quarta-feira, 21 de abril de 2010

Eduardo Campos (Drama de Rua Ao Entardecer)


Era como se dava todas as tardes, logo atenuado o calor. Tudo que acontecia por então, na rua, parecia entretecer os vagares de cada um com as coisas transcorrentes. Assim a senhora do sobrado aparecia na varanda, recendendo a extrato e a leve odor de talco de jasmim, enquanto os seus olhos de muito olhar e pouo ver ignoravam o vendedor de pão da tarde, ou o ir-e-vir de tantos, por motivos os mais diversos (às vezes até inconfessáveis), ganhando a rua... E ela, por cima de todos, lá do alto, sentia-se realizada, dona de seus próprios pensamentos e refrescada de cheiros que lhe alvoroçavam indistintas lembranças. A espaços, a senhora do sobrado exigia a presença de pessoa da casa, que, demorando em atender, aborrecia. Então dizia com certa asperidade:

- Você vem ou não vem?

E a “Você vem ou não vem” - empregada de vida e feições consumidas - também assomava à varanda, toda metida em receios, quase sempre a confirmar tudo que a patroa propunha...

- Aquele tipo não é o mesmo sujeitinho que vem rondar a casa da viúva? Hoje, só mudou a camisa! Meu Deus, como é espalhafatoso!

A outra, em voz sumida e costumeiramente medrosa, arriscava: – Acho não... É nadar!

.-E aquilo? que é?

- ... melhor a senhora botar os óculos.

– Preciso não! São os meninos brincando...

E em tom de afetado azedume:

- Vá chegando logo pra sua cozinha. Fico melhor sem sua parceria...

A porta da casa defronte abriu-se, deixando sair um rapazinho. Logo atrás, vagaroso, apareceu o velho. Foi quando alguém, do interior, com bastante má vontade, advertiu: .

– Cuidado, moleque! Juízo!.

O homem de idade, acompanhando o empregado e guia, convivia com teimosa névoa a lhe tomar os olhos. Em verdade não mais podia reconhecer as pessoas com quem falava, ainda que demorassem perto. Agora, pisando a rua, de repente achou-se envolvido pelo perfume da senhora do sobrado. Não sem razão quis saber:

- É ela? já está lá?

- Faz é tempo... Desde a passagem do vendedor de picolé.

- E o namorado da viúva?

- Indagorinha desceu do ônibus.

- Ah,... . considerou o homem, depois de breve tempo, como se algo estivesse errado. O Estou saindo tarde, hoje. Já vi que vou demorar pouco, tomando ar na praça...

Ao alcançarem o primeiro banco do jardim, as vozes das crianças retomaram o refrão de cantiga de roda, algo. muito doce e sentimental, que ele imaginou estar ouvindo em seu passado. Foi o suficiente para sentir-se mais dolorido em sua condição de pessoa desamparada.
E se sentou, tocado. pela incômoda sensação de desamparo e abandono. Depois de breve instante, chamou:

- Francisco... Você está aí: e mais inseguro, tornou a falar.

- Onde você se meteu, menino?

Um carro buzinou; outro, rente à calçada, passou carregando pessoas ruidosas. O ônibus estacionou na esquina, para desapear um passageiro abusado, a reclamar o valor do troco da passagem. Palavrões. Xingamentos. A senhora da varanda do sobrado chamou a

– Você vem ou não vem..

Reparasse, referia, o doido do Francisco . um grande irresponsável! abandonara o pobre velho e agora, muito curioso, do outro lado do passeio, vigiava o furgão da padaria.

– Grite alto, chame de volta aquele imbecil! Onde já se viu uma coisa dessa?!!

– Era bom eu descer, ver lá embaixo... A gente falando mais de perto é melhor.

- Aí você vai se grudar, preguenta que é, e não retorna tão cedo! Lhe conheço as manhas... Quero que grite.

- “Você vem ou não vem” resistia:

– Melhor mesmo eu descer... De perto ajudo mais. Afinal a senhora do sobrado, decidida, debruçou-se no peitoril da varanda, a voz empostada, nervosa:

- Moleque, retome ao banco! O cego não pode ficar sem companhia! Estará doido?!

O barulho prosperara, bastante intenso. Mais carros, mais coletivos barulhentos, e como se não bastasse tudo isso, um automóvel, de alto-falante montado na capota, anunciava os preços inacreditáveis do dia D da economia. Ao velho acudiu então vontade de levantar-se, não. obstante desvanecido, e, ainda que trôpego, ir-se dali, a recolher.

Era perigoso, sabia, deixar a praça, desafiar o tráfego. Podia acabar morto.

Refluiu da idéia insensata e, instintivamente, mais a jeito e resignado, acomodou-se outra vez, a olhar para o que não podia ver. Estava assustado. Não apreciava ficar sem alguém por perto, sem companhia, a se considerar um ser qualquer, diluído no tempo...

Não, não estava só, se disse a si mesmo. As crianças continuavam cantando. E só por isso não podia escutar, distintas, as palavras gritadas do sobrado.

Mas de repente - e tudo ocorreu de modo bastante inesperado - ele percebeu que pessoa atrevida lhe arrebatara o relógio do pulso, e, ligeiro, com mão pesada e agressiva, já alcançava os seus pés, enquanto ia comandando exigente:

- Os sapatos! Os sapatos!

Quando cessou a ação desse intruso, pôde compreender que perdera o relógio de fingir... e restara descalço. A “Você vem ou não vem”, perto dele, ofegava pela carreira a que se impusera até ali.

. Pelos céus, lhe tiraram tudo, até os sapatos!

Refeito do susto, trêmulo, esclarecia:

Ah!, o meu relógio, os tênis...

A voz escapara-lhe em desalento e magoada.. Tornou repetir:

. Meu relógio...os tênis...

Quis acrescentar mais, e não pôde. Em verdade não encontrou palavras para descrever a cena, o vexame vivido, a horrível ação da mão áspera e rude arrebatando-lhe as coisas.

. Meu Deus, o que aconteceu ao meu patrãozinho?!

Era Francisco, atarantado, ante o infortúnio do outro. E cobrava explicações, novos detalhes, a se valer de quem, por acaso estando por perto, houvesse testemunhado o imprevisto.

– Tinham batido no patrão? Carregaram os sapatos?.

Como se prestasse depoimento, alguém explicava: .

Os artigos roubados eram de primeira. E secundando: - um enorme prejuízo para o cidadão.
Cercado agora pela multidão, a vítima aceitava a deplorável situação, a assumir o drama. Dava-se por personagem principal, mais ficcional que real.

- Ah, meu rico relógio de herança!

- Já tinham oferecido dinheiro nele?

Atarantava-se para explicar, e a perceber que não podia decepcionar aquela gente solidária, não confessou, por exemplo, que o relógio nem corda mais pegava, e os sapatos, bem, os sapatos fediam de tão surrados, bons só de aparência. No interior de ambos a palmilha, lacerada, não mais impedia que a sola do pé tocasse ao chão . O homem é de família, tinha tudo de bom! “acudiu um desconhecido”. Ladrão de hoje só quer artigo de moda. A tanto ele aquiescia, a voz insegura, circunstância que dava aos presentes o exato sentimento de perda dolorosa.

Já de pé, deixando o banco, viu-se cercado de mais atenções, reconfortado como jamais ocorrera antes.

- Por aqui, senhor... Cuidado, senhor - recomendavam as vozes.

Por um instante pensou que também o invejavam... Foi andando, a pisar o chão, diabo de chão quente, forrado de areia e pedrinhas incômodas! Mas aguentou firme a caminhada vagarosa em direção a casa da nora, onde morava. Atrás, em alvoroço, o cortejo azafamado de pessoas, biscateiros ,e desocupados, todos álacres, empurrando-se uns aos outros.

Assim atravessaram a rua, enquanto os automóveis paravam; até o ônibus circular demorou no estacionamento, enquanto o motorista e passageiros metiam a cabeça às janelas, querendo saber que diabo era aquilo....

Do alto da varanda do sobrado a senhora perfumada, impaciente, não perdia sequer um momento do acontecimento. E quando o ancião ficou mais ao alcance de sua voz, fez questão de comentar em tom bastante altanado:

- Bravo! Que homem! Que resistência!

Fonte:
Eduardo Campos. A borboleta acorrentada. Fortaleza: Casa de José de Alencar / Programa Editorial, 1998. (Coleção Alagadiço Novo)

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