para o teto, reviajei comigo:

– Que coisa? Sonho? Que sonho lindo eu tive? Dá um conto, ou mais... Puxa!...

Então sentei-me na beira da cama, pisei o macio do tapete de algodão trançado, esfreguei o rosto com as mãos, enchi os pulmões com o ar novo do dia, espreguicei-me, e só então foi que vi sobre o criado-mudo:

- ...um papelzinho de bala? Borboleteado? Então não foi um sonho?...

.. e senti quando todas aquelas maravilhas se recolheram pro mais fundo do meu coração, na sua morada perpétua.

Fonte:
http://zerobertoballestra.blogspot.com/2016/11/papelzinhode-bala-12.html

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte II


33
Cada mês que passa vai passando
a ser passado. Nós também.
34
Santo mesmo é o peixe. Sequer
precisou da arca para se salvar.
35
Casal de velhinhos na janela
olhando a Lua. Tão longe a de mel...
36
Futuro adiado. Ainda há gente
que namora escrevendo cartas.
37
Doce portuñol. Para los niños
los nidos... y los abuelos.
38
Do dente por dente ao voto
por dentadura. A lei da mordida.
39
Flores na enxurrada. Vão ter afinal
bom hálito as bocas de lobo.
40
Veja a parasita: parece gente
que a gente acha até bonita...
41
Teste de audição. Canta ao longe
um passarinho... e eu posso escutar.
42
Ouro, incenso e mirra. Que será
que fez Jesus com tais luxozinhos?
43
Tens que ter estudo.
Sem estudo és nada.
44
Cubram-se as estrelas. Tem gente capaz
de ao vê-las lhes roubar as pilhas.
45
Tão meninas elas, as meninas
dos teus olhos. Pedem colo, ainda.
46
Garrincha e Pelé. Depois deles
nunca mais houve igual olé.
47
Crocante e cheiroso, com garapa,
na feirinha. Pastel de saudade.
48
Um pulo, medalha. Milhões
de cabeças boas tão longe das loas.
49
Chovem meteoritos. Enxame
de pirilampos na noite da roça.
50
Na fila de idosos, troca-troca
de sintomas. Quem não tem inventa.
51
Nós e os nossos rios, cada qual
segue o seu curso. Reencontro na foz.
52
Labor, ciência e ternura. Quanto mais
amado, mais produz o chão.
53
Viva a companheira... Valeu
perder por ela o jardim do Éden.
54
Zunzunzum... zunzum... É um pernilongo
brincando de fórmula um.
55
Menina se abaixa, acaricia a flor,
sorri. Amigas se entendem.
56
Apressados passos passam
nas pistas do parque. Por que não passeiam?
57
Era transromântica. A poesia
hoje se nutre na física quântica.
58
Homo erectus. Não nasci para ser
vírgula; sou ponto de exclamação.
59
Um homem ao relento no gelado
chão. Por que não samaritamos?
60
Tinha um pé de pinha no quintal vizinho.
Tinha. Nem quintal tem mais.
61
Era um frango assado, e além de assado
era assim. Teve à mesa um fim.
62
Velhinhos na praça jogando
conversa fora. Também jogam damas.
63
Era uma era em que o neto
ouvia histórias do avô. Aí veio o celular...
64
Matuto, matuto... chego enfim
à conclusão: que matuto eu sou...
65
Nunca fui à Lua. Tampouco a Viena.
Porém amo as duas.
66
O Sol que se cuide. Volta e meia
a meia-lua chega em casa cheia.
67
Ave, avós. Hão de um dia
devolver a vós a voz.
68
Amor é isto e tão só: ou dá certo
e é fogo vivo, ou dá curto e vira pó...
69
Mataram Jesus.
E Jesus queria apenas acender a luz.
70
"Deixai vir a mim, em paz e sãs,
as criancinhas." Não estão deixando.
71
Serra-serra, será dor.
Cessa a serra, será flor.
72
Que bom ver de novo o verde.
Ver de novo a vida.
73
No cosmo, a cosmética: o puro,
a verdade e o bem. A perfeita estética.
74
“Pedro, tu és pedra”. Empresta
uma a Francisco pra reconstrução.
75
Um pingo... dois pingos... não parou
mais de pingar. E se fez o mar.
76
Nobre flamboyant. O facho que traz
nos cachos acende a manhã.
77
Branquinhas, branquinhas,
voam as garças em V. Vitória da paz.
78
Profissão de fé: eu creio
que Deus existe porque Deus existe.
79
Infinda é a esperança. Os galos
cantam ainda na aurora de cada dia.
80
Bem-aventurados os que sonham.
Chama-os Deus poetas.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman

domingo, 30 de julho de 2017

A. A. de Assis (Microcrônicas) Parte I


1
No princípio era a paz.
Até que uma vez uma cerca se fez.
2
Tão simples, meu santo: “Ame e faça
o que quiser”. O resto é discurso.
3
Terra prometida. A fé abre ao meio o mar
para o amor passar.
4
Estrela cadente. Vaga-lumes
se alvoroçam cobiçando a vaga.
5
Ao luar, no Paraíso, o primeiro jantar
a dois. Que deu no que deu.
6
Posso viver sem ter nada;
porém jamais sem ter-nura.
7
Florzinha silvestre no jardim
do shopping-center. Êxodo rural.
8
Assanhadas rosas. Disputam
a preferência de um raio de sol.
9
Quem foi que afinal tantas florestas
derrubou? Foi o pica-pau?...
10
No meio do pasto um ponto
de exclamação. Último coqueiro.
11
Nobre girassol. Como podem,
no mercado, chamá-lo commodity?
12
Mosca na parede. Avisem
à lagartixa que o jantar chegou.
13
Mão de jardineiro. Num leve toque
faz do esterco a flor.
14
Me explique, violeta, explique: como pode,
tão humilde, ser você tão chique?
15
Corrija-se a tempo. Mais de mater
que magistra necessita o mundo.
16
Se tiver apoio, bem que pode
um dia virar trigo o joio.
17
Li num alfarrábio: de pobre se sobe
a rico, porém não de rico a sábio.
18
Na Idade da Pedra talvez já se
comentasse: – É uma pedra a idade.
19
Sabiá caçando. Nem só
de gorjeios vive, mas também de insetos.
20
Perdoa, Platão. Transformamos
a Kallipolis numa Bad City...
21
Outrora havia banda no coreto
do jardim. Onde mora o outrora?
22
Pra lá e pra cá. Enfim,
de que lado ficará o pêndulo?
23
Dizem que a cigarra nada faz
senão cantar. Ah, é indispensável.
24
Troca de alianças.
O futuro escolhido a dedo.
25
Curvada, a velhinha cata
o cocô do cãozinho. Civilização.
26
Ah, espelho meu. Cada vez
que em ti me vejo, vejo menos eu.
27
Na segunda, até os segundos
seguem devagar.
28
Maringá feliz. Abriga e escuta ainda
sabiás e bem-te-vis.
29
Um pingo de luz no topo do
arranha-céu. Brincando de estrela.
30
Parábola bela. Mas e a mãe
do filho pródigo, onde estava ela?
31
Balança o palanque. O peso
na consciência do nobre orador.
32
As rosas no cio. Sedutoramente
esperam pelo beija-flor.

Fontes:
Microcrônicas enviadas pelo autor.
Imagem: criação por J.Feldman