domingo, 11 de abril de 2010

Urda Alice Klueger (Rosina x Pedro)


Rosina foi a própria imagem da desolação nas semanas que se seguiram. Deus do céu, como tivera a coragem? Virgem Santíssima, como pudera pecar assim, esquecer-se das promessas sempre renovadas de virtude que por anos e anos fizera nas tardes da capelinha? Oh! Como enfrentar de novo a serenidade e a pureza de Nossa Senhora, ela que se deixara contaminar pela impureza, ela que tudo jogara fora por um momento de loucura? Sim, pois estava convencida de que jogara fora inclusive o almejado noivo, aquele homem bonito que chegara a falar em casar-se com ela, aquele homem que, pela primeira vez na sua vida que já era de solteirona, chegava e falava-lhe em casamento. Meu Deus, meu Deus, como voltar atrás? O seu noivo chegara e se fora; não iria mais ele querer casar-se com moça assim fácil, moça desonrada, moça que se entregava no meio do mato ao primeiro que aparecia. Haveria algum meio de ele saber que ela não era a mulher fácil que parecia, que se ela se entregara fora porque já não resistia, fora porque já não sabia viver sem ele? Amargas lágrimas chorava ela agora, escondida no mato, naquele lugar do seu pecado, enquanto a família a imaginava a rezar na capela, já que lá não tinha mais a coragem de ir e enfrentar a Virgem Santíssima. Depois de uns dias, assustou-a uma nova imagem: e se viesse a ter um filho? Parada no mato, hirta e branca, as rosas sumidas de vez das faces, Rosina quase enlouqueceu com a idéia. Meu Deus, se o pecado tivesse lhe deixado um filho? Que seria da sua vida? Oh! Se o pai a descobrisse desonrada e grávida o que aconteceria? Talvez até o pai morresse de desgosto, talvez também a mãe morresse, mas antes eles a expulsariam de casa, colocá-la-iam na rua, todo o mundo saberia do seu pecado — como quase não enlouquecer com a idéia? Amargas lágrimas chorava Rosina. E lágrimas de dor vinham junto e misturava tudo, pois, mais que o terror pelo pecado, mais que o medo do pecado, o que lhe doía era a perda de Pedro, do noivo que, afinal, lhe aparecera. E o que doía mais não era a perda que ela julgava irremediável, mas a saudade que sabia que ficaria para toda a vida.

— Oh! Mãe Santíssima! — rezava ela nessas horas. — Que eu possa vê-lo de novo quando passar, nem que seja de longe!

Inexperiente Rosina, quanto sofrimento à toa! Como passaria ele de longe depois de ter provado o sorriso de ouvi-la delirar incoerentemente sob o seu peso? Nada ela sabia dessas coisas, tinha a alma virgem, pensara sempre num noivo como numa solução social, como alguém a quem servir e para quem trabalhar, alguém a quem dar filhos, sem se deter muito nas minúcias de como seria o gerar desses desejados filhos que ela criaria com desvelo. Nunca imaginara as sensações pecaminosas que Pedro de Souza viera lhe trazer e que estavam a voltar a cada instante e que a horrorizavam, principalmente a daquele desmaio de ventura ocorrido no momento do pecado e que ela não podia esquecer. Inexperiente Rosina, italiana e católica, quanto sofrimento à toa!

***
Pelo resto dos seus dias, Pedro de Souza não mais esqueceria aquele desmaio de prazer de Rosina Viviani sob o seu peso no leito rústico da floresta que envolvia o lugar chamado Rodeio, lá na serra-abaixo, na terra dos italianos.

Foi-se ele embora, naquele dia, tão cheio de excitação quanto quando chegara, apesar da doçura daquele êxtase que o lavara como uma chuva de verão lava uma planta ressequida e empoeirada. Foi-se embora excitado e, na sua cabeça e no seu coração, agora, Rosina imperava absoluta, com suas rosas nas faces e sua harmonia de delírio, e ele sentia-se esfomeado e sedento dela muito mais do que se sentira antes. Voltou ao Planalto como se vagasse dentro de um sonho e a mãe viu-o chegar assim e entendeu que o tempo chegara, o de dividir a casa com outra mulher, mas nada disse. Esperou que ele falasse, mas os dias passavam sem que ele nada dissesse.

Pedro esteve com sua índia, sua Maria, não dissemos antes que ela se chamava assim. Ela ainda era pouco mais que uma menina, teria dezoito anos, talvez dezenove ou vinte, e continuava mansa e terna sob o seu corpo, e ele viu quanto era morno o prazer que sentia com ela, quanto era morno perto da sensação de poder e de absoluto que houvera com Rosina.

Pedro de Souza partiu a cavalo e chegou ao lugar chamado Rodeio alguns dias depois. Ansiava rever Rosina como nunca ansiara nada na vida, e foi direto ao sítio onde ela morava. Chegou de tarde, quando estavam todos na roça, e para a roça tocou o cavalo bonito, malhado, e apeou-se junto ao velho italiano Viviani, tirando o chapelão com todo o respeito.

— Boas tardes! Como vão todos por aqui?

Giuseppe Viviani já o conhecia, tinha até uma certa cisma com ele por causa de Rosina, mas achava-o simpático, apesar das suas desconfianças.

— Boa tarde. Vamos trabalhando.

Chapéu na mão, Pedro aproximou-se mais. Via Rosina, pouco adiante, pálida como uma morta, fazendo de conta que trabalhava.

— Eu vim para tratar de um assunto com o senhor.

O velho Viviani ainda demorou uns momentos antes de parar de trabalhar e apoiar-se na enxada.

— É assunto de negócio? — cada qual falava a sua língua, mas conseguiam entender-se.

— Não, não é negócio. Vim lhe falar de casamento. Queria lhe pedir para casar-me com a sua filha Rosa.

Por aquela não esperava o velho italiano! Aprumou-se com tal rapidez que a enxada caiu e ele nem se lembrou de ajuntá-la.

— O senhor disse... — ele deixou a frase no ar. Talvez não tivesse entendido direito, o outro falava português, talvez tivesse dito outra coisa que ele confundira.

— Eu quero casar com a sua filha Rosina. Casar, entende?

Giuseppe Viviani ficou um bom minuto olhando fixo, através do corpo de Pedro. Achou de novo a palavra.

— E o senhor é católico, católico praticante?

Católico Pedro era, fora batizado, fizera a primeira comunhão, mas para ser praticante faltava muito. Não titubeou, porém, em responder:

— Sim, senhor, sou católico praticante. — E tirou do peito do futuro sogro uma preocupação grande. Para ninguém Giuseppe nunca dissera, mas sempre temera que algum homem luterano se interessasse por Rosina. Não deu o suspiro de alívio que queria, mas continuou a olhar fixamente através de Pedro, até, de repente, reagir.

— Rosina! — gritou. — Vem aqui!

Ela se aproximou, os olhos vesgos abaixados e escondidos, e Pedro de Souza, como sempre que a via, fremiu de excitação e de desejo.

— Este homem aqui quer casar-se contigo. O que tu dizes?

Como, como chorar de emoção frente à formidável presença da autoridade que era o pai. Ela se conteve e não chorou, mas queria morrer de alegria. Arriscou um olhar para Pedro, e como ele achou lindos os enviesados olhos dela!

— Que tu dizes?

Oh! Como achar a voz, assim de repente?

— Sim, pai.

— Sim o quê?

Eu também quero.

O pai avaliou as rosas que começavam a se acender nas faces de Rosina, antes de gritar de novo, chamando a mulher.

— Vem cá, mulher! Vem até aqui. A tua filha vai se casar.

E a mãe de Rosina também veio e soube, e depois todos voltaram ao trabalho, e Pedro pegou na enxada e ajudou até que o crepúsculo caísse. Foi assim que Pedro de Souza e Rosina Viviani tornaram-se noivos.

Casaram-se quase duas semanas depois, quando o padre veio de Blumenau para rezar missa em Rodeio. O sogro arranjou para que Pedro ficasse hospedado em sítio vizinho, já que não podia admitir que um noivo dormisse sob o mesmo teto que a sua filha antes do casamento. Pedro vinha todas as manhãs e trabalhava nas roças, e às vezes conseguia surrupiar um momento de intimidade com a vigiada noiva Rosina e roubava-lhe um beijo apressado e cheio de promessas, que o deixava quase maluco. Era ele um homem já maduro, já com trinta e sete anos, não tinha mais a paciência de esperar como os jovens têm. Mas esperou e casou, e sua noite de núpcias foi no quarto de Rosina, apenas uma parede de madeira a separá-los dos velhos Viviani, e como se contiveram para não deixar escapar os suspiros e os ais! Intensa noite de prazer, parecia ainda mais intensa com aquele gosto de proibido, com aquele gosto de vigilância, ai! Deus do céu, que coisa louca que foi!

Viajaram no dia seguinte para o Planalto. Pedro colocara a sua Rosina montada no cavalo malhado e lindo; ia ele a pé, puxando pelo cabresto uma mula que arranjara, em cima da qual estava amontoado o enxoval dela. Não andaram muito naquele dia, porém. Na verdade, andaram apenas o suficiente para se afastarem de Rodeio e dos moradores que ficavam próximos do caminho. No primeiro eito da mata fechada que apareceu, amarrou Pedro o cavalo e a mula a uma árvore afastada e improvisou um leito primitivo e rústico no meio das folhagens da mata e para lá arrastou uma envergonhada Rosina, que ainda não conseguia dissociar a idéia do que estava acontecendo com a idéia do pecado, mas que, afinal, teve a liberdade de soltar os suspiros e os ais, e que delirou uma melodia toda nova que ecoou pela Floresta Atlântica como o mais mavioso dos cânticos.

Fonte:
CARDOZO, Flávio José (org.) Este Amor Catarina. Florianópolis: UFSC, 1996.

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