sábado, 10 de abril de 2010

J. B. Donadon-Leal (Paráfrase à Mineira)


(Ao poeta Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci veio um anjo roxo
que de costas pra mim no cocho
revelou à minha mãe já decepcionada:
– Inculca nesse mocho aí que chora
que não se pode ser trouxa na vida
mas não adianta querer-se esperto
levando a vida nas coxas
ou se mudando pra Itabira.
Minha mãe fingiu não ouvi-lo
fingi também e mamei tudo que pude dela,
e antes que ela pudesse me dizer:
– Vai, infeliz, ser bom de bico,
rabisquei meus versos
e me fiz descontente.
O resultado dessa rejeição ao anjo
é que hoje não ceifo nem semeio,
mas cavalgo nos dorsos de Minas.
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Fonte:
Revista Academia de Letras do Brasil/Mariana-MG // ANO I – Número I

Daltemar Cavalcanti Lima (Livro de Poesias)


ACUADO

Naquela esquina, não passo.
Alguém vai me inquirir,
Não vou responder
Tudo que sei do que fiz.

Também não. Naquela rua, não ando.
Vão me intimidar,
Não vou corresponder
Nem pra ser feliz!

Naqueles bares, não entro...
No convite à bebida,
Posso vacilar,
Tenho que segredar a razão das reações.

Minha liberdade é pequena,
Tem o tamanho de uma dívida
Cerceada pela cobrança.

Gostaria de viver escondido
Entre o colchão e a cama,
Sem respirar, com receio
Da procura que não se cansa.

Qualquer “psiu”
Me identifica.
Paro e olho instintivamente,
É a conspiração do medo.
É a vontade de fugir
Que me faz parado...

Até agora só falei de amor.
( do livo Acuado - 1979)

VIAGEM

Fiz uma terraplenagem em minha vida
e desapareceram
todas lombadas que o amor deixou.
Nos trechos sinuosos das indecisões
coloquei um sinal de perigo
às minhas pretensões.
Determinei ao meu sonho
que não ultrapassasse
a velocidade máxima da ilusão.
Na passagem de nível
construí viadutos
para evitar o choque
com a mediocridade.
Nas curvas em declive
e em aclive
não saí da mão da consciência.
Tive o cuidado
de alertar a distração dos transeuntes
que se preocupam erroneamente
com minhas despreocupações.
Nos trevos
das minhas variações mentais
semáforos
me pedem atenção
por aqueles
que apreciam meus desfeitos.
Jamais
joguei nos abismos e acostamentos
quem sempre me estendeu as mãos...
são os que nunca usaram retrovisores
para me olhar de frente!
Na vaga
do meu último estacionamento
os silvos me homenageiam,
não há multas a pagar...
Só espero o troco
dos pedágios
que paguei para viver.
( do livo Acuado - 1979)

ALVARÁ

Tenho licença
para ficar comigo,
libertar o sonho antigo
e ouvir o silêncio
(entre gritos e apelos)
do indiferente
que é a própria gente.
Com licença
para fingir sentir
a dor que não é minha,
o lamento que não é meu,
na saudade vizinha.
Dê licença
para viver criança,
ter um pouco de esperança
de meu amanhã.
( do livo Acuado - 1979)

EU - PARA MIM

Busco, fingindo fugindo,
a intimidade perdida
dos teus afagos e apegos
- minha emoção incontida.
Subo degraus movediços
da indecisão do reencontro.
Escada de teu descanso
no meu crescente cansaço.
Quero o teu amor alheio,
perdido no meu ideal
e na razão de teu anseio
de requinte social.
E esse desespero febril
traz-me uma intrepidez hostil
que nunca irá esquecer
porque - nunca haverás de saber.
( do livo Acuado - 1979)

DESVIVER

Não desvivo. É inverdade.
Apenas externo repúdio interno
pela desigualdade.
Se a fome não faz meu apetite
nem por isso se admite
que eu não queira comer.
Se meu sono quer dormir
e não consegue deitar,
creia:
não sou leito
para o seu mal-estar.
Quero mulheres
(para não falar de amor).
Quero atenções
(para não fingir carinhos).
Quero ouvir canções
nos ouvidos das flores.
Quero mais amigos
para não viver sozinho.
( do livo Acuado - 1979)

SEM COUVERT

Páginas mais acessadas
Seu garçom,
Estou subnutrido
E preciso alimentar-me de amor.
Não quero cardápio,
Pois as opções às vezes nos levam
À duvida.
Nem tudo que se escolhe
Satisfaz.
Desejo um PF
Bem temperado de carinho,
Transbordando ansiedades.
Dispenso a presença da faca e do garfo.
Prefiro a colher
Para que possa ter minha boca
Boquiaberta e sentir o paladar
Do molho excitante e ofegante.
Também não quero
Sobremesa sobre a mesa
- ela mudará a digestão do sabor -
de um provável orgasmo mexido.
Digo: um ensopado de calorias.
Seu garçom,
Fale ao dono deste restaurante
- O senhor destino –
Que não tenho dinheiro para pagar.
Afinal, amor não se paga.
Quanto à gorjeta,
Aqui está:
- Minha esperança!
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Daltemar Cavalcanti (1934 - 1993)



Daltemar Cavalcanti Lima nasceu no dia 11 de Julho de 1934, no Rio de Janeiro, e morreu em 05 de março de 1993, em Juiz de Fora.

Figura das mais queridas e populares da noite juiz-forana morreu aos 58 anos vítima de parada cardíaca.

Lima, como era chamado pelos amigos, marcou sua presença entre nomes de destaque da cultura da cidade e catalogava entre suas amizades a do Presidente Itamar Franco, que lhe tinha uma grande admiração pelo jeito simples, amoroso, amigo e leal, era conhecido como" O Poeta da Madrugada".

Seu último livro "Ainda", lançado em maio de 1992, recebeu elogios do Presidente Itamar Franco.

O poeta, que tinha a noite como testemunha de sua vida, por ironia morreu às 3 horas da manhã.

Querido por personalidades, intelectuais, artistas, empresários, e até mesmo por marginais, era um cidadão comum, sensível, de bom humor. Jamais se dispôs a tirar proveito próprio de seus relacionamentos. Seu caráter simples não lhe permitia intimidade profissional acima da afetividade amistosa da amizade.

Carioca, iniciou carreira nos anos 50, como operador de som da Rádio Metropolitana - RJ, prosseguindo como cronista de turfe de vários jornais do Rio de Janeiro e depois repórter policial.

Teve uma breve passagem pela Rede Globo com o programa "Estado do Rio na TV”. Sempre esteve envolvido nas campanhas eleitorais de Itamar Franco, associando-se mais tarde a poetas, trovadores, compositores e músicos, "para expandir meus arrependimentos através da poesia".

A famosa “mesa do espelho" no restaurante brasão, em Juiz de Fora, era o lugar preferido de seus encontros com os amigos mais próximos, invariavelmente, todos os dias.

Podemos citar entre seu círculo de amizade os poetas: Roberto Medeiros, José Antonio Jacob, Gilberto Vaz de Melo, Carlos Décio Mostaro, Messias da Rocha, Hegel Pontes, Dormevilly Nóbrega, a amiga Janete Batista, a cantora Raquel Silvestre, os compositores e poetas Roberto e Ricardo Barroso, Jorge Alves, entre outros. Uma de suas últimas declarações aos amigos foi essa: “Como nasci no Rio de Janeiro, faço questão de morrer em Juiz de Fora. "Minha maior paixão não é ser poeta, não é ser jornalista como sou. “Ela se chama Medicina, porque trabalha com o material mais caro da natureza: a vida humana”.

Fonte
http://artculturalbrasil.blogspot.com/

José Antonio Jacob (Poeta da Gema )



“Daltemar Cavalcanti Lima, carioca de nascença, poeta da gema, chegou a Juiz de Fora por volta de 1968, numa época em que a cidade preparava um dos seus tradicionais festivais de MPB. Em pouco tempo o Lima integrou-se no meio intelectual, com os poetas do NUME (Núcleo Mineiro de Escritores) tornando-se, desde então, eminente presença em todas as rodas de poesia, música e política da época. Tornou-se amigo do prefeito Itamar Franco, além de todo grupo da administração municipal. Tratava o futuro presidente da república pelo primeiro nome.

Itamar, que sempre incentivou as iniciativas culturais, tornou-se amigo do Lima e alguns afirmam que - em virtude de sua precária condição financeira - lhe foi oferecido cargo de confiança na prefeitura, ao qual o poeta rejeitou, alegando incompatibilidade no fuso horário entre seus afazeres de poeta e a nova responsabilidade que teria de assumir.

Assim, prosseguiu sua vida de boêmio e de poeta, e adotou Juiz de Fora sua cidade natal. Nunca mais viajou, tampouco arredou pé dos bares do centro da cidade, onde, na época de Itamar Franco, (um outro dia falarei sobre a Época de Ouro da cultura juiz-forana, nas administrações de Itamar) fervilhavam a cultura poética e a arte musical, a cultura popular e erudita, além de muitas conversas políticas, que para o Lima eram “pratos cheios” em suas observações de poeta nato.

Lima publicou - com tiragem pequena e selo independente - uma série de três ou quatro livros.

Nos arquivos culturais da prefeitura de Juiz de Fora nada se comenta sobre a poesia do Lima – na Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA - pouco se menciona nome de outros poetas e escritores juiz-foranos, a não ser Murilo Mendes, pois que a marca Murilo Mendes aloca recursos que interessam aos que vivem profissionalmente da sua biografia. Mas outros poetas e livros existem e certamente aparecerão qualquer dia.

Uma alma fácil e dócil, jamais pronunciou palavra de mal estar ou ergueu sua voz contra o semelhante. Nenhuma manifestação crítica, maledicente ou de insinuação negativa, o Lima pronunciou em sua vida. Também não escreveu palavras ásperas e nem participou de movimento de caráter subjetivo contra outra pessoa.

Ele não comentava sua vida passada, a não ser que havia nascido no Rio de Janeiro. Nunca disse a ninguém seu ano de nascimento, nem o dia do seu aniversário, e só fui saber que tinha família no dia de sua morte, quando sua irmã Djanira veio do Rio para tomar providencias preliminares no seu velório e depois do enterro foi embora sem dar mais notícias. Foi sepultado no Cemitério Municipal de Juiz de Fora, em cova desconhecida, sem lápide, sem inscrição, com nenhuma referência ao seu nome.

Logo depois da morte do Lima o então vereador de Juiz de Fora, poeta Gilberto Vaz de Melo, apresentou projeto de Lei mudando o nome da Praça General Emílio Garrastazu Médici para "Praça Poeta Daltemar Cavalcanti Lima". O projeto não foi sancionado pelo prefeito da época . Somente depois de quase uma década, com novo prefeito, o projeto foi sancionado, pois que o Gilberto usou dispositivos legais para fazer cumprir seu projeto de Lei.

Ainda hoje, decorridos 16 anos, a praça do bairro Bom Pastor continua sendo conhecida por "Pracinha do Bom Pastor", ainda que haja no local uma acanhada plaqueta com o nome do poeta, colocada pela administração municipal.

No seu primeiro livro "Acuado", lançado em maio de 1979, o Lima imprimiu a seguinte dedicatória na página de rosto:

"Dedico este livro a JUIZ DE FORA que me recebeu e me acolheu com carinho e liberdade humana para viver como sempre quis."

O poeta não poderia imaginar o descaso das futuras administrações municipais

Em março de 1993, na véspera de sua morte, de tardinha, encontrei casualmente o Lima na galeria do Bar do Beco, em Juiz de Fora. Ele estava à mesa de um bar: cabisbaixo e com as pernas cruzadas. Bebemos alguns goles e conversamos amenidades poéticas até o anoitecer, quando ele se levantou e se despediu.

Ainda guardo na memória a imagem do Lima se afastando, caminhando - calmo e elegante - rumo ao destino da sua manhã seguinte.”

Juiz de Fora, 07 de setembro de 2009
José Antonio Jacob
(exclusivo de ArtCulturalBrasil)

Fonte:
http://artculturalbrasil.blogspot.com

Stanislaw Ponte Preta (FEBEAPÁ - Festival de Besteira que Assola o País)


O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.
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Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o Brasil foram colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de Turismo de São Paulo — Deputado Orlando Zancaner — quando inaugurou a ala das bandeiras, disse que "era para incrementar o turismo externo".
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Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou: "Insulto eu não tolero".
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O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete lá: "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de suicídio — voluntário ou involuntário".
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Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de desquite contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa não lhe dá a menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é hora de programas de Roberto Carlos na televisão. A professora vai aprender que mais vale um Carlos Roberto ao vivo que um Roberto Carlos no vídeo.
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Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:
"O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia da Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação, bem como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O conferencista foi aplaudido de pé". O distraído Rosamundo leu e, na sua proverbial vaguidão, comentou: "Não seria mais distinto se aplaudissem com as mãos?".
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Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia no dia 1.º de abril depararia com o prédio da assembléia Legislativa totalmente cercado por tropas da Polícia Militar. Na certa, a separação de poderes, prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.
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Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): "O Dr. Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligencias pelas vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos "bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código secreto".
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A peça "Liberdade, Liberdade" estreou em Belo Horizonte e a Censura cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: "Mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil.
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Segundo Tia Zulmira "o policial é sempre suspeito" e — por isso mesmo — a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do riu sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".
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A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos), declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furioso: "A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre". Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso na Câmara sobre o tema "Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira".
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Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ramos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" — nomeava um professor para a cadeira de Direito Penal. O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela que estuda o Direito".
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A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre recentes publicações pretensamente científicas, "que abordam problemas relacionados ao sexo com evidente abuso". O documento não explicou se o abuso era do problema ou se o abuso era do sexo. Em compensação, nessa mesma conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de Fortaleza, dava entrevista à Agência Meridional sobre pílulas anticoncepcionais, uma pílula formidável para fazer efeito no Festival de Besteira. Como se disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus Deus!!! Dom Delgado, por exemplo, dizia: "A protelação do casamento é a única conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro: o da continência na vida conjugal". Como vêem, o piedoso sacerdote era um bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda mais, falando em sexo e em continência na vida conjugal, deixou muito cocoroca achando que, dali por diante, era preciso bater continência para o sexo também.
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Fontes:
Festival de Besteira que Assola o País. RJ: Editora do Autor, 1966.
2.º Festival de Besteira que Assola o País. RJ: Editora Sabiá, 1967.
FEBEAPA 3. RJ: Editora Sabiá, 1968.

Mário Palmério (1916 – 1996)



Mário de Ascenção Palmério, professor, educador, político e romancista, nasceu em Monte Carmelo, MG, em 10 de março de 1916.

Fez seus estudos secundários no Colégio Diocesano de Uberaba e no Colégio Regina Pacis, de Araguari, licenciando-se em 1933.

Em 1935, matriculou-se na Escola Militar de Realengo, no Rio, de onde se desligou, no ano seguinte, por motivos de saúde.

Em 1936, ingressou no Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, sendo designado para servir na sucursal de São Paulo. Lá, iniciou-se no magistério secundário, como professor de Matemática no Colégio Pan-Americano, passando a lecionar em outros estabelecimentos.

Deixa o banco e dedica-se exclusivamente ao magistério. Em 1939, matriculou-se na seção de Matemática da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, época em que passou a lecionar também no Colégio Universitário da Escola Politécnica, por nomeação do Governo daquele Estado. Tempos depois deixou São Paulo para abrir na cidade mineira de Uberaba o Liceu do Triângulo Mineiro.

Eleito deputado federal em 1950, e reeleito em 1954 e 1958, exerceu funções de destaque na Câmara dos Deputados.

Só aos 40 anos (1956) aparece seu primeiro livro, fruto de aventura intelectual cujo propósito era bem outro, isto é, a política. " ‘Vila dos confins’ nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance...", segundo confessa o próprio autor.

Seu espírito empreendedor levou-o a construir em Uberaba a Cidade Universitária em terreno de área superior a 300.000 metros quadrados, e o Hospital "Mário Palmério", da Associação de Combate ao Câncer do Brasil Central, maior nosocômio em todo o interior do Brasil.

Em setembro de 1962 foi nomeado pelo Presidente João Goulart para o cargo de Embaixador do Brasil junto ao Governo do Paraguai. Assumiu o posto em 10 de outubro do mesmo ano. Permaneceu nessa missão até abril de 1964; período em que marcou sua presença tanto no campo da diplomacia como no das atividades culturais naquele país.

De regresso ao Brasil isolou-se em sua fazenda São José da Cangalha — no sertão do Mato Grosso — e ali escreveu “Chapadão do Bugre”, romance para o qual vinha colhendo, desde o êxito de “Vila dos confins”, abundante material lingüístico e de costumes regionais, e que recebeu de toda crítica os mais rasgados elogios. Lançado em outubro de 1966, o romance teve inúmeras edições.

Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na Cadeira nº 2, sucedendo a Guimarães Rosa, em 4 de abril de 1968, e recebido em 22 de novembro de 1968, pelo acadêmico Cândido Mota Filho.

Durante vários anos viajou de barco pelo rio Amazonas e seus afluentes, levantando dados sobre a realidade física, social e cultural da Região Amazônica. Em 1987, deixou de vez o Amazonas e voltou a morar em Uberaba, como Presidente das Faculdades Integradas daquela cidade. Em 1988, recebeu a medalha Santos Dumont, conferida pelo Ministério da Aeronáutica.

Mário Palmério era casado com D. Cecília Arantes Palmério. Teve dois filhos: Marcelo e Marília.

O escritor faleceu em Uberaba (MG), no dia 24 de setembro de 1996.

OBRAS:

Vila dos confins, romance (1956)
Chapadão do Bugre, romance (1965)
O morro das sete voltas, romance (inédito)
Seleta... Organização, estudo e notas de Ivan Cavalcanti Proença (1974).

Fonte:
Academia de Letras do Brasil

Mário Palmério (Chapadão do Bugre)


Quem apostou que o máximo a que se poderia chegar com o romance regionalista foi alcançado por Mário Palmério, em Vila dos Confins, um dos raros casos em nossa literatura de aprovação entusiasmada de crítica e público, felizmente perdeu.

O próprio Mário Palmério tratou de superar seu aplaudido romance de estréia com uma obra ainda mais impressionante: Chapadão do Bugre.

Com letras de fogo, Mário Palmério, nesta obra-prima de nossa literatura, forja a monumental e trágica história de um cavaleiro solitário do sertão brasileiro, que vaga por uma terra adubada com sangue, onde florescem a intolerância, a violência e a crueldade.

Como nas tragédias clássicas, o destino brinca com vidas humanas, e conflitos sucessivos jogam uns homens contra outros, num vendaval de violência e morte do qual nem os poderosos chefes políticos do lugar são protegidos. Alimentando tudo, o furioso desejo de conquista da terra e do amor.

Quem busca a aventura, a ação incessante, a resposta de homens rudes e cruéis aos desafios que a vida impõe, descobre em Chapadão do Bugre um romance insuperável.

Quem busca o estilo impecável, o domínio absoluto da linguagem mesclado ao amor à terra que descreve, encontra em Mário Palmério um autor regionalista que eleva o gênero em que é mestre à condição de epopéia.

Neste, como lembra o escritor Otávio de Faria, "a vitória do romancista é completa. Pode-se dizer que é uma das mais brilhantes a que temos assistido. Todas as altas qualidades de Vila dos Confins", reconhece o crítico, "ressurgem aqui, mas os elementos novos com que deparamos são aqueles justamente que caracterizam, acima de tudo, o grande romancista, o grande romance".

Chapadão do Bugre é um romance baseado numa história real e misteriosa ocorrida no interior de Minas Gerais no início do século, fato que não seria relevante se o povo da cidade em que tudo ocorreu, Passos, não acabasse por eleger a obra de Palmério como a mais original das versões sobre o episódio.

Como em Vila dos Confins, o escritor escolhido em 1968 para suceder João Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, nos leva ao Brasil dominado pelo coronelismo político, reconstruindo todas as facetas desta dominação e suas conseqüências para a comunidades e os indivíduos.

Mais amadurecido no manejo da composição, atuando com desembaraço e verdade no levantamento dos tipos mais expressivos de sua galeria de personagens, Mário Palmério, como este chapadão do Bugre, confirmou sua condição de ficcionista de ato nível, de escritor capaz de transpor para a literatura a linguagem e os costumes do homem do interior.

Altamente dramático, cruel e violento, o romance prende o leitor pela sua trama, mas é o tom de conversa entre compadres que o torna inesquecível.

Talvez por isso, quando, em 1988, Walter Avancini adaptou-o para a TV, manteve-se fiel à linguagem que consagrou Mário Palmério, produzindo uma das minisséries de maior sucesso da Rede Bandeirantes.

Narrado em terceira pessoa, paralela à qual coexiste a "consciência" de Camurça, a mula de montaria que visualiza o sentido de toda a trama - inclusive sua própria morte, como ocorre com os protagonistas de O coronel e o lobisomem e Sargento Getúlio -, Chapadão do Bugre é, sob o ponto de vista da estrutura narrativa, bastante insólito, rompendo os esquemas tradicionais.

Lingüisticamente, de todas as obras da nova narrativa é, ao lado de A pedra do reino, a que menos se desvia da norma culta do português, apesar de ser forte, nos diálogos, a presença de um linguajar caboclo-sertanejo.

Texto escolhido - A CHACINA

Acostumado a levantar-se cedo e ir logo ao Forum, Seu Juca Meirinho ali chegou pouco antes das sete da manhã, malgrado o frio e a ausência do Juiz de Direito.

Sabia da reunião marcada para as oito horas entregara, na véspera, por ordem do Dr. Damasceno, a chave da porta de entrada do sobrado ao Sargento-Ordenança e desejava, agora, pôr-se à disposição do delegado militar.

Abriria o café do vão da escada e, vez ou outra, acharia desculpa para ir até o andar de cima, conforme recomendara o doutor, a fim de verificar se não tentavam fuçar pelo quartinho fechado, cheio de roupas e outras coisas particulares, além de tanto livro e papelada.

A porta estava aberta, de sentinela embalada.
Mais velho que o sobrado era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo Fórum, e já rapazote e já taludo, quando da construção e instalação do novo o prédio acabou como por ser casa, coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando, distraído, pensando no café do Capitão e das outras pessoas por chegar.

Alto! o cavalariano atravessou-lhe o passo.

Assustado com o berro, a feia catadura e a declarada má-inclinação da sentinela a fera estava armada de máuser, sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas de tanta bala mal pôde o Juca Meirinho gaguejar:

Mas eu sou o oficial de justiça... O doutor... O Doutor Juiz de Direito...

Aqui não tem juiz de direito nenhum! O Forum ’tá requisitado. Se arretire!

O jeito era afastar-se, como ordenava o soldado, e foi o que fez o Juca, sem abrir mais a boca, cruzando a Praça e indo postar-se na esquina da confeitaria. Quando aparecesse o Capitão reclamasse o café, que viessem ali chamá-lo... E, se o homem azedasse, paciência!: o volantezinho malcriado da porta do Forum, então, que ouvisse...

Erguia-se a manhã, ainda fria e nevoenta, e principiava a encher-se o Largo das Mercês. Abriam-se as portas da Confeitaria do Cucute, as das lojas e outras casas de negócio abriam-se as janelas dos sobrados que davam para a Praça.

Iam e vinham as normalistas descia dos altos o povo do comércio, subiam os que voltavam do Mercado.

Encostava-se ao ponto o primeiro carro-de-praça, quando o relógio da Matriz deu as sete horas, e começou a apitar a serraria-carpintaria do Seu Costinha da Força-de-Luz, lá no Alto da Estação.

Mais um dia! pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina, curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela. Felizmente, porém, o Governo já havia mandado chamar, com urgência, o doutor...

Seu Polinésio da Estação falara, muito em segredo, na véspera, depois que partira o Dr. Damasceno, sobre um telegrama do Dr. Tancredinho para o pai, o Coronel Americão: as coisas, na Capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava muito satisfeito... Decerto a viagem o Dr. Damasceno Soares era para fecharem, por lá, algum acordo, acertarem tudo com o Coronel Americão, mandarem embora o Capitão Eucaristo e a soldadesca dele...

Sim concordava com Seu Polinésio da Estação o Juca Meirinho o Dr. Damasceno, pessoa tão religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo, as barbaridades da Captura: o Dr. Jojoca, coitado criatura tão alegre, um mão-aberta, brincalhão... O inofensivo do Quincota, esse, o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter a colherzinha-torta onde não devia...

Que limpassem a cidade do banditismo, que se pusesse um freio aos abusos do Coronel Americão Barbosa... havia mesmo necessidade de um pouco mais de energia por parte do Governo...; mas sem tanta malvadeza e violência!

Prenderem o Clodulfo era merecido: culpado de tudo, o alma-negra de Santana do Boqueirão, o espírito-mau que atuava na sombra... Sim.

Precisavam de acabar com tanto crime, tanta jagunçada: não passava uma semana sem nova façanha da quadrilha do Cludolfo: a última Santana do Boqueirão inteirinha já sabia dela a história do José de Arimatéia em Campanário...

Passou pela esquina o Xico das Moças murchozinho, as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão, parecia até que falando sozinho. Oito filhas-mulheres, o azarado!

E todas solteiras ainda... Decerto nem dormir ele não podia mais, com o fechamento da Lotérica... Viver, agora, de que, o pobre do Seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada em casa, se a única ocupação que sabia ele desempenhar era vender bilhete e encher talão de bicho?

Chegou à esquina Seu Lamartine da Farmácia, o Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica. De charrete, passou o Zé da Vó, carregado de menino, vindo da chácara, com certeza.

Outro que perdera a minazinha, o Zé da Vó: o ponto mais movimentado do centro da cidade, o invejado Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além do bicho, o víspora, e mais o buzo e o jaburu nos fundos...

Deus havia de ajudar porém suspirou o Juca Meirinho. O Dr. Damasceno acharia jeito de normalizar, na Capital, a ruim situação, deixar, pelo menos, aberto o jogo...

Ali estava ele sim, ele também, Seu Juca Meirinho do Forum com um rombo danado na feriazinha... Brincando, brincando, eram lá os seus oitenta, os seus cem-mil-réis o que rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho dos advogados e do pessoal aos cartórios justo o que pagava do aluguel de casa.

Os primeiros a chegar passava pouco das sete-e-meia foram o Capitão Eucaristo Rosa e o Sargento Hermenegildo. De passo descansado atravessaram pelo meio do Largo sem se deterem na esquina ou na confeitaria e entraram logo no Forum.

A notícia da reunião correra pela cidade, e começava a juntar mais gente na Praça, nas portas das casas de comércio, nas janelas. Próximos do Forum, na calçada, a porção de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados e municiados fartamente se via pelas cartucheiras estufadas, pendentes dos cinturões.

Demonstração de força era o comentário geral. Maneira d’o Capitão Eucaristo obrigar o Coronel Americão a ceder a tudo, sujeitar-se por completo às imposições, entregar à Captura os jagunços que faltavam. Todos já estavam a par das boas notícias mandadas ao pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama, também, chamando o Juiz de Direito.

Não demoraria a ordem para que a Captura se retirasse de Santana do Boqueirão. E o Capitão Eucaristo aproveitava o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria, mas depois de dobrar a arrogância do Coronel Americão, deixar o chefão de Santana humilhado, desmoralizado por completo...

Cederia o Coronel? Afinaria frente ao aparato da Captura e às ameaças do Capitão? perguntavam, a si mesmos e uns aos outros, os santanhenses reunidos no Largo das Mercês, parados de curiosidade e expectativa.

Não eram ainda as oito horas quando apontaram na esquina do alto da Praça certamente que vindos da casa do Coronel Américo Barbosa, concentrados ali, primeiramente os chefes do Diretório convocados pelo Capitão Eucaristo Rosa.

Quase todos, ausente do grupo apenas Seu Valério Garcia, o Delegado Municipal. Na frente, os principais: o Coronel Americão e o Coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá, emproadão e pedante como sempre. Atrás, os outros três: o Major Hipólito, Seu Josué Malaquias e o Coronel Ludgero Alves.

Desciam o Largo pela calçada da Força-e-Luz, atravessavam-no junto ao ponto dos carros-de-praça, passaram pelos soldados espalhados nas imediações do Forum.

Entraram no sobrado como se em um daqueles dias de eleição, na hora de encerrá-la, lavrarem as atas e combinarem o foguetório, a passeata... alguém se lembrou.

Sim, apenas os chefes do Diretório do Coronel Américo Barbosa podiam, nessas ocasiões, entrar no edifício guardado pelos jagunços de carabina: a oposição que esperasse do lado de fora, se estrebuchando de raiva, ciente já do resultado...

À porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão dos cartórios e ao pé da escada, outro volante um cabo, embalado também. Ninguém mais.

Podem subir... o Cabo Zeca Branco disse. O Capitão já ’tá esperando lá em cima.

Subiram os dois lances da escadaria. No topo, à porta do salão de júri, o Sargento Hermenegildo:

Os senhores entrem... Vou avisar o Capitão Comandante... Mas, ’tá faltando um...

Seu Valério Garcia já deve de ’tar chegando o coronel Americão disse. Mandou me avisar que vinha direto pr’aqui... Ele mora logo em frente, na esquina da igreja...

Os cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o Juiz de Direito costumava presidir às audiências e ouvir as testemunhas. O Sargento apressou-se em vir avisar o Capitão da chegada do coronel e companheiros.

O Delegado Especial Militar estava no gabinete reservado, do Doutor Juiz de Direito o Sargento Hermenegildo explicara, antes de deixar o salão.

Demorou-se, porém, muito pouco, voltando com a ordem do Capitão Eucaristo:

O Capitão Comandante quer falar primeiro com o Coronel Américo Barbosa... Em particular...

Vazio o corredor, apenas mais outra sentinela um praçazinho miúdo, preto tal qual o Sargento Hermenegildo , essa colocada junto à porta fechada do gabinete do Juiz o Coronel Américo Barbosa observou, enquanto caminhava seguido do Ordenança.

O soldadinho entreabriu a porta, esperou que o coronel entrasse, espremido, por ela, e fechou-a novamente. O Sargento voltou ao salão de júri.

Correram alguns minutos. A sentinela foi então quem veio chamar:

É para ir também o Coronel Calixtrato.

Me acompanhe! ríspido, feio, o Sargento Hermenegildo ordenou.

Lá se foi também, chapéu-panamá e bengalão nas mãos, escoltado pelo Ordenança, o Coronel Calixtrato Barbosa. A sentinela abriu-lhe meia porta repetiu a cerimônia e o Agente Executivo de Santana do Boqueirão entrou na saleta do fundo do corredor.

Nesse meio-tempo, o Coronel Ludgero Alves, incomodado com a demora do Valério Garcia já havia dado as oito horas o relógio da Matriz levantara-se e fora até a uma das janelas do sobrado para olhar o Largo.

Espiou, primeiro, para o relógio cinco minutos já de atraso! e avistou, em seguida, o Valério que cruzara o jardim, apressado, pelos lados do coreto

O Coronel Ludugero! chamou, alto, da porta do salão, o Sargento Hermenegildo, depois de receber outro recado da sentinela. Me acompanhe!

Tratados que nem menino de escola!... mal se continha, remoendo o ódio, o velho Coronel Ludugero Alves. Fazendo chamada, o atrevidaço do Capitão, e por um crioulão boçal daqueles...

Mas deixou a janela e acompanhou o Ordenança pelo corredor. Chegados à porta fechada do gabinete do Juiz de Direito, a sentinela levou a mão à maçaneta.

Foi quando o Coronel Ludgero Alves viu então: debaixo da porta, infiltrando-se pela fresta rente ao assoalho, a coisa começava a escorrer sobre as tábuas larga e grossa, e vermelha bicazinha...

Sangue! o velho, de instantâneo, tudo percebeu: o Americão, o Calixtrato!... Num arranco inesperado para trás, conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a sentinela, e tropegar rumo à escadaria:

’tão matando a gente! ’tão matando! o Coronel Ludgero disparou a gritar que nem um alucinado.

Mas não conseguiu alcançar nem o fim do primeiro lance da escada, lento de pernas, idoso demais para vencer os degraus estreitos e quase a pique. Alcançado pela linda pontaria do Sargento Hermenegildo, caiu por ali mesmo, picado pela rajada seca dos terríveis tiros curtos, de aço, de pistola-máuser.

Logo ao primeiro grito do Coronel Ludgero Alves, muitas portas, até então fechadas, se escancararam, ali por dentro do casarão do Forum.

Do gabinete reservado, onde haviam sido massacrados os coronéis Americão e Calixtrato, saíram três cavalarianos, mascarados de sangue, machadinha em punho um deles o Cabo Salvador, o que, trepado na cadeira colocada atrás da porta, fora incumbido de golpear, em primeiro e na cabeça, à medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos um por um pelo Sargento Hermenegildo.

O Capitão Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada, do banheiro pegado ao quarto de dormir do Juiz de Direito, na outra ponta do corredor.

Da saleta dos advogados, vizinha ao salão do júri, do cômodo ao lado da escadaria depósito da papelada velha dos cartórios das sentinas do andar de baixo, do café de Seu Juca Meirinho... de todos os cantos e desvãos saltaram os volantes da Captura, açulados mais ainda pelos tiros da pistola do Ordenança.

Encantoados no salão, restava ao Major Hipólito e ao Josué Malaquias apenas a janela aberta pelo Coronel Ludgero, na hora em que fora ele olhar as horas e a Praça, preocupado com o atraso de Seu Valério. Para ela arremeteram-se os dois.

Das sacadas dos outros sobrados da Praça, das esquinas e calçadas, viram-nos tentar a escapada... a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril, montá-lo, atirarem-se janela abaixo. Os pobres: velhos, encarangados de juntas...

Muita gente assistiu aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem, se espremerem... enquanto, de dentro do sobradão, recomeçavam os tiros, rápidos, repetidos.

Sim, venceram o parapeito da janela, galgaram-no sim, o Josué Malaquias e o Major Hipólito: transpuseram-no, precipitaram-se daquela altura... mas alçados e empurrados, depois de fuzilados pelas costas, arrojados fora pelos soldados lá de cima, para virem espatifar-se na calçada de pedras do Largo das Mercês.

Seu Valério Garcia tudo presenciou, parado no meio do Largo, estupidificado, como que estuporado da cabeça aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado por um balaço vindo dos altos do Forum um coice de burro, de veloz, certeiro e rijo que o atingiu na boca do estômago, quase que no centro exato da cintura.

Ocupar toda a praça fronteira ao Forum, guarnecer os cantos do jardim, as esquinas do Largo, evacuar, limpar completamente as imediações do Forum, isso foi obra de instantes para o treinado e ágil Segundo Destacamento do Capitão Eucaristo Rosa.

Quando o oficial desceu o degrau de entrada do sobrado, acompanhado do Sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram vê-lo, uns através de frestas de janelas, outros por debaixo das mesas ou amoitados atrás do balcão da Confeitaria do Cucute.

E ouvi-lo berrar para alguns volantes da Captura que se abeiravam dos corpos estendidos no paralelepípedo e lajes da calçada: Se afastem! Entrem em forma! Os parentes que tomem conta!

Muitos, muitos anos depois, e Seu Valério Garcia ainda contava, para quem quisesse ouvir, como escapara à chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão:

Foi Seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura, quem me segurou em casa, desde manhã cedo, fecha-não-fecha a compra da safra do Pinhém daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, da minha pressa, mo’de a reunião... Me atrasou, acabou levando um vantajão no negócio, mas me salvou a vida, o Seu Genésio...

E também mostrava, para quem quisesse ver, o relógio de algibeira um patacão de ouro, pateque, redondão e grosso com a bala de carabina, de chumbo, encravada bem no centro:

Parece até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar o pé por debaixo do pescoço... Eu ’tava de bruço’, e ele ia começando a me desvirar, no chão, a ponta de bota...

Na horinha em que o Capitão Eucaristo gritou aquela abençoada ordem!
(Chapadão do Bugre, Capítulo 40, 1965.)

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br/

Juliana Santini e Rejane Cristina Rocha (Os Risos do Brasil: Trilhas do Cômico na Literatura Brasileira do Século XX) Parte II-final


(...) E quando pensava nessas coisas surgiu na estrada o seu compadre Vitorino. Vinha na égua magra, com a cabeça ao tempo, toda raspada. Saltou para uma conversa e estava vestido como um doutor, de fraque cinzento, com uma fita verde e amarela na lapela. O mestre José Amaro olhou espantado para a vestimenta esquisita.

- Estou chegando, compadre, do Itambé. O doutor Eduardo tinha um réu para defender e mandou me chamar no Gameleira para ajudá-lo. Lourenço, o meu primo desembargador, me disse: “Olhe, Vitorino, você para ir à barra do tribunal do júri precisa desse fraque”. E me deu este. É roupa feita lá do Mascarenhas, de Recife. Botei o bicho. Então o primo Raul me chamou para um canto para dizer que eu precisava cortar os cabelos. O desgraçado do barbeiro da Lapa tosquiou-me a cabeleira, o jeito que tive foi de raspar tudo. Raul passou-me a navalha na cabeça. Me disseram que era moda no Recife para advogado. Quando cheguei no Itambé o júri já tinha se acabado
. (REGO, 1997, p.92-3)

A comicidade de Vitorino impregna-se do trágico destino dos outros personagens e, ainda, não deixa de contrastar com a sua própria condição marginal, revelada ao leitor pelo discurso do narrador onisciente que entretece toda a narrativa. Narração entremeada por fios de um discurso indireto livre que, mais do que evidenciar a dissonância entre a realidade em que vive o personagem e aquela criada por ele, sintetiza em um mesmo ponto a decadência inevitável e sua ilusão empreendedora.

Nesse movimento de síntese de opostos, o humor funde contrastes que se mostram no romance e se configuram como tais apenas em sua aparência: entre presente e passado, ilusão e realidade, decadência e progresso, vida e morte. Menos do que instaurar uma crítica que aponta para a reformulação regeneradora ou renovadora - como já se foi possível notar a respeito da paródia e da caricatura que, no princípio do século XX, serviram à literatura como meio de revisão do passado ou como forma de desmistificar imagens ideologicamente cristalizadas da identidade nacional – o humor coloca lado a lado elementos opostos com o intuito de promover uma reflexão - aguda na medida em que se pauta no entre-espaço do contrário - acerca da condição sobre a qual a obra humorista lança seu feixe de luz.

E é justamente na poesia que a paródia encontrará novamente seu lugar na década de 50: poeta afinado à potencialidade cômica do signo poético, José Paulo Paes, em 1952, publica as Novas cartas chilenas, paródia satírica de uma sátira política do século XVII, intitulada Cartas chilenas, cuja autoria se atribui a Tomás Antônio Gonzaga. Revisitando, simultaneamente, as cartas barrocas e a poesia pau-brasil de Oswald de Andrade – o que pode ser percebido pela semelhança na forma de composição da paródia -, José Paulo Paes faz uma incursão pela história do Brasil e destrói cânones por meio do deslizamento de significados. É o que acontece, por exemplo, no poema “L’affaire sardinha”, sátira ao trabalho de catequização dos índios, em que o título já evidencia todo o poder corrosivo da ambigüidade: a idéia de um caso, sugerida pela palavra “affaire”, institui um jogo entre o fato de o poema representar um fato a ser contado / lido, a conotação de escândalo que o vocábulo assume na língua original, o francês, e o significado que a palavra assumiu, ao ser absorvida pela Língua Portuguesa, relacionado a uma conotação sexual, que perpassará todo o poema:

O bispo ensinou o bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente em eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente
. (PAES, 1986, p. 153)

Nos liames da ambigüidade, o poema entretece os significados sexual e religioso por meio de uma distorção que é instaurada por uma característica inerente ao processo de aculturação a que foram submetidos os índios quando catequizados pelas missões jesuíticas: os dois últimos versos da primeira estrofe marcam a tentativa de sobreposição da crença indígena pelo cristianismo, intento de que se verifica o fracasso no desfecho do poema, em que o índio, tomando o suposto representante de Deus como alimento, o teria devorado. Da antropofagia ao ato sexual, a crítica a arbitrariedade do colonizador é trazida à tona justamente no momento em que se valoriza a inteligência do colonizado, supostamente subestimada por aquele que o toma como elemento a ser absorvido. Novamente, a inversão paródica a que se fez menção quando se tratou do livro de poemas de Oswald de Andrade se faz presente na reestruturação semântica do passado: invertem-se os papéis e o colonizador passa ser colonizado por um fazer poético brincalhão, herdeiro das conquistas de seus antecessores.

A mesma dimensão paródica é reiterada pelo poeta em outro poema do mesmo livro, agora alicerçada no diálogo intertextual entre diferentes tipos de discurso: “O grito”, ao mesmo tempo em se que refere ao famoso quadro em que Pedro Américo retrata a grandiosidade da Proclamação da Independência no Brasil, volta-se para o paradigma de representação histórica do fato, de modo que, ao desmistificar a idealização latente no discurso pictórico, engloba a narrativa oficial que supostamente atribui ao acontecimento cores não menos exóticas. O significado paródico constrói-se, portanto, na ambivalência de diversos significados entretecidos, já que (...) “a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando de sentido” (JENNY, 1979, p.14).

Sob esse aspecto, o poema de José Paulo Paes institui uma teia, que se inicia na referência ao fato histórico, passa pela crítica ao relato oficial reiterado sobre o mesmo fato, e desemboca na descrição paródica da representação pictórica feita a partir desse mesmo relato. Atente-se para o fato de que a proposição do poema, que reconta e, portanto reconstrói a história só é possível partindo-se de uma acepção de história como discurso, como construção de linguagem, o que evidencia, a seu respeito, uma visão semiotizada. As Novas cartas chilenas partem de um pressuposto de que a história é uma construção discursiva que pode ser reformulada, remodelada, revista; posicionamento que será levado ao paroxismo pelos escritores dos romances históricos contemporâneos, entre eles Márcio Souza, sobre o qual se refletirá em outro momento deste texto.

Da poesia ao romance, da paródia ao humor: herdeira das inovações de João Guimarães Rosa e antes de assistir à sua decadência nos anos seguintes, a prosa regionalista brasileira vê no romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, uma de suas mais célebres realizações, principalmente no que diz respeito à composição do humor como instrumento capaz de promover uma tomada de consciência em relação ao desconcerto do homem que habitava o sertão e se vê alheio aos movimentos da cidade. A agonia de um mundo em transformação, a marcha do progresso e a suplantação do sistema político-econômico coronelista, arraigado na manutenção do poder, cindem o personagem Ponciano de Azeredo Furtado e o atam a uma esfera já sufocada da sociedade, enquanto não consegue se adaptar aos novos esquadros que se desenham juntamente com a expansão dos grandes centros urbanos.

Tensão entre tempos e espaços que se manifesta também na composição da voz narrativa e na configuração do olhar que se lança sobre os fatos narrados: enquanto narrador autodiegético, Ponciano coloca-se em posição ulterior relativamente ao universo diegético que constrói por meio de sua fala, enquanto o Ponciano-personagem, aquele que viveu a trajetória ora relatada, empresta o seu ponto de vista e, em conseqüência, as restrições que cabem à percepção de um integrante dos acontecimentos. Confluem, portanto, a voz do presente e o olhar do passado em um espaço que é a própria zona de atrito entre o novo que tenta se impor e o velho agonizante.

Voz do passado que traz para a narrativa a maleabilidade da fala popular em episódios protagonizados por figuras típicas do folclore nacional. Desse modo, apropriando-se do imaginário coletivo e trazendo seus contornos como pano de fundo para a invenção de seus feitos individuais, o Coronel cria um universo particular que mascara a decadência crescente em que mergulha ao longo de sua trajetória, declínio que se inicia no momento em que Ponciano deixa o Sobradinho e se muda para Campos dos Goitacazes - cidade em efervescência que representa a própria decadência do sistema coronelista, sobrevivente apenas na imagem de imponência que o neto do velho Simeão insiste em sustentar.

Perdidos o poder e toda a riqueza que simbolizavam sua manutenção, resta a Ponciano tecer uma narrativa em que tenta reacender a chama do passado no presente da narração, embora seja traído pelo olhar do fanfarrão de outrora e pela própria imaginação, que entretece no mesmo fio realidade e devaneio. E se o personagem possui uma concepção do mundo ultrapassada para sua existência (MARCHEZAN, 2002), a própria estrutura narrativa se encarrega de revelar a tensão entre tempos e espaços no cerne de seu impulso de recolher os estilhaços daquilo que se perdeu. Mais do que agenciar a agonia de um mundo, Ponciano é instrumento e produto dessa agonia e, sucumbindo aos novos esquadros que se inauguravam, representa a imagem da fusão impraticável entre presente e passado, rural e urbano, realidade e imaginação.

A obra ficcional Galvez, imperador do Acre (1978) parte de um episódio da história brasileira e toma para si, como personagens, personalidades de relevância histórica, mas o faz a partir de uma dissimulação, já que ficcionaliza a história quando transforma a matéria por ela narrada em uma autobiografia encontrada, por acaso, em um sebo em Paris.

A história oficial relata que em meados de 1899 o jornalista Luiz Galvez Rodrigues de Aria, então funcionário do jornal A Província do Acre, consegue informações e documentos acerca de um tratado prestes a ser firmado entre a Bolívia e os Estados Unidos. Por tal acordo, os Estados Unidos ofereceriam apoio à Bolívia para a conservação da sua soberania nos territórios do Acre, Purus e Iaco. Em troca, a Bolívia comprometia-se a fazer concessões aduaneiras e territoriais aos Estados Unidos. A publicação n’ A província do Acre e, logo depois, n’O Comércio do Amazonas de tal furo jornalístico repercutiu fortemente na então capital da república, Rio de Janeiro, bem como em Manaus e Belém, desdobrando-se na revolução acreana liderada por Luiz Galvez, que por oito meses fez do Acre uma república independente, em resposta à atitude leniente do Brasil diante das investidas bolivianas.

Muitos dos fatos que cercam esse acontecimento não estão bem esclarecidos pela história e as inúmeras perguntas sem respostas sobre esse episódio abrem vasto campo de especulações que, concordam os historiadores, não serão facilmente dirimidas, já que os documentos oficiais, os depoimentos, as notícias veiculadas naquele momento pela imprensa foram, ao que parece, cuidadosamente arranjadas a fim de excluir a figura do governador amazonense dos acontecimentos (TOCANTINS, 1979, passim).

Diante de tantos vazios históricos, de tantos silêncios propositadamente semeados, a ficção de Galvez, imperador do Acre (1978) propõe uma releitura do fato histórico, evidenciando, dessa forma, aspectos que a historiografia julgou, não ingenuamente, irrelevantes para o entendimento dos fatos. Tais aspectos ganham relevância na ficção e fazem com que atos e personalidades sejam vistos de forma desmistificada e deseroicizada, colocando a nu as motivações comezinhas por trás dos grandes feitos documentados pela história. Nesse contexto, a sátira assume o papel de, pela ridicularização, antepor ao fato historiográfico uma nova versão que, embora não tenha pretensões de assumir o lugar da história oficial, abre, a seu respeito, novas possibilidades de leitura.

As relações intertextuais entre ficção e história desvelam, na contemporaneidade, uma nova atitude frente à história. A reverência diante do “científico”, que provocava o distanciamento próprio da atitude respeitosa, é substituído por uma familiaridade que abre espaço para as atitudes parodísticas, apropriativas, suplementares em relação à história. E nesse sentido, o riso ridicularizador cumpre papel fundamental, já que

(...) tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona de contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar e, com isto, prepara-o para uma investigação absolutamente livre. (BAKHTIN, 1988, p.340.)

O aspecto cômico (que se desdobra em sátira, em ironia, em paródia) presente nessa obra não apresentaria dificuldades de interpretação se concordássemos com as leituras que o colocam como instrumento de um contra-discurso elaborado a fim de corrigir uma interpretação da História unilateral, que privilegiava os vencedores, os detentores do poder. Nesse caso, o riso cumpriria o seu papel de ridicularização e, portanto, desmistificação da História oficial, legitimada pelos privilegiados no sentido econômico, social e cultural. O riso demoliria a História a fim de que uma nova versão, mais justa, pudesse ser colocada no lugar.

No entanto, as considerações de Linda Hutcheon (1991) que colocam a metaficção historiográfica como forma de arte da pós-modernidade abrem uma outra via de reflexão, fazendo com que nos defrontemos com um paradoxo: se a metaficção historiográfica é a forma de arte de um momento em que as ilusões perderam-se e os valores multiplicaram-se, como entender a presença constante do riso satírico – marcado pela exigência da adesão – na expressão literária dessa época? O ímpeto moralizador do discurso satírico estaria presente nessas obras, marcadas pelo ceticismo de seu tempo?

Algumas pistas podem nos levar a uma possibilidade de resposta a esses questionamentos: a imagem da espada celta, que se volta contra aquele que a desembainha, empregada por Alfredo Bosi (1997) a respeito da sátira moderna; a instabilidade do humor contemporâneo, a que se refere Alba Romano (2000). Essas considerações críticas apontam para uma configuração particular do riso satírico que, quando empregado em obras literárias que pretendem rever fatos históricos, sugere uma nova forma de ver e contar o passado – diferente, também, da forma de ver e contar o passado do romance histórico paradigmático e do romance histórico de feições utópicas – bem como uma nova forma de ler o discurso satírico.

Chamar à baila o termo contemporânea para adjetivar a literatura produzida nas últimas três décadas no Brasil é colocar, de antemão, uma problemática relacionada à caracterização dessa literatura, não só porque a proximidade temporal entre obra e crítica funciona como uma lente que amplia distorcendo, já que coloca em primeiro plano os detalhes e impede a visão do conjunto, mas também porque a multiplicidade de temas, técnicas e estilos é, paradoxalmente – já que o incaracterístico não poderia, a priori, caracterizar – a marca dessa produção literária recentíssima. Se o caráter distintivo dessa literatura é a multiplicidade de suas facetas – que faz com que seja difícil vislumbrar um traço comum nas diferentes obras, nos diferentes autores – e o hibridismo formal, como assegurar uma caracterização mínima, que não seja a problemática observância exclusiva da cronologia?

Nesse sentido é que o deslindamento das questões sócio-históricas podem oferecer pistas para a compreensão da literatura contemporânea, já que elas não só oferecem temas a serem desenvolvidos ficcionalmente, mas também interferem no modo como o texto literário é construído, na sua organização estética.

A produção ficcional de Rubem Fonseca exemplifica o modo como a literatura contemporânea absorve os questionamentos angustiados de uma sociedade que perdeu de vez a sua inocência, encantada com as conquistas fugazes do capitalismo e alheia à contra-face que esse sistema econômico implantou simultaneamente com as seduções da posse: a violência, o interesse, a vacuidade de valores, a perda da essência humana:

A sociedade de consumo é, a um só tempo, sofisticada e bárbara. Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país de Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a sua fala direta e indiretamente das experiências da burguesia carioca, da Zona Sul, onde, perdida de vez a inocência, os “inocentes do Leblon” continuam atulhando as praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto. (BOSI, 1998, p. 18)

Em Rubem Fonseca expõe-se brutalmente o modo de vida da sociedade urbana imersa nos inúmeros paradoxos do sistema capitalista. Ficcionalmente tal exposição se dá por meio da eleição da ironia como componente estruturador do discurso, e que aqui é entendida como algo mais amplo do que uma figura de linguagem, já que lingüisticamente modela e organiza um modo de olhar o mundo contaminado por oposições indissolúveis. A ironia, em Rubem Fonseca não oferece uma síntese que amenize as contradições humanas provenientes das contradições econômicas e sociais, pelo contrário: ao expô-las com crueza e brutalidade, a ficção desse autor aponta para a perda de unidade do homem, que não se sabe mais indivíduo, imerso que está na sociedade de consumo, que o desumaniza.

No conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro” as oposições articulam-se em vários níveis de significação, compondo uma estrutura abissal que vai das contraposições espaciais aos dilemas mais íntimos do personagem, expostos por um narrador que não os julga, embora os desvende pormenorizadamente. Assim, a primeira oposição espacial - igreja evangélica versus cinema pornô - não é, na verdade, uma oposição, já que o compartilhamento de um mesmo espaço físico pelas duas “instituições” aproxima os significados implícitos sexo e religiosidade. Outra oposição geográfica também é colocada: o centro carioca, com sua horda de velhinhas e doentes, os atuais fiéis do pastor Raimundo, é contraposto à Zona Sul, região financeiramente abastada cujos moradores, ricos, “precisam ainda mais da salvação do que os pobres” (FONSECA, 1992, p. 13). Tal oposição entre a realidade, o centro, e o objeto de desejo do pastor, a Zona Sul, é colocada em termos financeiros, já que entendida, e almejada, como uma promoção profissional.

Embora a promoção profissional do pastor pareça se restringir ao nível individual, ela encontra maior amplitude quando se projeta para o nível institucional, representado pela igreja evangélica. O anseio pela riqueza faz o narrador anunciar de maneira enviesada aquele que seria um dos projetos de futuro do personagem: “Um dos sonhos de Raimundo é ser transferido do centro para a Zona Sul e chegar ao coração dos ricos” (FONSECA, 1992, p.15). O efeito irônico que se projeta da afirmação do narrador pauta-se na distorção semântica que se desenha ao colocar ao lado da palavra “coração”, símbolo universal do que não pode ser reificado, um adjunto adnominal que restringe o campo a ser conquistado pela evangelização de Raimundo: em contraste com a idéia socialmente aceita de que Deus ignora as diferenças entre classes sociais, os projetos do pastor mostram-se afinados ao interesse de uma instituição religiosa que se configura com os mesmos moldes de uma empresa orientada pelo lucro.

3. Conclusão

A trajetória aqui delineada em termos panorâmicos evidencia a estreita relação existente entre a literatura brasileira e as diferentes realizações do cômico literário. Mais do que um feixe de recursos estilísticos que servem à expressão crítica e à construção estética, percebe-se, no encalço dessa antologia, que a comicidade, nos seus mais variados graus e nas suas mais diversas realizações, alinha-se a uma forma particular de ver e representar o mundo, que ultrapassa os períodos históricos e os movimentos literários e relaciona-se com os aspectos mais profundos de nossa constituição cultural.

Ainda assim, é possível interpretar as manifestações da comicidade, presentes nas obras aqui mencionadas, em íntima congruência com os momentos históricos e literários em que foram produzidas, o que torna possível afirmar que o riso é uma das formas de exposição mais profícuas das incongruências a que o homem se vê submetido quando em relação com o seu semelhante, quando imerso no convívio social.

Esboçar um panorama da literatura brasileira do século XX por meio da breve leitura das obras e das manifestações risíveis aqui privilegiadas seria uma temeridade, já que demandaria um aprofundamento não compatível com as dimensões desse texto. Pode-se, contudo, arriscar algumas considerações que tracejem um esquema para novas e posteriores discussões.

Malgrado as diferenças estruturais e de objetivos das diferentes manifestações cômicas – sátira, humor, caricatura, paródia, ironia -, é possível observar, no panorama proposto, um movimento de redução progressiva da distância e da superioridade entre aquele que ri o seu objeto. Em direção ao final do século XX e ao início do século XXI, o riso não mais se constitui como barricada por meio da qual o sujeito que ri protege-se das considerações críticas invariavelmente lançadas contra – e tão somente contra – o alvo do riso. O movimento da expressão cômica na literatura brasileira aponta para o reconhecimento que faz com que, de repente, aquele que ri veja-se envolvido na situação que ensejou o riso e considere-se enovelado com os mesmos fios que entretecem seu alvo.

Nesse movimento de mudança, o riso na literatura brasileira do século XX vai da caricatura do princípio do século, que avultava os traços do caricaturado com o intuito de revelar o que havia de dissonante entre a realidade e a imagem que se criava de um tipo ainda difuso, passa pela paródia revisitadora da história do Brasil na poesia modernista da primeira fase, impregna-se de melancolia e reflexão na poesia da década de 30 e na literatura regionalista de José Lins do Rego e José Cândido de Carvalho, demonstra-se anti-utópico e não mais reformador na sátira contemporânea de Márcio Souza, ironiza a pasteurização cultural da sociedade urbana na contística de Rubem Fonseca e continua a trilhar um caminho afeito à descaracterização da essencialidade humana, mostrando sua face brutal em autores surgidos já no século XXI, tracejando caminhos a serem desbravados pela crítica literária atual.

Fontes:
Enivalda Nunes Freitas e Souza; Eduardo José Tollendal e Luiz Carlos Travaglia (organizadores). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlandia: EDUFU, 2006.
- Imagem = Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, Portugal. janeiro de 2010.

Academia Parananense de Poesia (Programação de Abril)


Fonte:
Presidente da Academia Paranaense de Poesia, Roza de Oliveira

Rede de Escritoras Brasileiras convida…

Senhoras e senhores

As cortinas começam a se abrir
e todos vocês, seus familiares e seus amigos
estão convidados para o nosso

Show de talentos em prosa e verso

Venham para a sessão de autógrafos de nossa antologia
que acontecerá durante a bienal internacional de fortaleza

Dia 12 de abril de 2010 às 19 horas

No Espaço Café Literário
"Galo de Ouro"

Centro de Convenções do Ceará
Av. Washington Soares 141
Convidada: Joyce Cavalcante/organizadora REBRA (Brasil/SP)
Apresentação: Leda Maria Feitosa Souto(Brasil/CE)

http://www.rebra.org/

Patrocínio
SECULT - Secretaria da Cultura - Governo do Estado do Ceará
http://www.secult.ce.gov.br/
-------
Fonte:
REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras)

Projeto cria novas alternativas para fomentar o acesso a leitura

A leitura é um elemento fundamental no processo de aprendizagem, organização e construção do conhecimento. No entanto, no Brasil, os mecanismos para fomento a leitura, ainda são arcaicos e insuficientes para formar cidadãos leitores, especialmente na Rede Pública de Ensino.

A fim de contribuir para eliminar esse gargalo literário, o escritor e produtor cultural, Laé de Souza criou o projeto “Lendo na Escola”, que oferece obras literárias com baixo custo e acessível a todos os bolsos.

O projeto existe há mais de 8 anos e já foi desenvolvido em mais de 400 escolas do país. O trabalho contempla o Ensino Fundamental I e II e ainda o Ensino Médio e pode ser aplicado tanto em escolas públicas, quanto em entidades particulares. Para participar, unidades escolares farão o investimento de RS 4,00 a R$ 5,00 por aluno de escolas públicas e cerca de R$ 12,00 a R$ 15,00 por aluno de escolas particulares.

Execução

Para realização do trabalho, a escola interessada fará a aquisição do material didático, que é composto por: cartilha pedagógica com instruções para dinamizar a leitura em sala de aula; livros paradidáticos; questionários com atividades; folhas pautadas de redação; manual de aplicação do projeto, entre outros itens a depender da série escolar.

A partir da leitura da obra literária escolhida, o professor deverá estimular o aluno a dar novas respostas através de textos elaborados por eles, e ainda desafiar os estudantes a desenvolver reproduções livres como: ilustrações, peças de teatro, entre outras formas de expressões próprias. O projeto “Lendo na Escola”, tem como objetivo estimular a capacidade criativa, crítico e social dos alunos, por meio de discussões dos assuntos propostos nas obras do escritor Laé de Souza.

Conteúdo

Os livros de Laé de Souza apresentam crônicas de fácil assimilação e com linguagem simples e histórias infantis. Com isso, o autor acredita ser mais fácil despertar o interesse dos estudantes pela leitura, uma vez que os temas abordados em suas obras, trazem histórias do cotidiano, aproximando os estudantes de sua própria realidade. “É importante frisar que o ato de ler precisa levar o indivíduo a compreensão do texto lido e não apenas a repetição de informações. Na minha opinião, conteúdos pedagógicos obrigatórios e rebuscados demais, muitas vezes acabam levando o estudante ao desinteresse pela leitura”, avalia Laé de Souza.

Participação

Professores interessados em conhecer o “Lendo na Escola” devem se inscrever no site do projeto para receber amostra do material e folheto explicativo. Após análise do conteúdo, o professor poderá confirmar a participação através de um formulário, e na sequência serão encaminhados os materiais para aplicação do projeto.

Informações: (11) 2743-9491 e 2743-8400

Fonte:
Colaboração de Laé de Souza

Feira do Livro no Mercado Municipal Paulistano (SP)


Das 9h às 17h, freqüentadores do maior mercado paulistano poderão conhecer novidades de nove editoras

O tradicional Mercado Municipal da Cantareira, ligado à Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras, terá novidade para seus cerca de 30 mil freqüentadores diários. Entre 15 e 30 de abril, das 9h às 17h, todos terão à disposição uma feira de livros com algumas das maiores editoras brasileiras.
Com entrada gratuita, o evento contará com a participação de expositores como as editoras Arlf, Brasiliense, Barcarolla, Faarte e Iracema, além da presença da Nova Luz Livraria, Ciranda Cultural, grupo Quilombhoje Literatura e da Publifolha.

As editoras e livrarias apresentarão seus produtos e novidades com preços atrativos para os visitantes do Mercadão, no Salão de Eventos do local.

O evento ainda terá um cantinho para a “contação” de histórias, misturando artes cênicas, música e literatura. Diferentes grupos, como a Biblioteca Belmonte, Cantos & Contos e a contadora de histórias Ana Springer, se apresentarão nos finais de semana, sempre em dois horários, às 10 e às 14 horas.

Programação da contação de histórias
Dia 16 – 10 e 14 horas – Biblioteca Belmonte
Dia 17 – 14 horas – Ana Springer
Dia 23 – 10 e 14 horas – Cantos & Contos
Dia 24 – 10 e 14 horas – Biblioteca Belmonte
Dia 30 – 10 e 14 horas – Cantos & Contos

Feira do Livro no Mercadão
Data e horário: Entre os dias 15 e 30 de abril, das 9 às 17 horas.
Local: Rua da Cantareira, 306 – Salão de Eventos do Mercado Municipal

Letícia Xavier Pereira (Eventos)
Mercado Municipal Paulistano
SMSP/ABAST
Tel.: (11) 3313-2444 ramal 231

Fonte:
Colaboração de Delasnieve Daspet

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Trova 138 - Marcos Medeiros (Natal/RN)

Carlos Guimarães (Trovas: Cantigas que Alguém Espera)


Canto, feliz, para quem
é meu Sol de Primavera
e, em suas mãos, hoje, tem
CANTIGAS QUE ALGUÉM ESPERA.
________________________________________
Ponho nas trovas amigas
um pouco do meu viver,
por isso, chamo-as Cantigas,
CANTIGAS DE BEM-QUERER.

A minha trova imperfeita
somente um destino almejo:
- pra tua boca ser feita,
como foi feito o meu beijo.

A tua mão carinhosa,
quando me vem afagar,
lembra a ternura da rosa
desabrochando ao luar.

Ai amor, que me fugiste
e deixaste tantas mágoas!
Sou, hoje um salgueiro triste
chorando à beira das águas

As coisas simples, pequenas,
bem pode o Amor transformar
- eu dei-te uma casa, apenas,
dela, tu fizeste um Lar!

Ao desespero me entrego.
Choro tanto, tanto, tanto,
que recaio ficar cego:
- olhos desfeitos em pranto.

A mais triste das notícias
tu me dás com tanta graça,
por entre tantas carícias,
que a tristeza vem e passa.

A ternura do meu beijo,
em vão, ocultar procura
este meu louco desejo
de beijar-te sem ternura.

A tua mão, que transforma
pesares meus em ventura,
é uma flor de estranha forma,
toda feita de ternura.

A Estrela d'Alva perdida
no céu, em plena alvorada,
é uma lágrima vertida
dos olhos da madrugada.

As roseiras tão vaidosas,
quando me vens visitar,
deitam pétalas de rosas
nas pedras que vais pisar.

A prece que tu fizeste,
mão unida à minha mão,
se não foi ao Pai Celeste,
entrou no meu coração.

As velas pandas ao vento...
Doidas gaivotas pelo ar...
Você no meu pensamento
E, entre nós dois, esse Mar...

A tua boca perfeita,
que tem do pecado a cor,
parece, amor, que foi feita
para os meus beijos de amor

Beijo teu beijo na rede,
com repassada ternura,
como quem mata a sede
numa fonte de água pura.

Contra a tua ingratidão,
transbordando indiferença,
meu remédio é a solidão,
meu refúgio é minha crença.

Cantando canções antigas,
a serenata me encanta
porque repete as cantigas,
que a minha saudade canta

Chora, amor, que o pranto encerra
lenitivo à alma ferida:
depois da chuva é que a terra
se apresenta mais florida

Deus que te deu tanta graça,
que te fez linda e faceira,
espero, amor, que te faça
minha eterna companheira

Devo tudo quanto sou
e a Vida me concedeu,
à mãe que Deus me levou
e à mulher que Ele me deu.

Desfaz-se a flor, mas, no galho,
deixa em pétala singela,
uma lágrima de orvalho,
que a noite chorou por ela.

Deixei-te, amor, e não sei
como aquilo aconteceu,
pois nunca mais encontrei
outro beijo igual ao teu

Devo a essa boca vermelha
ser o escravo que, hoje, sou:
foi o teu beijo a centelha,
que o meu peito incendiou!

Eu sou feliz - bem ou mal -
crendo nas tuas promessas,
porque a Esperança, afinal,
é um saudade às avessas.

Ela se vai eu aceito
o adeus com tranqüilidade
e o céu da distância enfeito
com estrelas de saudade

Essas tuas mãos morenas,
com que meu rosto acarinhas,
parecem feitas das penas
das asas das andorinhas.

Entre apagadas imagens,
fulguras como um clarão,
neste asilo de miragens,
que é, hoje, meu coração.

E esta lágrima contida,
medrosamente a brilhar,
é igual à conta perdida
de todo um grande colar...

Esta aflição que me invade
e esta dor que me consome,
não creio sejam saudade:
- devem ter um outro nome.

Esse teu beijo molhado
traz-me à idéia imagem louca:
- vinho rubro do pecado,
na taça da tua boca.

Enquanto a Lua comanda
as serenatas na Terra,
estrelas fazem ciranda
juntinho à crista da serra.

Entra as rosas mais formosas,
a razão dos meus enleios,
são as rosas perfumosas,
com que ornamentas teus seios.

Gemem, na praia, os coqueiros,
refletindo o soluçar
das noivas dos marinheiros,
que se perderam no Mar.

Já não me queres, porém,
é tranqüilo que eu te digo:
- tu não me impedes, meu bem,
que eu sonhe, sempre, contigo.

Lavadeira, o que insinuas,
um desejo em mim acorda:
ver minhas roupas e as tuas,
juntinhas, na mesma corda.

Lembro o beijo terno e amante,
que te dei quando menino:
espaço de um breve instante,
que mudou todo um destino.

Linda música de fato,
ouvida em noite de Lua,
é a que faz o teu sapato,
nas pedras de minha rua.

Maria, que é meu tesouro
e ee julga muito pobre,
não sabe que valem ouro
seus cabelos cor de cobre.

Minhas mãos formam dois ninhos
sempre de ternura cheios,
onde abrigo dois pombinhos,
dóceis e lindos: teus seios,

Meu lenço, na despedida,
tu não viste em movimento:
- Lenço molhado, querida,
não pode agitar-se ao vento.

Marcado por mil ausências,
que a distância evidencia,
meu pranto põe reticências,
em nossa história, Maria.

Mudou nosso lar depois
do triste adeus, que ela deu:
- um Paraíso de dois
tornou-se Inferno só meu

Meio tonto de desejo,
beijo teu beijo risonho
e, através desse teu beijo,
chego à fronteira do sonho...

No momento em que o
sol posto separa a noite do dia,
sinto roçarem meu rosto
as asas da nostalgia.

Na carta, ao dizer-te quanto
a saudade me consome,
as reticências do pranto
quase apagaram meu nome.

Não é desdém, malquerença,
antipatia ou rancor.
Essa tua indiferença
tem um nome: desamor

Nesta vida amargurada,
que eu vejo esvair-se aos poucos,
tu foste a chama migrada,
no altar dos meus sonhos loucos!

Numa carta alviçareira,
dizes que voltas e, então,
mais rosas veste a roseira,
mais sonoro é o carrilhão,

Não posso impedir que um beijo
lascivo, em meus lábios brote,
quando teu seio, entrevejo,
na janela do decote.

Na Rósea Estrada do Amor,
que, junto de ti, eu trilho,
rendo graças ao favor
de seres mãe do meu filho.

Nas noites de serenata
quantas cancões tenho escrito
usando as letras de prata
do livro azul do Infinito,

Na ausência do teu carinho
torturado de desejos,
rolo em meu leito, sozinho,
beijando meus próprios beijos.

Na festa do teu regresso,
desculpa o que eu te disser
e perdoa todo o excesso
dos carinhos que eu te der

Nessas minhas confidências,
repetidas, sempre iguais,
falam mais as reticências,
que as frases convencionais

Olhos presos à amazona,
velho palhaço risonho
faz, sob o teto de lona,
os seus castelos de sonho.

O sol, pelas madrugadas,
se as estrelas vão-se embora,
acende as velas doiradas
do candelabro da aurora,

O destino, em sua teia,
enredou-nos por maldade:
eu - pequeno grão de areia;
tu - cristal de qualidade

Ouço na alma a ressonância
da frase simples, sem brilho,
ouvida lá na distância:
- Que Deus te abençoe, meu filho!

O que me faz indeciso
- indecisão que eu não venço -
é pensar que teu sorriso
não quer dizer o que eu penso.

Os teus seios, provocando
o meu olhar atrevido,
são dois pássaros bicando
as rendas do teu vestido.

O Tempo ao Amor não mata
é, disso prova fiel,
as nossas Bodas de Prata,
em plena Lua de Mel...

Passaste... E eu recordo ainda
o pouco que me ficou:
Foste a promessa mais linda
com que a vida me enganou...

Por te querer me torturo,
sem saber, em minha dor,
que mistérios o futuro
reservou ao nosso amor!

Porque te foste, a revolta
não me deixa por um triz,
mas a crença em tua volta
quase me faz ser feliz.

Pobre amor que as nossas vidas
reduziu a quase nada:
- somos as brasas dormidas
de uma fogueira apagada...

Partiste, mas, sem desgosto,
lembro a nossa história louca,
pois, na boca, tenho o gosto
do gosto da tua boca.

Preso às garras da saudade,
quase feliz, eu bendigo
ter ainda a liberdade
de sonhar sempre contigo...

Pelo milagre do amor,
é que a mulher nos conduz,
transformando o espinho em flor,
fazendo, das trevas, luz.

Passam-se as horas felizes,
numa disparada louca,
quando as frases que tu dizes
são ditas na minha boca.

Passos leves sobre alfombra,
de roxa mágoa vestida,
a saudade é igual à sombra,
que acompanha a despedida...

Quando me deito e acontece,
que o sono logo não vem,
converso com Deus em prece,
rezo em trovas ao meu bem.

Quando a mulher seu amor
transforma em doida paixão,
ganha as asas de um condor
ou rasteja pelo chão,

Quando contigo velejo,
que prazer, ao te beijar,
sentir no teu doce beijo,
gosto salgado do Mar.

Quando aos teus beijos me entrego,
é tanta a minha alegria,
que eu me sinto como um cego,
que enxergasse a luz do dia.

Reacendendo meus desejos,
lembro saudoso, Maria,
da camisola de beijos,
que no teu corpo eu tecia.

Regresso e, de peito aberto,
dás-me perdão às mancheias:
- quem anda no rumo certo
entende as culpas alheias

Rendeiras, de toda a parte,
tecelãs de fina teia,
vinde à praia ver com que arte
o mar faz rendas na areia.

Saudoso de ti, tristonho,
procuro o sono com ânsia
porque, nas asas do sonho,
torno menor a distância.

Sem teu beijo, teu abraço
e o calor do teu carinho,
vou, de fracasso em fracasso,
morrendo devagarinho.

Se para a igreja ela passa,
penso pedir-lhe um favor:
- Maria, cheia de graça,
rogai por mim, pecador.

Tu me deixaste e eu, tristonho,
lamento o amor fracassado:
- cortaste as asas de um sonho
tanto tempo acalentado

Toda essa dor que me invade
e, constante, me angustia,
se não chega a ser saudade
é bem mais que nostaIgia...

Teu rosto vincado, triste,
é simples confirmação
de que o remorso persiste,
mesmo depois do perdão.

Teu amor, brasa dormida,
que o tempo apagada fez,
a um leve sopro, incendida,
pode brilhar outra vez...

Tentei o amor e os fracassos
se acumularam, meu bem:
- quem teve você nos braços
já não pode amar ninguém.

Tudo acabou... Não mais juntos,
seguimos rumo, diversos...
E eu te agradeço os assuntos,
que deste para os meus versos.

Tece a vida, a vida inteira,
a minha sina vadia,
mas, na trama, trapaceira,
põe fios de nostalgia!...

Taça cheia de doçura,
tua boca apetecida
faz milagres de ternura,
nos beijos de despedida...

Triste vida é minha vida,
pois, na vida, não consigo
a coisa melhor da vida:
- viver a vida contigo...

Teu beijo, doce acalanto
à noite, me embala, amor...
De manhãzinha, entretanto,
ele é meu despertador...

Tendo os olhos rasos d'água,
imploraste o meu perdão,
com tanta graça, que a mágoa
fugiu do meu coração.

Tuas mãos, flores morenas,
que eu colhi nos meus caminhos,
junto à maciez das penas
trazem ternura dos ninhos.

Tanta beleza e tal graça
valorizam teu amor,
pois que quanto mais linda a taça,
melhor do vinho o sabor...

Tantas vezes foi relida,
do meu triste pranto em meio,
que a carta de despedida
já não tem letras e eu leio...

Um violão preso à parede...
Canto alegre de um riacho...
Um doce embalo de rede...
Quatro chinelos debaixo...

Um grande amor permanece
dentro em nós, a vida inteira:
É igual à cinza que aquece,
depois de extinta a fogueira...

Vivo preso ao desencanto
que esse teu amor me traz:
teus olhos prometem tanto
e é tão pouco o que me dás...

Vestindo roupas de bruma,
envolta em seu negro véu,
a madrugada, uma a uma,
apaga estrelas no céu...

Vais ser mãe... Tua figura
perdeu a graça infinita...
Mas, revelas tal ventura,
que pareces mais bonita...

Voltaste! E, em meio à alegria,
nós nem contamos as horas,
que o carrilhão anuncia
pingando gotas sonoras!...
----

Fonte:
União Brasileira dos Trovadores Juiz de Fora

Carlos Drummond de Andrade (No Ônibus)


A senhora subiu, Deus sabe como, em companhia de dois garotos. Cada garoto com sua merendeira e sua pasta de livros e cadernos indispensáveis para a aquisição das preliminares da sabedoria. (Quando chegarem ao ensino médio, terão de carregar uma papelaria e uma biblioteca?) O ônibus não cabia mais ninguém. A bem dizer, não cabia nem o pessoal que se espremia lá dentro em estado de sardinha. Na massa compacta de gente, ou de seções de gente que a vista alcançava, percebi aquelas mãozinhas tentando segurar as pastas atochadas.

- Deixa que eu carrego - falei na direção de um dos braços a meu alcance. Na qualidade de passageiro sentado, é irresistível minha inclinação para carregar embrulhos alheios. Estou sempre a oferecer préstimos, movido talvez pelo remorso de viajar sentado, e de só ceder lugar a pessoas mais idosas do que eu - pessoas que raramente aparecem no ônibus, de sorte que...

- Eu carrego pra vocês - insisti, executando um movimento complicado, para enxergar os rostos dos garotos. O menor olhou-me com surpresa e hesitação, porém o mais velho estendeu o braço, e o primeiro, depois de uma cotovelada ministrada pelo segundo, imitou-o. Fiquei de posse de duas bojudas pastas escolares, que acomodei da melhor maneira possível sobre os joelhos. Conheço perfeitamente a técnica de carregar embrulhos dos outros. Deve-se colocá-los de tal modo que fiquem seguros sem que seja necessário pôr a mão em cima deles. São coisas sagradas. Não devemos absolutamente lançar-lhes um olhar, mesmo distraído. O perfeito carregador de embrulhos do próximo deve olhar para fora do ônibus, aparentemente observando um eclipse ou uma regata, porém na realidade com o pensamento fixo naquele pacote, ou bolsa, de que é depositário.

Não vá a coisa cair no chão e quebrar. Não vá alguém subtraí-la. Quando até a Santa Casa é assaltada, tudo é possível. Mas que conterá mesmo esse embrulho? Seria feio manifestar curiosidade, e perigoso abrir um volume que não nos pertence. Mas que gostaríamos de saber o que tem lá dentro, isto, humildemente o confesso, em meu nome e no do leitor, é pura, descarnada verdade.

Bom, tratando-se de pastas escolares, não havia segredo a descobrir. A voz da senhora saiu daquele bolo humano:

- Agradece ao moço, Serginho. Agradece, Raul.

Raul (o mais crescido) obedeceu, mas Serginho manteve-se reservado.

Mal se passaram alguns minutos, senti que a pasta de cima escorregava mansamente do meu colo. Muito de leve, a mão esquerda de Serginho, escondida sob um lenço, puxava-a para fora. Compreendi que ele prezava acima de tudo a sua pasta, e deixei que a tirasse. A mãe ralhou:

- Que é isto, Serginho?! Deixe a pasta com o moço.

Serginho duro.

- Serginho, estou lhe dizendo que deixe a pasta com o moço.

Teve de levantar a voz, para torná-la enérgica. Passageiros em redor começaram a sorrir.

Tive de sorrir também.

Muito a contragosto, Serginho voltou a confiar-me sua querida pasta. Um estranho mereceria carregá-la? E se fugisse com ela? Visivelmente, Serginho suspeitava de minha honorabilidade, e os circunstantes se deliciavam com a suspeita.

Mais alguns quarteirões, Serginho repete a manobra. Desta vez é radical. Toma sua pasta e a de Raul. Raul protesta:

- Deixa com ele, seu burro. Não vê que eu não posso segurar nada?

A mãe, em apoio de Raul, exproba o procedimento de Serginho. Este capitula, mas em termos. Só me restitui a pasta do irmão. A sua não correrá o risco. Coloca-a sobre o peito, sob as mãos cruzadas, como levaria o Santo Gral.

- Este menino é impossível. Desculpe, cavalheiro. Não vejo o rosto da senhora, mas sua voz é doce, e compensa-me da desconfiança do Serginho. Sorrio para este, enquanto retribuo: "Oh, minha senhora, por favor. Até que seu filhinho é engraçado."

Engraçado? Serginho faz-me uma careta e ferra-me um beliscão. A assistência ri. A mãe ferra outro em Serginho, que dispara a chorar. Bonito. É no que dá carregar embrulho dos outros.

Entre as diferentes maneiras de chorar em público, Serginho escolheu a que rende maior dividendo.

Botou a boca no mundo, como se cantasse na Ópera, e, nos intervalos, denunciou-me. Eu é que o tinha beliscado, quando tentara impedir-me de violar a pasta de seu irmão Raul. E mostrava a pasta entreaberta, em desordem. A senhora mudou de fisionomia, censurando-me com voz alterada:

- Francamente, cavalheiro! Nunca pensei que o senhor tivesse tamanha coragem!

- Perdão, minha senhora, eu...

- Perdão coisa nenhuma. É inútil explicar. Meu filho tinha razão de não querer deixar as pastas com o senhor. Vir com partes de gentileza para segurar as pastas das crianças, e depois vasculhar o que tem lá dentro! Um senhor de barbas brancas fazer uma coisa dessas!...

Os passageiros em redor acompanhavam com o máximo interesse o desenvolvimento da cena. No olhar de todos, a maligna curiosidade, o prazer de ver o próximo em situação grotesca acendia um lume especial. Não precisei encará-los para observar a reação. Senti que estavam de olhos acesos, saboreando a desmoralização do senhor respeitável.

- Minha senhora - retruquei -, o seu garoto é um imaginativo, simplesmente.

- Mentiroso? O senhor tem o atrevimento de chamar meu filhinho de mentiroso?!

- Imaginativo, minha senhora. Eu disse i-ma-gi-na-ti-vo.

- É a mesma coisa. Imaginativo é mentiroso com água-de-colônia. Fique sabendo que eu educo meus filhos no jogo da verdade.

- Não duvido. Pergunte ao Raul, que viu tudo. Confio no Raul.

- Que Raul? Que intimidade é essa com meu filho mais velho? Desde quando o senhor está autorizado a tratá-lo de Raul?

- Ouvi a senhora chamá-lo por esse nome.

- Eu posso chamá-lo assim, mas um estranho tem lá esse direito? Raul, meu bem, você viu esse senhor abrir sua pasta e dar um beliscão nó Serginho?

Raul, moita.

- Diz, meu coração, o homem abriu sua pasta, não foi? Depois deu um beliscão no Serginho, não deu?

- Perdão - arrisquei -, a senhora está forçando a resposta de seu filho.

- O filho é meu, não tenho que lhe dar satisfação. O senhor é que está perturbando o interrogatório. Anda, Raul, diz logo o que você viu, menino!

Nada de Raul abrir a boca. Apelei para ele:

- Escute aqui. Você disse a seu irmão que devia deixar a pasta comigo. Depois disso, você viu, você percebeu qualquer gesto de minha parte, tentando abrir a pasta? Não tenha medo de falar.

Raul respondeu, firme:

- Vi, sim senhor. Vi também a hora que o senhor beliscou meu irmão.

- Não é possível!

Raul não disse mais nada. Nem precisava. Eu estava condenado no tribunal das consciências. Envolveu-me a reprovação geral, expressa em murmúrio que soava a meus ouvidos como um brado coletivo: "Crucificai-o!" Todo o ônibus contra mim, como demonstrar minha inocência?

Foi quando apareceu o defensor público. Por mais que se descreia da generosidade das multidões, de dez em dez anos surge um defensor público em socorro dos oprimidos. Era um homem robusto, sangüíneo, de voz forte:

- Calma, senhores e senhoras. Não podemos condenar este passageiro pela simples declaração de duas crianças. Temos de proceder a uma averiguação, temos de ouvir os adultos presentes.

- O senhor também duvida da palavra de meus filhos?! - protestou a mãe ofendida. - Não faltava mais nada. E que é que o senhor tem com isso?

- A senhora tenha a bondade de calar-se, senão vai tudo para o Distrito.

- O senhor é autoridade para nos prender?

- Sou a voz do povo, madame. Não posso ficar calado quando os direitos do cidadão sofrem uma ameaça.

- Comunista é que o senhor é. Subversivo! Motorista, pára esse ônibus que tem um subversivo dentro!

- Pára! - gritaram uns.

- Não pára! - gritaram outros.

- A senhora está muito enganada. Pensa que intimida, me chamando de subversivo? Sou democrata-cristão e estou ao lado da justiça. Senhores e senhoras, alguém viu esse cavalheiro bulir na pasta do garoto e dar o beliscão?

Ninguém respondeu. Todos falavam ao mesmo tempo e o ônibus voava. A senhora explodiu:

- Covardes! Ninguém para defender uma mulher com seus dois filhos inocentes!

Aí, manifestou-se o defensor de mulheres e filhos inocentes, outra raridade cíclica, interpelando o defensor público. Este respondeu à altura. A coisa engrossou. O sinal fechou.

O ônibus estacou. Não sei como, abriu-se a porta dos fundos e, também não sei como, aproveitando a confusão, fugi. Da rua, ainda ouvi a senhora indignada:

- Pega! Pega! Ladrão de pasta!

Carregar embrulho dos outros, eu, hem? Nunca mais.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Criança d’agora é fogo. Editora Record. 5a. edição. Rio de Janeiro - São Paulo, 1999.