Comecei uma nova etapa na vida. Resolvi ir além das aparências. Além do que vejo.
Há uma senhora, cabelos curtos, escuros, magra, têm o andar meio manco, meio arrastando as pernas. Trás no rosto marcas do tempo, pele queimada pelo sol. Os dentes que ainda restam, manchados pela nicotina. Olhar triste melancólico, e com aquele brilho típico na pele de quem consome muito álcool. Tem como hábito sentar-se na calçada da avenida e algumas vezes pede a alguém que passa um real. Essa é Maria.
“Este é o meu pré-julgamento. Como estou disposta a ir além”...
Imagino Maria ainda criança, com seus sonhos, desejos; mas ainda muito jovem para entender o significado da palavra “futuro”. Ela cresce e por alguma razão seus sonhos são guardados no baú do esquecimento. Desde então sua vida tornou-se mecânica. Ao se levantar; lava o rosto toma um café, acende o cigarro... Louca por um “gole”. Tudo automaticamente, as rotinas diárias adquiridas através dos anos. O dia termina e ela pensa: “O que foi que fiz durante este dia? Já é noite?”. Antes de dormir faz uma oração. Chora pedindo a Deus uma benção. Triste inconformada adormece.
Um novo dia amanhece e ela acorda esperando um milagre, que aparentemente não veio. Inconscientemente se pergunta: “Cadê a benção que pedi?” Ela não percebe que o novo dia que nasceu, foi uma benção de Deus. Uma oportunidade de mexer no baú há tempos esquecido. Mas está cega para enxergar isso.
Talvez tenha motivos para se sentir deprimida...
Quando criança queria ser professora. Mas para sua decepção o pai não a deixou estudar além da quarta série do primário. Na opinião do pai estudo para mulher eram desculpas para safadeza. Casou-se cedo. Achando que assim se realizaria de alguma forma. Engravidou logo após o casamento, e para seu desespero o marido ficou desempregado, começou a beber e só parou com o vício quando morreu, deixando-a com uma criança de dois anos. Com a filha para criar Maria diplomou-se em lavadeira, “pós-graduação” em faxineira, “mestrado” em cozinheira e por fim “doutorado” em doméstica. Definitivamente aquilo não era o que havia sonhado para si. Contas para pagar, os alimentos do dia-a-dia que quase nunca tinham e remédios... Sempre faltava dinheiro para tudo!
Dinheiro... Como odiava o tal! Sempre que queria fazer alguma coisa, não podia pela falta de dinheiro.
Tudo o que Maria passou foi difícil! Mas não o fim. Existem vários tipos de pobreza. Mas a pior de todas foi a que transformou Maria em miserável: a falta de dignidade.
Imagino que em algum momento da vida, Maria teve a chance de não vivenciar tudo o que passou. Mas estava muito ocupada, olhando embasbacada um copo de cachaça e não percebeu que se trancava também no baú do esquecimento, junto com seus sonhos e esperanças. Deixando de fora apenas o medo.
Dezesseis anos se passaram.
Havia se passado muito tempo? Será que era tudo isso? Parecia impossível! Entretanto, sabia que era verdade. Os dias, os meses, os anos foram passando. E ela foi ficando. Queria gritar...
À noite enquanto se preparava para dormir, o sono não vinha. Mas não era de se surpreender que o sono não viesse, quando fechava os olhos aparecia em sua frente o vazio, o nada. Apenas o passado fazendo cobranças.
Estava tão atormentada pelo inevitável que tudo para parecia sem graça e sem sentido. Não prestava atenção no que acontecia a sua volta, alheia a tudo.
Da mesma maneira que aqueles pensamentos tomaram conta de sua mente, a resposta também veio. Tão clara que ela deveria ter percebido anos atrás. A resposta sempre estivera ali, mas por estar sempre atrás de um copo, fora cega demais, e orgulhosa. Sua filha era a esperança!
Não havia se dado conta que o tempo havia passado e aquela criança que ela dera a luz, estava prestes a trazer outra ao mundo. E ela não queria o mesmo futuro para aquele ser. A simples idéia de uma outra criança vir ao mundo a provocava calafrios. Já tivera uma experiência e não gostaria de ver a mesma história se repetir. Mas as coisas não podiam ser do jeito que ela gostaria que fosse.
Aquilo não podia ser verdade, a agonia era enorme e penetrante tanto quanto uma dor física, talvez até pior. Cobriu os olhos com as mãos em um esforço inútil de afastar a dor que escurecia sua mente. Precisava pensar e assimilar os sentidos das palavras e no que deveria acreditar e aceitar. Fechou os olhos e respirou fundo varias vezes. Para sua surpresa seus olhos estavam repletos de lágrimas -“Bom Deus, por favor, não permita que isso seja verdade.!
Havia tentado convencer a filha de que o futuro seria diferente, que podiam construir uma vida melhor. Porém, havia esperado tempo demais e agora era tarde, muito tarde.
Durante dois dias, não conseguiu dormir mais que duas horas por noite e não conseguia comer quase nada. Apenas bebia para acalmar a dor. Sempre que fechava os olhos via a imagem da filha a culpando por tudo. Havia tentado falar, mas ela virou a costa e foi embora levando junto às últimas esperanças. Agora Maria deveria conviver com isso pelo resto da vida e não sabia se conseguiria.
Estava tão exausta que seria capaz de vender a alma por uma única noite de sono, mas de preferência sem o peso da consciência esmagando-a. Consumiu em pouco tempo duas garrafas de cachaça, sem pensar duas vezes. E logo o álcool fez o efeito desejado.
Acredito que Maria não teme a morte. Sabe que para a vida ela já morreu. Está enterrada no baú do esquecimento. Dela, meu e seu. Dela o porquê já sabemos. Meu, pois me digno a ver, pensar e julgar. Seu, porque em algum momento da vida você esbarrou em alguma “Maria” na porta de um bar ou numa sarjeta qualquer e também fez o seu julgamento.
“Além do que vejo”...
Era tarde da noite quando Ângela, a filha voltou para pedir desculpas para a mãe, sabia que havia exagerado. O quarto se encontrava frio e escuro tão escuro que era impossível enxergar alguma coisa. Mesmo sem ver ela soube como sempre soubera sua vida toda que um dia isso iria acabar acontecendo. Sua mãe havia consumido muita bebida, se encontrava no momento em coma alcoólico.
Uma dor profunda lhe comprimiu o peito ela soube naquele exato momento que se algo acontecesse com a mãe, jamais se perdoaria, jamais seria a mesma. Um pedaço de si morreria. Mas não tinha tempo a perder, precisava chamar socorro.
Na vida existem idas e vindas!
Maria ouvia um som muito alto, que lhe causava uma terrível dor de cabeça. Queria falar para pararem com aquele som ensurdecedor; mas nem um som saia de seus lábios. Aos poucos percebeu que o som era a sirene de uma ambulância.
Devagar e dolorosamente juntou forças, lentamente abriu os olhos, percebeu que estava amarrada em uma maca. Erguendo os olhos, viu a filha acariciando sua cabeça.
Evitou encará-la, sentindo-se muito estúpida em sua atitude. Após ser medicada no hospital ainda sentia uma dor aguda e latejante parecendo ser capaz de derreter se cérebro.
Passou-se talvez horas e ambas permaneciam em silêncio.
Ângela não queria ser indelicada com a mãe. Por isso decidiu falar com tato.
Esta se sentia completamente sóbria e pronta para a tempestade... Que não veio.
- Desculpa... - começou Maria, mas foi interrompida pelo gesto da filha, para que se calasse.
- Mãe eu preciso falar... Fui muito egoísta ao falar aquelas coisas horríveis para você. Mas graças a Deus, consegui perceber a tempo de consertar o erro. Em nenhum momento você fracassou comigo. Foi muito corajosa se esforçando para me criar. E você está certa quando disse que não devemos fechar os olhos para a vida. Entendi o que você quis dizer. O Marcos, pai do meu filho, é responsável, tem um bom emprego, acabou com muita dificuldade a faculdade e quer que eu também volte a estudar. Estou pensando seriamente nessa hipótese. E preciso de você comigo. Para isso, exijo que você comece cuidando da sua saúde. Existe tratamento para pessoas que tem dependência alcoólica. Você está viva mamãe, e é isso o que importa! Vamos juntas lutar pelos nossos sonhos. E dar um futuro melhor ao seu neto. Tenho certeza que ele vai sentir orgulho da avó decente que tem. Gostaria que ensinasse a ele os belos mandamentos da vida, não mentir, não roubar, não matar, enfim, ensine que ele veio ao mundo por apenas um motivo: é da vontade do criador que ele busque a felicidade. E eu mamãe, te pergunto: - está preparada para lutar pela sua vida?
A mãe balançava a cabeça em um gesto afirmativo sem conseguir falar. Naquele momento se desmanchava em lágrimas, mas era de felicidade. Havia morrido a Maria infeliz e cheia de mágoa, e, dava lugar para outra Maria, cheia de expectativa diante do futuro e mais feliz.
Ângela, não sabia, mas acabara de ensinar para a mãe um mandamento muito importante da vida. Não desistir, sempre existe a chance de recomeçar.
E a “Vida” para Maria pareceu pela primeira vez mais leve e feliz. Como se sorrindo lhe estendesse a mão e em um doce convite lhe dizia:
- Sua música começou a tocar. Vem dançar!
Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = Red_off_elimination_by_hiliuyun
Há uma senhora, cabelos curtos, escuros, magra, têm o andar meio manco, meio arrastando as pernas. Trás no rosto marcas do tempo, pele queimada pelo sol. Os dentes que ainda restam, manchados pela nicotina. Olhar triste melancólico, e com aquele brilho típico na pele de quem consome muito álcool. Tem como hábito sentar-se na calçada da avenida e algumas vezes pede a alguém que passa um real. Essa é Maria.
“Este é o meu pré-julgamento. Como estou disposta a ir além”...
Imagino Maria ainda criança, com seus sonhos, desejos; mas ainda muito jovem para entender o significado da palavra “futuro”. Ela cresce e por alguma razão seus sonhos são guardados no baú do esquecimento. Desde então sua vida tornou-se mecânica. Ao se levantar; lava o rosto toma um café, acende o cigarro... Louca por um “gole”. Tudo automaticamente, as rotinas diárias adquiridas através dos anos. O dia termina e ela pensa: “O que foi que fiz durante este dia? Já é noite?”. Antes de dormir faz uma oração. Chora pedindo a Deus uma benção. Triste inconformada adormece.
Um novo dia amanhece e ela acorda esperando um milagre, que aparentemente não veio. Inconscientemente se pergunta: “Cadê a benção que pedi?” Ela não percebe que o novo dia que nasceu, foi uma benção de Deus. Uma oportunidade de mexer no baú há tempos esquecido. Mas está cega para enxergar isso.
Talvez tenha motivos para se sentir deprimida...
Quando criança queria ser professora. Mas para sua decepção o pai não a deixou estudar além da quarta série do primário. Na opinião do pai estudo para mulher eram desculpas para safadeza. Casou-se cedo. Achando que assim se realizaria de alguma forma. Engravidou logo após o casamento, e para seu desespero o marido ficou desempregado, começou a beber e só parou com o vício quando morreu, deixando-a com uma criança de dois anos. Com a filha para criar Maria diplomou-se em lavadeira, “pós-graduação” em faxineira, “mestrado” em cozinheira e por fim “doutorado” em doméstica. Definitivamente aquilo não era o que havia sonhado para si. Contas para pagar, os alimentos do dia-a-dia que quase nunca tinham e remédios... Sempre faltava dinheiro para tudo!
Dinheiro... Como odiava o tal! Sempre que queria fazer alguma coisa, não podia pela falta de dinheiro.
Tudo o que Maria passou foi difícil! Mas não o fim. Existem vários tipos de pobreza. Mas a pior de todas foi a que transformou Maria em miserável: a falta de dignidade.
Imagino que em algum momento da vida, Maria teve a chance de não vivenciar tudo o que passou. Mas estava muito ocupada, olhando embasbacada um copo de cachaça e não percebeu que se trancava também no baú do esquecimento, junto com seus sonhos e esperanças. Deixando de fora apenas o medo.
Dezesseis anos se passaram.
Havia se passado muito tempo? Será que era tudo isso? Parecia impossível! Entretanto, sabia que era verdade. Os dias, os meses, os anos foram passando. E ela foi ficando. Queria gritar...
À noite enquanto se preparava para dormir, o sono não vinha. Mas não era de se surpreender que o sono não viesse, quando fechava os olhos aparecia em sua frente o vazio, o nada. Apenas o passado fazendo cobranças.
Estava tão atormentada pelo inevitável que tudo para parecia sem graça e sem sentido. Não prestava atenção no que acontecia a sua volta, alheia a tudo.
Da mesma maneira que aqueles pensamentos tomaram conta de sua mente, a resposta também veio. Tão clara que ela deveria ter percebido anos atrás. A resposta sempre estivera ali, mas por estar sempre atrás de um copo, fora cega demais, e orgulhosa. Sua filha era a esperança!
Não havia se dado conta que o tempo havia passado e aquela criança que ela dera a luz, estava prestes a trazer outra ao mundo. E ela não queria o mesmo futuro para aquele ser. A simples idéia de uma outra criança vir ao mundo a provocava calafrios. Já tivera uma experiência e não gostaria de ver a mesma história se repetir. Mas as coisas não podiam ser do jeito que ela gostaria que fosse.
Aquilo não podia ser verdade, a agonia era enorme e penetrante tanto quanto uma dor física, talvez até pior. Cobriu os olhos com as mãos em um esforço inútil de afastar a dor que escurecia sua mente. Precisava pensar e assimilar os sentidos das palavras e no que deveria acreditar e aceitar. Fechou os olhos e respirou fundo varias vezes. Para sua surpresa seus olhos estavam repletos de lágrimas -“Bom Deus, por favor, não permita que isso seja verdade.!
Havia tentado convencer a filha de que o futuro seria diferente, que podiam construir uma vida melhor. Porém, havia esperado tempo demais e agora era tarde, muito tarde.
Durante dois dias, não conseguiu dormir mais que duas horas por noite e não conseguia comer quase nada. Apenas bebia para acalmar a dor. Sempre que fechava os olhos via a imagem da filha a culpando por tudo. Havia tentado falar, mas ela virou a costa e foi embora levando junto às últimas esperanças. Agora Maria deveria conviver com isso pelo resto da vida e não sabia se conseguiria.
Estava tão exausta que seria capaz de vender a alma por uma única noite de sono, mas de preferência sem o peso da consciência esmagando-a. Consumiu em pouco tempo duas garrafas de cachaça, sem pensar duas vezes. E logo o álcool fez o efeito desejado.
Acredito que Maria não teme a morte. Sabe que para a vida ela já morreu. Está enterrada no baú do esquecimento. Dela, meu e seu. Dela o porquê já sabemos. Meu, pois me digno a ver, pensar e julgar. Seu, porque em algum momento da vida você esbarrou em alguma “Maria” na porta de um bar ou numa sarjeta qualquer e também fez o seu julgamento.
“Além do que vejo”...
Era tarde da noite quando Ângela, a filha voltou para pedir desculpas para a mãe, sabia que havia exagerado. O quarto se encontrava frio e escuro tão escuro que era impossível enxergar alguma coisa. Mesmo sem ver ela soube como sempre soubera sua vida toda que um dia isso iria acabar acontecendo. Sua mãe havia consumido muita bebida, se encontrava no momento em coma alcoólico.
Uma dor profunda lhe comprimiu o peito ela soube naquele exato momento que se algo acontecesse com a mãe, jamais se perdoaria, jamais seria a mesma. Um pedaço de si morreria. Mas não tinha tempo a perder, precisava chamar socorro.
Na vida existem idas e vindas!
Maria ouvia um som muito alto, que lhe causava uma terrível dor de cabeça. Queria falar para pararem com aquele som ensurdecedor; mas nem um som saia de seus lábios. Aos poucos percebeu que o som era a sirene de uma ambulância.
Devagar e dolorosamente juntou forças, lentamente abriu os olhos, percebeu que estava amarrada em uma maca. Erguendo os olhos, viu a filha acariciando sua cabeça.
Evitou encará-la, sentindo-se muito estúpida em sua atitude. Após ser medicada no hospital ainda sentia uma dor aguda e latejante parecendo ser capaz de derreter se cérebro.
Passou-se talvez horas e ambas permaneciam em silêncio.
Ângela não queria ser indelicada com a mãe. Por isso decidiu falar com tato.
Esta se sentia completamente sóbria e pronta para a tempestade... Que não veio.
- Desculpa... - começou Maria, mas foi interrompida pelo gesto da filha, para que se calasse.
- Mãe eu preciso falar... Fui muito egoísta ao falar aquelas coisas horríveis para você. Mas graças a Deus, consegui perceber a tempo de consertar o erro. Em nenhum momento você fracassou comigo. Foi muito corajosa se esforçando para me criar. E você está certa quando disse que não devemos fechar os olhos para a vida. Entendi o que você quis dizer. O Marcos, pai do meu filho, é responsável, tem um bom emprego, acabou com muita dificuldade a faculdade e quer que eu também volte a estudar. Estou pensando seriamente nessa hipótese. E preciso de você comigo. Para isso, exijo que você comece cuidando da sua saúde. Existe tratamento para pessoas que tem dependência alcoólica. Você está viva mamãe, e é isso o que importa! Vamos juntas lutar pelos nossos sonhos. E dar um futuro melhor ao seu neto. Tenho certeza que ele vai sentir orgulho da avó decente que tem. Gostaria que ensinasse a ele os belos mandamentos da vida, não mentir, não roubar, não matar, enfim, ensine que ele veio ao mundo por apenas um motivo: é da vontade do criador que ele busque a felicidade. E eu mamãe, te pergunto: - está preparada para lutar pela sua vida?
A mãe balançava a cabeça em um gesto afirmativo sem conseguir falar. Naquele momento se desmanchava em lágrimas, mas era de felicidade. Havia morrido a Maria infeliz e cheia de mágoa, e, dava lugar para outra Maria, cheia de expectativa diante do futuro e mais feliz.
Ângela, não sabia, mas acabara de ensinar para a mãe um mandamento muito importante da vida. Não desistir, sempre existe a chance de recomeçar.
E a “Vida” para Maria pareceu pela primeira vez mais leve e feliz. Como se sorrindo lhe estendesse a mão e em um doce convite lhe dizia:
- Sua música começou a tocar. Vem dançar!
Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = Red_off_elimination_by_hiliuyun
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