quinta-feira, 8 de abril de 2010

Juliana Santini e Rejane Cristina Rocha (Os Risos do Brasil: Trilhas do Cômico na Literatura Brasileira do Século XX) Parte I de II


RESUMO: A literatura brasileira do século XX teve muitas de suas páginas esboçadas pelos traços do cômico que, em suas várias feições e recursos, mostra-se como um dos instrumentos mais eficazes à revisão de valores e desmistificação de cânones historicamente construídos. Traçar um panorama do conjunto criado por essa produção – partindo dos anos que antecedem o modernismo até a pungência do riso contemporâneo – significa não apenas expandir o olhar que se lança sobre essa literatura, tomando como fio condutor a comicidade entrelaçada a tais obras, mas também associar a uma visão diacrônica da história literária brasileira uma perspectiva que permite reinterpretar seus significados.

1. Introdução

Malgrado a posição marginal a que muitas vezes é relegada a produção literária de feições cômicas, é inegável a posição do riso como um dos elementos particularizadores de uma cultura, tecendo um estreito diálogo com o contexto em que se realiza, o que lhe confere um caráter essencialmente histórico. Na cultura brasileira, vislumbram-se claramente os traços de uma tradição constituída a partir do viés cômico, como testemunham as sátiras de Gregório de Matos e Tomás Antônio Gonzaga. Além de autores e obras que fundamentam esta tradição do risível no interior do cânone literário brasileiro, outros escritores não ignoraram os recursos da comicidade na composição de personagens e situações mesmo quando o risível não se manifesta no primeiro plano do texto literário, como se pode notar, por exemplo, na ironia machadiana, na feição caricaturesca de personagens de Aluísio Azevedo ou, na paródia bíblica de Guimarães Rosa.

Essa fecundidade do riso no interior dos mais diversas realizações literárias brasileiras liga-se menos a uma perspectiva ingênua de mero divertimento ou distensão de ânimos do que a um progressivo trabalho de revisão dos valores e estereótipos que se sustentaram em diferentes contextos sócio-políticos. Sob esse aspecto, o cômico mostra-se como excelente instrumento de crítica justamente por promover o deslizamento de significados instituídos por um modelo de discurso sério tomado como canônico – e validado socialmente por representar a voz destituída da loucura e da inconseqüência comumente associadas àqueles que se valem das cores fortes do riso para colocar em evidência tonalidades que forjam uma falsa harmonia.

Partindo dessas considerações, esse trabalho faz um panorama das diferentes formas de realização do cômico ao longo da literatura brasileira no século XX, considerando nuances de composição e transformações formais em sua estreita relação com diferenças estéticas e contextuais inerentes ao curso da história literária brasileira. É necessário que se esclareça que, embora alguns aspectos da comicidade sejam identificados a determinadas décadas ou períodos de tempo específicos, isso não significa que a produção literária deste momento restrinja-se apenas a este aspecto, ou seja, as observações aqui tecidas consideram preponderâncias mas não ignoram diversidades.

2. Caminhos do cômico: de Jeca Tatu ao riso da desesperança

Os últimos anos do século XIX e aqueles que iniciaram o século XX assistiram à composição de uma prosa literária apregoada ao estilo romântico, comprometida com um paradigma de representação corolário do exotismo e do artificialismo que fizeram da literatura do período um modo de reprodução da realidade afetado pelo idealismo acadêmico, impregnado pela influência art nouveau. Nesse contexto, a literatura regionalista encontra no conto sertanejo matéria e instrumento para que se concretize uma espécie de imagem pictórica adornada do habitante das zonas rurais do país, retrato distorcido que, (...) “a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas” (CANDIDO, 1967, p.134).

Essa imagem adornada e mistificada do roceiro domina a cena literária, esboçando-se com outras faces apenas nas páginas de poucos autores, como é o caso de João Simões Lopes Neto, que faz do relato nostálgico do gaúcho um instrumento de revelação da condição marginal a que foi relegado o homem do campo, principalmente a partir das transformações que se iniciaram desde a Proclamação da República e abolição dos escravos e se intensificaram com a industrialização, o êxodo rural e o conseqüente inchaço daqueles que começam a se configurar como centros urbanos de atração econômica.

Mas será Monteiro Lobato o principal responsável pela reconfiguração definitiva desses traços: em 1914, a publicação dos artigos “Velha praga” e “Urupês” no jornal O Estado de São Paulo traz à tona um caipira preguiçoso, decrépito e indolente, despido de toda aura idealizada que o tracejava como forte e íntegro, ícone do equilíbrio entre o homem e a natureza. Embora seja o produto da visão do fazendeiro de café que tomava o caipira como um entrave ao desenvolvimento, o Jeca Tatu não deixa de lançar um feixe de luz sobre a situação de miséria e abandono do sertanejo brasileiro que, desde então, perde suas tonalidades românticas e passa a ser desenhado pela literatura em feições menos distorcidas, traços que, guardadas as devidas proporções, antecipam o regionalismo engajado da década de 30 do modernismo brasileiro.

A síntese imagética da caricatura - que se aproveita de poucos atributos e, por meio de comparações exagera a imagem caricaturada com a finalidade de pôr à mostra os defeitos daquilo que lhe serve de alvo – faz de Jeca Tatu uma imagem símbolo estruturada a partir das idéias de parasitismo e preguiça. Já no início do primeiro artigo, “Velha praga”, Lobato define a mulher do caipira como “sarcopta fêmea”, espécie de parasita causador da sarna, de modo que a natureza predatória do aracnídeo passa a ser associada ao caboclo na medida em que ilustra sua relação com o espaço em que habita, de onde retira sua subsistência até que seja descartado depois de esgotados todos os recursos:

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra absorve os frágeis materiais de choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha. (LOBATO, 1959, p.273).

O atributo do comportamento de um predador é reiterado e reafirmado por Lobato em “Urupês”, palavra que intitula não apenas o segundo artigo escrito pelo autor a respeito do caipira, mas também o livro de contos a ser publicado em 1918, onde foram incluídos os dois textos em questão. Definido o sertanejo como um “urupê”, espécie de fungo que retira todos os nutrientes da árvore em que se aloja, o autor passa a esboçar toda a preguiça do caipira, que se acocora diante das dificuldades e, para não reforçar as paredes de sua habitação paupérrima, prefere escorá-las com uma imagem de Nossa Senhora, para que o poder da santa proteja a habitação.

Se a visão determinista e higienista de Monteiro Lobato não fez justiça ao caipira por ignorar as causas de sua situação marginal – o que o levou a se desculpar posteriormente – é necessário que se atente para a aguda percepção do hiato criado entre a imagem literária idealizada do caboclo e a realidade em que este estava inserido: “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” (LOBATO, 1959, p.281). E é justamente a revelação dessa disparidade que fez com que a imagem de Jeca Tatu promovesse uma espécie de renovação do paradigma de representação do caipira na literatura brasileira, já que (...) “a caricatura é máscara que desmascara, enfatizando a dissolução de unidade ou a disjunção no caricaturado (entre aparência e essência, entre forma e conteúdo, entre simulação e realidade)” (LEITE, 1996, p.20).

Enquanto essa reformulação do olhar a ser lançado sobre a imagem do sertanejo serviu-se da caricatura como forma de desmistificação de um modelo desgastado – trabalho caro aos autores pré-modernistas –, a proposta modernista de atualização da linguagem artística e as inclinações política e ideológica decorrentes desse exercício de renovação das artes apontavam para a necessidade de promover uma revisão de cânones e discursos reiterados por uma literatura presa aos moldes europeus. A partir dessa perspectiva, a proficuidade encontrada pelo cômico nos primeiros anos do Modernismo desdobra-se não apenas na intenção de remodelação estética promovida pelos autores que levaram a cabo o projeto de reestruturação artística das formas supostamente estagnadas pela rigidez que se mantinha na permanência do idealismo romântico, mas também no anseio de revisar o paradigma de representação da nacionalidade, ainda corolário das interpretações naturalistas e cientificistas do segundo quartel do século XIX.

A publicação, em 1925, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, representa a continuidade ou, mais do isso, a realização palpável do conteúdo programático que fundou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Se, no texto de 1924, o substantivo composto “pau-brasil” fora adjetivado e emprestava toda a sua amplitude de significados à poesia – e, de maneira mais ampla, à estética – que se desenhava no manifesto, aqui, recebe de volta a classificação morfológica original e coloca-se como um rótulo sobre o livro, como se dissesse ao leitor: “isto é pau-brasil”. E sendo metáfora da imagem primeva do Brasil, o primeiro produto de exportação das terras encontradas além mar, a poesia contida no livro transfigura-se, como se propunha no manifesto, no produto interno mais primitivo e representativo do conteúdo nacional, seja em termos estéticos, seja na releitura do passado nacional.

Reinterpretação que já se mostra com toda a sua força na dedicatória do livro: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”. No momento da publicação do texto, esta expressão carregava-se de diversos significados e poderia se referir tanto à viagem realizada pelos modernistas ao interior de Minas Gerais, ocasião em que se permitiu aos brasileiros e ao viajante Blaise Cendrars um novo conhecimento sobre o país, quanto à permanência de Oswald na França, junto ao mesmo Cendrars, que teria despertado no autor de Memórias sentimentais de João Miramar o interesse em “ver com olhos livres” uma realidade já vestida com uma interpretação determinada por diferentes orientações ideológicas, de modo a incutir-lhe um novo sentido.

E é justamente sob esse novo olhar que se coloca mais um significado para a referida dedicatória, este sim mais amplo e intimamente ligado ao projeto “pau-brasil”: a “descoberta do Brasil” a que se refere Oswald projeta-se, assim, para o conteúdo histórico que ordena as nove seções do livro. Trata-se, de fato, de um percurso histórico-geográfico que contempla, sob o prisma da paródia, desde os cronistas que escreveram sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, até a então efervescente cidade de São Paulo, em seus movimentos agitados do princípio do século XX. Sob esse aspecto, a incursão pelo passado nacional acaba por se mostrar multifacetada na medida em que se articula não apenas com a visão do presente em relação ao que se fora, mas também com a construção desse passado a partir de uma estética fundamentada em novos traços.

Nesse ponto, tradição e ruptura aproximam-se pela primeira vez na síntese dos elementos aparentemente díspares que compõem o livro de 1925: entre a realização de recursos poéticos estritamente ligados ao movimento vanguardista de renovação das artes e uma temática que contempla o antigo sem deixar de explicitar o anseio pelo novo, a poesia de Oswald coloca-se como o vértice de um emaranhado temporal em que sincronia e diacronia se entretecem na composição de um novo momento. Sob esse aspecto, a paródia promove uma espécie de entrelaçamento de significados, desmistificando um discurso ideologicamente cristalizado ao mesmo tempo em que lhe confere novas tonalidades: “Ora, o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica” (SANT´ANNA, 1999, p.31).

A primeira seção das nove que estruturam o Pau-Brasil de Oswald intitula-se, não por acaso, “História do Brasil”. Em diálogo com a dedicatória da obra – a que já se fez referência – a proposta de narrar o percurso histórico do país mostra-se como uma forma de re-descoberta, irônica e paródica na medida em que instaura um novo ponto de vista, capaz de promover uma importante inversão de perspectivas: por meio da subversão inerente à paródia, a poesia pau-brasil colocaria o colonizado na posição de colonizador, de modo que aquele que fora descoberto, agora, desvende e traga à tona o que o processo de colonização, ao contrário, fez questão de esconder.

Nesse jogo de revelação e ocultamento, os oito cronistas parodiados por Oswald aparecem retratados em seus textos mais característicos, entretecendo-se uma teia em que o fio principal conduz a uma sucessão cronológica que se inicia na descoberta do Brasil, em 1500, e se estende até os liames do processo de independência, três séculos mais tarde. O primeiro texto parodiado é, portanto, a carta de Pero Vaz de Caminha que, como se sabe, comunica ao rei português o descobrimento das terras brasileiras. Com uma estrutura que contém certa inclinação narrativa, os quatro poemas organizados sob o título “Pero Vaz Caminha” – já sugestivo ao ocultar a preposição “de” que fazia parte do nome do autor da primeira carta informativa sobre o Brasil e, em conseqüência, trazer à tona, por meio do verbo “caminhar”, a idéia de um panorama traçado por alguém que faz uma visita de reconhecimento das terras – vão do momento da descoberta, narrado no primeiro poema, à descrição das riquezas femininas das novas terras:

“as meninas da gare”
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E sua vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha (ANDRADE, 1966, p.72)

A transposição de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha para um novo contexto, o do princípio do século XX, evidenciado pelo contraste que se estabelece entre o português arcaico do poema e a colocação de um título ligado ao momento da escritura do poema, traz à tona, em primeiro lugar, a idéia da exploração sexual que se teria instaurado desde o momento em que se iniciou a colonização e se mantinha atuante e revigorada ao longo dos séculos – como bem explicita a professora Vera Lúcia de Oliveira (2002). E já que “o poder do não dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia” (HUTCHEON, 2000, p.91), a transposição paródica da carta de Pero Vaz reveste-se de um refinado tom de ironia ao evidenciar um certo discurso de exploração sexual e malícia escondido sob a aparente ingenuidade do olhar estrangeiro.

Do caminhar de Pero Vaz ao regresso a São Paulo do poema “Canto de regresso à pátria”, (ANDRADE, 1966), uma trajetória de re-semantização da nacionalidade instaura-se jocosamente nos liames que se entretecem entre a seriedade estilhaçada de cada texto parodiado e a comicidade que brota da inversão paródica. Se os palmares que substituem as palmeiras românticas trazem à tona toda a crueldade da escravização dos negros que fundamentou o desenvolvimento da nação brasileira e foi obscurecida pela idealização de um passado representado como exótico e harmônico, “o progresso de São Paulo” institui o pólo do presente como um ícone da modernidade dos novos tempos a que tenta se afinar a poesia pau-brasil. A paródia que ata dois tempos em uma única matéria serve de instrumento aos modernistas da primeira fase justamente por estar em consonância com um percurso coeso em que se busca a reformulação do paradigma histórico de representação do Brasil, cujas novas diretrizes seriam orientadas pela desmistificação do discurso dominante que, supostamente, teria ficcionalizado a história em favor da idealização épica do passado. Nesse ponto, a descoberta do passado se colocaria como a manifestação original de uma poesia capaz de congregar novas diretrizes estéticas ao pitoresco local.

No impulso de revisão crítica do passado, a poesia pau-brasil encontra a paródia como forma de desconstrução irônica da história tradicional. Malgrado esse caráter destrutivo, identificado, portanto, à idéia de ruptura, a paródia não anula a tradição, pelo contrário, atua como instrumento de reativação desse mesmo passado, de modo a atribuir-lhe uma nova roupagem, agora proposta pela visão primitivista do princípio do século, que promove uma nova contextualização de seu substrato.

Instituída a reformulação da forma poética, trabalho a que se propuseram os modernistas de 22, a poesia, a partir da década de 30 e, principalmente, com a obra de Carlos Drummond de Andrade, passa a assistir à reafirmação do elemento cotidiano como matéria central do poema, embora tenha na subjetivação das formas de percepção um de seus movimentos mais essenciais. De fato, o eu que se percebe no mundo oscila entre deparar-se consigo mesmo e lidar com o desconcerto da realidade que o envolve, fazer poético que passa pela

(...) aguda percepção de um intervalo entre as convenções e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos que acaba virando matéria privilegiada do humor, traço constante na poesia de Drummond. A prática do distanciamento abriu ao poeta mineiro as portas de uma expressão que remete ora a um arsenal concretíssimo de coisas, ora à atividade lúdica da razão, solta, entregue a si mesma, armando e desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir. (BOSI, 1997, p.441)

O hiato apontado pelo crítico manifesta uma particularidade da forma humorística, pautada na articulação entre o cômico e o trágico na composição de uma síntese que impregna o riso de um sentimento de compaixão. Essa síntese, definida por Pirandello (1996) como “sentimento do contrário”, instaura um movimento de reflexão capaz de diluir o distanciamento crítico próprio do cômico. Nesse sentido, o humor possibilita certa aproximação entre o objeto do riso e aquele que ri, substituindo a gargalhada pelo sorriso complacente daquele que subitamente se vê envolvido afetivamente com o objeto do riso, justamente por se reconhecer tão vulnerável quanto ele.

Na poesia drummoniana, o humor ata-se justamente à relação entre a percepção cômica de um mundo às avessas e a impotência do eu diante do desconcerto. Poética que ri sem escarnecer, essa expressão lírica mostra um mundo de valores invertidos e, ao mesmo tempo, aponta para a inexistência de soluções que remodelem seus esquadros. Como no poema “Papai Noel às avessas”, em que o revés sugerido pelo título antecipa o itinerário enviesado de um Noel que, na noite de Natal, entra pela porta dos fundos e, ignorando a chaminé, deixa de lado todas as convenções da data para se transformar uma representação metonímica de uma sociedade alheia a qualquer possibilidade de harmonia. Construindo a figura de um Papai Noel que se agacha e surrupia todos os brinquedos de crianças que, ingenuamente, dormem e sonham com “outros natais muitos mais lindos” (DRUMMOND, 1998, p.55), o eu-lírico desconstrói a imagem idílica do ícone natalino e põe em cena o avesso do Natal.

Descontrução que passa, ainda, pela lente da ironia que amplia o absurdo da situação ao apontar o contraste entre a construção harmônica e idealizada do Natal cristão e a realidade dos fatos. O último verso – “Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes” (DRUMMOND, 1998, p.56) - promove uma síntese irônica da incongruência fundamental do poema, ao conceder ao reino vegetal o que seria suposto privilégio da humanidade: as dádivas natalinas. A dimensão trágica da vida se mostra na posição indiferente do homem em relação ao sentimento de afeto trazido pelo Natal, avultando a crueza do comportamento humano justamente por construir uma figura que macula a ternura da criança e retira dela a possibilidade de se encantar com o espírito natalino já que, em lugar dos presentes esperados, restará a mesma desilusão do leitor que vê um Papai Noel que quebra a harmonia da noite.

Essa mesma melancolia misturada ao absurdo cômico da vida rege uma parte da poética de Manuel Bandeira, também afinado à percepção subjetivada dos contrastes que compõem a aparente banalidade cotidiana. No poema “Rondó dos cavalinhos” (BANDEIRA, 1974, p.149), uma situação corriqueira, um almoço no jóquei clube, serve de mote para a reflexão de um eu-lírico que se vê diante do embrutecimento do homem. Na verdade, mais uma vez a ironia serve como instrumento para que dois elementos contrastantes sejam sintetizados: enquanto os cavalos são tratados afetuosamente, o homem é tomado com brutalidade, oposição de sentido reiterada pela estrutura do poema, composto por um estribilho – “Os cavalinhos correndo / E nós, cavalões, comendo...” (BANDEIRA, 1974, p.149) – e quatro dísticos (CANDIDO, 1995).

A polaridade fundadora do poema articula-se à constituição do humor, uma vez que a cena observada passa por um processo que parte da percepção, passa pela descrição e culmina com a reflexão do eu-lírico a respeito da perda do traço humano do próprio homem, o que conduz à falência final de qualquer esperança, já que a alma anoitece enquanto a poesia morre, sem que aqueles que participam da cena descrita se apercebam da humanidade que se escoa. Sob esse aspecto, ainda, colocam-se como componentes do humor a dimensão lúdica alcançada pela repetição do diminutivo que qualifica o animal em contraste ao aviltamento do homem, tomado em sua fragilidade corpórea e instintiva, já que o ato de alimentar-se não é o elemento que definiria a singularidade humana, pelo contrário, é justamente o que faz com que o homem perca sua individualidade e se submeta a um processo zoomórfico.

Transposta para a prosa regionalista das décadas de 30 e 40, essa dimensão melancólica da vida assume nova roupagem na medida em que se impregna das tonalidades da miséria do homem do sertão diante da industrialização e das crescentes transfigurações que daí decorreram. Menos do que a afirmação de um tipo que resumisse os traços do habitante de cada região – como ocorrera na produção do princípio do século -, o regionalismo busca a dimensão humana do espaço em transformação, de modo que a consciência aguda da decadência passa por uma significativa mediação sócio-política no interior da obra literária, o que lhe atribui sua inclinação de crítica e engajamento. Entrelaçado a esse contexto, o humor promove a síntese entre o absurdo cômico do desconcerto e a reflexão sobre as causas que conduziram à perda de identidade do sertanejo, que vê o esfacelamento do mundo em que vive e não é capaz de se encaixar nos esquadros inaugurados pelo progresso.

Tendo como eixo central de estruturação a falência dos engenhos de açúcar diante da modernização da produção e do advento das usinas de açúcar, o romance Fogo morto, de José Lins do Rego, serve-se do humor como instrumento de reflexão acerca das mazelas a que foi legado o sertanejo no nordeste do Brasil. A dimensão trágica da decadência institui-se, aqui, a partir da segmentação de três eixos narrativos: de um lado, coloca-se o mestre José Amaro, seleiro que vive nas terras do Santa Fé por julgar-se dono de um direito adquirido pelo pai, que foi acolhido no engenho por seu antigo dono após apresentar-se fugido por ter cometido um homicídio em outra região; de outro lado, Luís César de Holanda Chacon, o coronel Lula de Holanda, transforma-se em dono do engenho Santa Fé depois da morte do capitão Tomás, seu fundador; por último, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, personagem quixotesco, constitui-se como um ativista político, sustentado pelo trabalho da esposa, Adriana, escarnecido por todos da região por seu comportamento exagerado.

Embora cada um dos personagens empreste seu nome a um capítulo do romance, o desenvolvimento da narrativa institui um eixo temporal comum que os une: a história de criação, apogeu e decadência do engenho Santa Fé define suas trajetórias e marca, de maneiras diferentes, o ponto central da falência do indivíduo e do segmento social que representa. Fundado em 1848 pelo capitão Tomás, o Santa Fé tem o ápice de seu desenvolvimento já em 1850, ano em que se realiza a última pintura na casa grande quando o piano - símbolo de prosperidade e fidalguia - da filha do capitão é transportado para a propriedade. Corridos os anos, institui-se o apoio governamental para o desenvolvimento das usinas de açúcar na região nordeste, em 1875, e o comando do capitão Lula recusa-se a acompanhar os novos moldes do mercado de açúcar o que conduz, já na época da abolição da escravatura, à falência do engenho. Sob esse ponto de vista, é importante que se note que o velho engenho de Lula não é capaz de se adequar o crescente desenvolvimento industrial e sua queda ata-se à falência de cada um dos três personagens.

O fantasma do passado próspero passa a reger os escombros do presente e institui a loucura como meio e fim do percurso da tríade que estrutura o romance. Assim, o capitão Lula enlouquece e tem sucessivas crises convulsivas, sendo que sua doença passa a ser narrada em paralelo com o atavismo de sua propriedade: “Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visitas era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando” (REGO, 1997, p.151). Do mesmo modo, a loucura sonda o personagem José Amaro, tanto na figura da filha Marta quanto no esfacelamento de qualquer possibilidade existência de uma identidade individual que o defina. Seleiro que já não tem no ofício o mesmo apogeu de outrora – pois os meios de produção industrial deslocaram para a cidade os atrativos do comércio e, em conseqüência, a atividade profissional que o definia deixou de existir -, Mestre Amaro é expulso das terras do Santa Fé por Lula e vê cortadas as raízes que o prendiam ao espaço, depois de já ter a dimensão do tempo destruído seu ofício e seu presente: “Agora era aquilo que se via, um engenho de duzentos pés, moendo cana, puxado a besta. Toda a alegria do seleiro se pondo como um sol em dia de chuva. Todo ele enroscava-se outra vez, fechava-se em sombras. E a cara dura, os olhos inchados, a tristeza íntima, eram outra vez o mestre José Amaro” (REGO, 1997, p.63).

À tragicidade atada aos personagens mestre Amaro e Lula de Holanda entrelaça-se a dimensão cômica de Vitorino Carneiro da Cunha, de modo que a amargura e a crescente decadência dos primeiros contrastam com a figura faceira do segundo. Não menos entretecido à dimensão trágica do tempo, Vitorino desenvolve uma trajetória em que essa mesma tragicidade contrasta com os contornos de um mundo criado por sua imaginação, instituindo acentuada comicidade à narrativa pelos traços caricaturescos com que é desenhado:

(continua)

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Fontes:
Enivalda Nunes Freitas e Souza; Eduardo José Tollendal e Luiz Carlos Travaglia (organizadores). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlandia: EDUFU, 2006.
- Imagem = Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, Portugal. janeiro de 2010.

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