quarta-feira, 18 de setembro de 2024

José Feldman (Versejando) 149

 

Trovador Homenageado do Dia: Wanda de Paula Mourthé (Trovas em preto e branco)


1
A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
2
– Barata em pinga?! Que horror!
E a garçonete “sensata”:
– Mas não pediu o senhor
a cachaça mais barata?
3
Chega bêbado… sequer
distingue um rosto e malogra:
dá alguns tapas na mulher
e muitos beijos na sogra!
4
Esta angústia indefinida,
que sempre à noite me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarces da saudade?
5
Forçada a escolhas na vida
- teatro que não domino
fui marionete movida
pelos cordéis do destino!
6
Gente que escolhe sem tino
as propostas da existência,
quando erra, culpa o destino
pela própria incompetência.
7
Meu diário! Em tuas folhas
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
8
Na feira de antiguidade,
ao ancião combalido
perguntam, não sem maldade:
-Vem comprar ou ser vendido? 
9
O destino traiçoeiro
separou-nos, sem piedade,
mas o amor fez do carteiro
o porta-voz da saudade.
10
Partiu... nem disse o motivo,
e eu, da saudade à mercê,
estou vivo, mas não vivo,
pois não vivo sem você.
11
Tanto amor e afinidade
entre nós dois, já se vê,
que perdi a identidade:
eu sou eu... ou sou você?
12
Volto à capela em que, um dia
me esperaste ao pé do altar...
E hoje a saudade, em magia,
me espera no teu lugar...

As Trovas de Wanda em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS DE DIVERSAS ÉPOCAS

Trova 1. Mundo Ideal vs. Realidade
A trovadora expressa um anseio por escapar das duras verdades da vida cotidiana, preferindo as ilusões e mentiras reconfortantes dos sonhos. Essa oposição entre o ideal e o real reflete uma busca por significado e felicidade em um mundo muitas vezes cruel.

Fernando Pessoa (Portugal): "Tabacaria" e "Autopsicografia" exploram a busca por realidades alternativas e a criação de personas.

Adélia Prado: "A Casa" e "Oração" refletem a busca por um sentido mais profundo na vida e a valorização do sonho.

Walt Whitman (EUA): "Song of Myself" celebra a liberdade e a individualidade, criando um mundo de possibilidades que contrasta com as limitações da vida cotidiana.

Charles Baudelaire (França): "A Une Passante" reflete sobre a efemeridade e a busca por beleza em meio ao desencanto da vida urbana, capturando a tensão entre ideal e real.

Trova 2. Humor e Crítica
A cena com a garçonete revela a ironia da situação com humor, destacando uma crítica social sobre as condições de vida e as expectativas de consumo. A pergunta retórica sobre a bebida mais barata expõe a absurdidade das escolhas feitas em momentos de necessidade.

Gregório de Matos: "Agradecimento" utiliza humor e crítica social.

Marcelino Freire: "Contos Negreiros" aborda a crítica social com um tom irônico.

T.S. Eliot (Inglaterra): "The Love Song of J. Alfred Prufrock" utiliza humor e ironia para criticar a sociedade e as expectativas, refletindo as absurdidades do cotidiano.

Dorothy Parker (EUA): Em seus poemas e contos, frequentemente satiriza as convenções sociais, abordando com humor as dificuldades da vida moderna.

Trova 3. Violência e Confusão
Trova humorística onde a embriaguez é um símbolo da confusão e do desespero nas relações. A imagem do homem que confunde a sogra com a esposa ilustra a desorientação emocional e a violência que pode surgir em ambientes familiares, sublinhando a fragilidade das dinâmicas pessoais.

Alberto de Oliveira: "O Último Beijo" fala sobre a confusão emocional e as consequências do amor.

Hilda Hilst: "A Obscena Senhora D" lida com a brutalidade nas relações.

Sylvia Plath (EUA/Inglaterra): "Daddy" explora a violência emocional e a confusão, trazendo à tona a complexidade das relações familiares e o impacto psicológico.

Charles Bukowski (EUA): "The Most Beautiful Woman in Town" retrata a brutalidade das relações e a autodestruição que pode surgir da embriaguez e da

Trova 4. Angústia e Saudade
A angústia é apresentada como uma presença constante, questionando se essas sombras são reflexos da vida ou da saudade. Essa dualidade sugere que a dor da ausência é intrínseca à experiência humana, revelando um estado emocional profundo.

Álvares de Azevedo: "Noite de Luar" fala sobre a melancolia e a saudade.

Marina Colasanti: "A Mulher que Aprendeu a Ver" reflete sobre a angústia e a memória.

Octavio Paz (México): "Piedra de Sol" explora a angústia e a busca por significado, ressoando com as inquietações presentes nas trovas de Mourthé.

Emily Dickinson (EUA): "I felt a Funeral, in my Brain" enfatiza a angústia e a introspecção, refletindo sobre a própria condição humana e a saudade da vida.

Paul Verlaine (França): "Chanson d'automne" expressa melancolia e saudade, capturando a passagem do tempo e a dor da perda.

Trova 5. Marionete do Destino
A metáfora da marionete sugere a falta de controle sobre os próprios destinos. A autora se sente movida por forças externas, o que gera um sentimento de impotência diante das escolhas que a vida impõe. Essa ideia ressalta a inevitabilidade das circunstâncias que moldam nossas vidas.

Luís de Camões (Portugal): "Os Lusíadas" lida com o destino e o controle sobre a própria vida.

Alice Ruiz: "A Bússola" explora o tema das escolhas e do destino.

Robert Frost (EUA): "The Road Not Taken" aborda a ideia de escolhas e como elas moldam nosso destino, refletindo a luta entre livre-arbítrio e destino.

Alfred Tennyson (Inglaterra): "The Charge of the Light Brigade" explora o tema do destino inevitável, onde os personagens são tragicamente levados a seguir caminhos que não escolheram.

Trova 6. Responsabilidade e Destino
A crítica à forma como as pessoas frequentemente culpam o destino por suas falhas revela uma reflexão sobre a responsabilidade pessoal. A autora destaca a tendência humana de transferir a culpa, sugerindo que a verdadeira competência reside na capacidade de reconhecer e aprender com os próprios erros.

Machado de Assis: "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro" abordam a responsabilidade pessoal e suas consequências.

Fábio de Melo: "A Vida é uma Viagem" e "As Coisas que Perdemos" discutem a responsabilidade nas escolhas da vida.

Langston Hughes (EUA): "Harlem" questiona o que acontece com os sonhos não realizados, refletindo sobre a responsabilidade pessoal em relação ao destino.

John Keats (Inglaterra): "Ode to a Nightingale" reflete sobre a fragilidade da vida e a necessidade de aceitar as consequências de nossas escolhas.

Trova 7. Diário e Desejos
O diário se torna um espaço onde os desejos não realizados ganham vida, simbolizando a frustração e a influência das decisões alheias. A ideia de "pagar o preço" das escolhas de outros reflete a luta interna entre o desejo pessoal e as imposições externas.

Cecília Meireles: "Motivo" expressa a luta entre desejos e a realidade. "Romanceiro da Inconfidência" explora as escolhas e a busca por liberdade, semelhante ao discurso de Mourthé sobre o destino.

Jorge Luis Borges (Argentina): Em seus contos e poemas, frequentemente reflete sobre o destino, as escolhas e as consequências, alinhando-se com a crítica de Mourthé sobre a responsabilidade em relação ao próprio destino.

Anne Sexton (EUA): "The Awful Rowing Toward God" explora a confissão e os desejos não concretizados, abordando a busca por significado.

Trova 8. Antiguidade e Ironia
A feira de antiguidades provoca reflexões sobre o valor da vida e a transitoriedade das coisas. A pergunta sobre comprar ou ser vendido sugere uma crítica à condição humana, questionando o que realmente valorizamos e o que estamos dispostos a sacrificar.

Olavo Bilac: "O Caçador de Esmeraldas" discute a passagem do tempo e o que se perdeu.

Mário Quintana: "A Rua dos Cataventos" e "O Aprendiz de Feiticeiro" falam sobre a ironia da vida e suas transições.

Marcel Proust (França): "Em Busca do Tempo Perdido" Proust reflete sobre a memória e o valor do passado, dialogando com a ironia da vida e do que valorizamos.

Philip Larkin (Inglaterra): "An Arundel Tomb" aborda a transitoriedade da vida e a ironia do que permanece, questionando o valor das coisas.

Trova 9. Amor e Separação
A dor da separação é um tema central, onde o amor se transforma em saudade. A figura do carteiro como mensageiro da dor simboliza a comunicação da ausência, enfatizando como o amor pode persistir mesmo na separação física.

Vinícius de Moraes: "Soneto de Separação" e "Eu Sei Que Vou Te Amar" captura a essência da dor do amor perdido, refletindo a saudade presente em Mourthé.

W.H. Auden (Inglaterra): "Funeral Blues" expressa a dor da perda e a saudade, ressoando com a experiência do amor e da separação.

Trova 10. Saudade e Existência
A luta entre estar vivo e sentir-se vivo retrata a experiência de viver sem a presença do outro. Essa tensão entre a existência física e a conexão emocional ressalta a profundidade da saudade, que pode tornar a vida vazia.

Carlos Drummond de Andrade: "Quadrilha" e "No Meio do Caminho" abordam a saudade e a existência.

Alfonsina Storni (Argentina): Em poemas como "Peso Ancestral" fala da angústia existencial e a luta interna das mulheres.

Charles Dickens (Inglaterra): "A Tale of Two Cities" é sobre a vida e a morte, a saudade e a luta pela existência em tempos difíceis.

Robert Frost (EUA): Em "Stopping by Woods on a Snowy Evening" medita sobre a vida, a morte e o que significa realmente viver.

Trova 11. Identidade e União
A confusão entre as identidades dos amantes sugere uma união tão profunda que desafia a noção de individualidade. Essa identificação mútua reflete a intensidade do amor, onde os limites entre duas pessoas se tornam indistintos.

O Soneto de Luís de Camões "Amor é fogo que arde sem se ver" explora a fusão de identidades no amor.

Marcelino Freire, com "Luz" fala sobre a conexão entre as pessoas.

Clarice Lispector: Embora seja mais prosas, suas reflexões sobre a identidade e a subjetividade em obras como "A Paixão Segundo G.H." ecoam as preocupações de Mourthé sobre a busca por identidade nas relações.

Nicanor Parra (Chile): Com seu "antipoema," desafia conceitos tradicionais de identidade e amor, refletindo sobre a complexidade das relações.

John Donne (Inglaterra): "A Valediction: Forbidding Mourning" contém a ideia de que dois amantes são um só, refletindo a união e a fusão da identidade.

E.E. Cummings (EUA): Em "I carry your heart with me" a interconexão profunda entre amantes captura a essência da identidade compartilhada.

Trova 12. Memórias e Expectativas
O retorno à capela é carregado de nostalgia, simbolizando o espaço onde a saudade habita. A expectativa da saudade no lugar do outro sugere que a memória é uma forma de presença, onde o passado se torna um espaço emocional contínuo.

Braulio Tavares: "Inquietação" lida com a nostalgia e as memórias.

Adélia Prado: Em sua obra, explora a memória e a vida cotidiana, refletindo sobre como as experiências moldam a identidade e as relações, de maneira similar à abordagem sa trovadora.

César Vallejo: "Os Heraldos Negros" explora a dor da ausência e a memória.

Mario Benedetti (Uruguai): Em poemas como "Te Quiero" fala sobre amor e lembranças, abrangendo a essência da saudade. Suas reflexões sobre o passado se conectam com a nostalgia presente nas trovas de Mourthé.

Marcel Proust (França): Novamente, Proust é fundamental, com sua exploração da memória em "Em Busca do Tempo Perdido" onde a saudade é uma constante na reflexão sobre o passado.

Walt Whitman (EUA): Em "When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd" fala sobre memória e perda, refletindo a conexão entre passado e presente.

Gabriela Mistral (Chile): "Sonetos da Morte," aborda a perda e a saudade de forma tocante, semelhante à forma como Mourthé explora a ausência e a memória.

Esses poetas e suas obras ajudam a contextualizar as trovas de Wanda de Paula Mourthé, mostrando como temas universais de amor, saudade, identidade e a condição humana são explorados em diferentes tradições literárias. Essa interconexão destaca a riqueza da experiência poética e a relevância contínua de tais temas ao longo do tempo e das culturas.

INFLUÊNCIAS NAS TROVAS DE MOURTHÉ

A sensibilidade e a intensidade emocional da poesia romântica, especialmente de poetas como Álvares de Azevedo e Castro Alves, são evidentes nas suas trovas, que frequentemente abordam temas como amor, saudade e melancolia.

A ruptura com formas tradicionais e a busca por novas expressões poéticas, características do modernismo brasileiro, influenciam sua linguagem. Autores como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade podem ser vistos como referências.

Poetas contemporâneos, como Adélia Prado e Hilda Hilst, também têm um papel significativo nas suas influências, especialmente em relação à exploração da subjetividade e das questões femininas.

A abordagem de temas de gênero e a busca por uma voz feminina forte em suas obras são influenciadas pelo movimento feminista, refletindo as lutas e experiências das mulheres na sociedade.

Elementos da música popular brasileira e do folclore influenciam a musicalidade de sua poesia, trazendo uma cadência lírica que ressoa com as tradições culturais do Brasil.

Suas vivências pessoais e emocionais, como a relação com a saudade, amor e a passagem do tempo, são fontes fundamentais de inspiração, tornando sua obra íntima e reflexiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Wanda de Paula Mourthé constituem uma teia poética que explora as complexidades da experiência humana. Cada trova revela uma profunda introspecção sobre temas universais como amor, saudade, identidade, escolhas e a condição humana. Esses temas não apenas repercutem nas vivências individuais, mas também capturam as nuances das relações sociais e emocionais que permeiam a vida cotidiana.

As trovas abordam a dualidade entre o ideal e a realidade, revelando um desejo de escapar das duras verdades da vida por meio das ilusões do sonho. A ironia e a crítica social presentes em suas palavras lançam luz sobre os absurdos do cotidiano, enquanto a angústia e a saudade permeiam a obra, convidando o leitor a pensar sobre a passagem do tempo e as perdas inevitáveis. Também explora a vulnerabilidade humana ao se sentir controlada pelas circunstâncias, questionando a responsabilidade nas escolhas que moldam o destino.

As influências da trovadora podem ser vistas em diálogos com poetas brasileiros como Cecília Meireles e Adélia Prado, que também revelam a profundidade emocional e a experiência feminina. No contexto internacional, a obra de Mourthé encontra ecos em poetas como Pablo Neruda e Sylvia Plath, que abordam temas como amor e angústia de maneira intensa e pessoal. Esses diálogos intertextuais enfatizam a universalidade das emoções e experiências retratadas, tornando sua obra relevante e conectada a tradições poéticas mais amplas.

A relevância das trovas se estende além do âmbito literário; elas oferecem uma reflexão crítica sobre a realidade contemporânea. Em um mundo frequentemente marcado por incertezas e desconexões, suas palavras evocam a necessidade de introspecção e empatia. A forma como ela lida com a saudade, a identidade e as relações interpessoais ressoa profundamente com as experiências de indivíduos em busca de sentido e conexão.

Para as futuras gerações, a sua obra serve como um convite à exploração de emoções e à valorização da subjetividade. Em tempos de superficialidade e pressa, as trovas lembram a importância de refletir sobre a vida, as escolhas e os laços que formamos. Através de sua poesia, não apenas documenta a condição humana, mas também oferece um espaço para que leitores de todas as idades se conectem com suas próprias experiências, promovendo um diálogo contínuo entre passado, presente e futuro.

Em suma, as trovas de Wanda de Paula Mourthé são um testemunho da riqueza da experiência humana, uma obra que transcende o tempo e o espaço, convidando todos a uma profunda reflexão sobre o que significa viver, amar e lembrar.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Trovadores Homenageados no Blog e suas trovas em preto & branco até 18 de setembro

01 – Arlindo Tadeu Hagen
02 – A. A. de Assis
03 – Carolina Ramos
04 – Cézar Augusto Defilippo
05 – Domitilla Borges Beltrame
06 – Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
07 – Edmar Japiassú Maia
08 – Edy Soares
09 – Fabiano Wanderley
10 – Filemon Francisco Martins
11 – Flávio Roberto Stefani
12 – Jérson Brito
13 – Jessé Fernandes Nascimento
14 – Lucília Alzira Trindade Decarli
15 – Luiz Antonio Cardoso
16 – Mara Melinni
17 – Messias da Rocha
18 – Nemésio Prata Crisóstomo
19 – Professor Garcia
20 – Renata Paccola
21 – Renato Alves
22 – Rita Marciano Mourão
23 – Therezinha Dieguez Brisolla
24 – Vanda Fagundes Queiróz
25 – Wanda de Paula Mourthé

Ao todo são 50 trovadores. Após a publicação do último haverá um link para acessar o e-book com todos os trovadores, de distribuição gratuita.

Até lá, acesse no Blog, no link

Antonio Juraci Siqueira (Ela)

Não me pergunte seu nome, quem é, de onde veio nem para onde foi. Não posso precisar nem mesmo a primeira vez que Ela apareceu. Tampouco deixou, ao partir, qualquer coisa que pudesse identificá-la. Chegava sempre sem aviso trazendo a noite nos cabelos negros e o dia na concha dos olhos claros, repletos de mar e sol. Sua visita era inconstante. Às vezes vinha dia após dia para sumir por semanas, meses até. De repente chegava. Chegava sem-mais-porquê e ficava ali, diante de mim. Indiferente a tudo, sem dizer nada. Uma palavra sequer. Ou talvez dissesse tudo através dos olhos enormes e impenetráveis. E eu, então, quedava-me mofino. Sem ação. Mundiado. Impotente. Sem forças para esboçar a menor das atitudes. Apenas ficávamos. Os dois. Um espreitando o outro. Meio de tocaia, feito caça e caçador. Às vezes Ela parecia sorrir. Sorriso de Mona Lisa. Enigmático. Nem mesmo sei se era sorriso. Parecia escárnio, fingimento, mágoa, desprezo ou sei-lá-o-quê.

Depois começou furtivamente a surrupiar pequenas coisas de mim. Um dia pegava uma palavra que eu havia acabado de rabiscar ou um verso inteiro. Outra hora, por qualquer descuido, roubava um gesto, um trejeito, um grão de voz. Eu fazia que não via para não melindrá-la, irritá-la, sei lá. Com o passar do tempo Ela foi tornando-se audaciosa e passou a bulir nos meus sentimentos. A cavoucar minha alma. Mexer no baú das minhas intimidades: das emoções vividas às empoeiradas recordações. Chegou mesmo a apropriar-se de um punhado de sonhos que eu mantinha guardados a sete chaves. E isso à luz do dia e ante meus olhos estarrecidos. E eu ia deixando. Talvez por medo de uma inesperada reação ou porque, apesar de tudo, não quisesse perdê-la. Sem mais, nem menos, amanhecia festiva, radiante, olhos brilhantes e juvenis. Anoitecia assim para alvorecer com cara de inverno. Fechava-se em si mesma como se vida ali não existisse. Estátua banhada de sombra e luz. Tudo isso foi, pouco a pouco, minando minha alma, corroendo meus pensamentos, embaralhando meus sentimentos a ponto de não mais saber ao certo o que sentia por Ela: amor, ódio, pena, temor, mágoa, desejo... É, talvez fosse desejo. Um desejo louco de possuí-la. Desejo desabrochado na manhã que a vi despida através da porta entreaberta do meu delírio. Bela! Indescritivelmente bela! Ela conhecia minhas fraquezas e, maliciadamente, alimentava minhas fantasias com migalhas de concessões. Às vezes chegava aflorando o generoso decote para que eu pudesse devorá-lo com os olhos famintos. Gostava de sentar-se diante de mim cruzando e descruzando, maliciosamente as pernas enquanto corria a língua insinuante entre os lábios carnudos como num convite. Nunca a toquei. Em sua presença ardia em febre e cio mas uma força misteriosa, na mesma proporção da que me prendia a Ela, dela me repelia. Até que um dia, da maneira que chegara, começou a partir. Começou é o termo exato. A primeira coisa a desaparecer foi o seu sorriso. Em seguida seus olhos foram, lentamente, apagando, apagando até desaparecerem por completo. Seus lábios, rosadamente belos, esmaeceram até nada mais restar além da saudosa lembrança. Por último - meu Deus! - seu decote, qual translúcido fantasma também evaporarou ante minhas retinas desgraçadamente exaustas. E foi assim: da mesma maneira que chegou, inexplicavelmente se foi. Mas não se foi sozinha: afundou-se em seus mistérios levando consigo parte de mim.

À época não atinava o porquê de sua presença. Hoje, depois de perder-me no emaranhado matagal dos seus mistérios, talvez saiba mais dEla do que de mim. Ou do pouco que restou de mim. Mas, ao contrário do que você deve estar pensando, não enlouqueci. Nunca estive tão lúcido quanto neste momento em que mal traço estas linhas. Apenas me escondo entre metáforas para que não descubras toda a verdade que permeia estes escritos. É que a verdade nem sempre é agradável aos olhos e ao coração. Mas não duvides de tudo nem te deixes seduzir pelas imagens, por mais belas que sejam. Ou como disse o poeta: “Põe tento nas ardilosas/armadilhas dos caminhos /que há mentiras que são rosas, /verdades que são espinhos” Isso posto, um aviso: não cortes a leitura ao meio pois na esquina da próxima página ou na curva da linha seguinte poderás encontrar a resposta para tuas inquietações. Ou, quem sabe, o caminho por onde Ela fatalmente te encontrará. Num instante preciso, do nada ( ou de tudo) Ela poderá aparecer. Talvez esteja agora mesmo te espreitando por detrás de uma palavra mal dita ou na entrelinha final desta insólita viagem aos confins de mim.

Vereda da Poesia = 113


Trova de 
ELISABETE DO AMARAL AGUIAR
Mangualde/ Portugal

Com canto combate o pranto
e a treva em que a Terra jaz;
em cada canto e recanto
cante-se a Visão da Paz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Tenho tantas perguntas 
O tempo dá-me as respostas possíveis 
Não necessariamente aquelas
Que mais gostaria de escutar 
Sinto-te e quero-te...
Um querer tão forte que provoca um aperto
Nesta ambivalência onde me sou inteiro
E onde também estás em completude.
Confio no universo 
Num caminho de sinais
Acreditando que nem tudo tem resposta plausível 
Sei que algo virá 
Que em momento certo acontecerá 
Desejos abraçados, corpos unificados
Um sentimento único, não mensurável.
Quero-te tanto
Nesta consciência que dói
Nesta realidade de saber que preciso 
Libertar as asas da tua felicidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de 
VICTOR BATISTA
Barreiro/Portugal

Todo o tempo duma vida
que passamos neste mundo,
é nos dado p’la medida
de horas, minutos, segundos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
TIAGO
(António Barradas Barroso)
Paredes/ Portugal

Sinais da Idade

O verso já não flui com à vontade,
As rugas, o meu rosto, vão sulcando,
A noite, já mais cedo, está chegando,
E há mais recordações da mocidade.

No peito, cresce, agora, uma saudade,
Cabelos brancos há, mas rareando,
E, aos poucos, um inverno se instalando,
Promessas de trovões e tempestade.

Sinais, tantos sinais que a vida dá,
Que vão surgindo aqui, ou acolá,
Mas sempre com condão, ou com virtude

De esclarecer, em mim, grande dilema,
Devo, ou não, elaborar novo poema
Se inda há, no pensamento, juventude?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS (1932 – 2013) São Paulo/SP

Ao ser preso, o vigarista,
explica, muito matreiro:
- Sou apenas cientista,
faço "clones" de... dinheiro!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
EUGÊNIO DE SÁ
Sintra/ Portugal

Ontem...

Ontem, perdi as ilusões de ser feliz
Pensei... que depois do adeus, te veria de volta
Mas, bárbaro destino; nenhum de nós o quis!

Depois de ontem...

Ontem, esquecido o norte, barco à solta
Sem leme, sem vontade a dar-me rumo
Já nem um esgar assumo, de revolta.

Um ano depois de ontem...

Ontem, vi-te num bar; queres um café?
Como vai tua vida, estás feliz?
E as mãos se deram, sem saber porquê.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

O pouco que Deus nos deu
cabe numa mão fechada;
o pouco com Deus é muito,
o muito sem Deus é nada.
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Soneto de
TITO OLÍVIO 
Faro/ Portugal

Meu Futuro

Vou pintar meu futuro de esperança
E pôr-lhe asas azuis, da cor do céu,
Para atingir o sol, se houver bonança,
Sem ninguém ver, oculto por um véu.

Será, porque assim quero, apenas meu,
Já que o passado foi, desde criança,
Luta minha, que a sorte pouco deu,
Mas passei a ter já mais confiança.

Quero beber a luz de cada aurora,
Chorar cada minuto de demora
P’las coisas que no tempo já perdi.

Não sei quanto me resta. Quero só,
Até ser finalmente outra vez pó,
Gozar tudo o que ainda não vivi.
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Trova de 
ZAÉ JUNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Na infância a gente brincava,
eu de sol, você de lua ...
e o universo começava
e acabava em nossa rua!
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Poema de 
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

A lua e o sol 

Esta noite a lua não está cheia
Nem é lua nova
Pode ser meia-lua ou quarto minguante
Não sei distinguir

A lua só aparece quando quer
Por vezes esconde-se por detrás das nuvens

A lua é inconstante
Assim como o sol

São irreverentes
Têm vontade própria
E brilham à sua maneira
Mas podem ser amigos a vida inteira

Encontram-se poucas vezes…

Quando o sol caminha para outro lugar
A lua aparece já sem tempo para o abraçar

Mas, quando se querem abraçar
ou encontrar-se mais perto
Existe a eclipse lunar
e, a terra não os deixa abraçar

A lua e o sol comandam as marés…

A lua não pode ter o sol a seus pés
O sol é movido pelo sentimento das marés

São distintos, fortes e frágeis
Belos elementos da natureza
Furacão, sentimento e beleza

O sol e a lua são seres potentes
Enigmáticos
Seres únicos na natureza!
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Trova de
EDUARDO A. O. TOLEDO
Pouso Alegre/MG

Neném... Zé Gordo... Tuinha...
Zeca saci... (Que distância!)
- Cadê a turma que eu tinha
na rua da minha infância"?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Dobradinha Poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes/PR

Pés andarilhos

O trem sua meta alcança,
girando as rodas nos trilhos…
Meu caminhar que, hoje, avança,
conta com pés andarilhos!

Não sei dizer, quanto em quilometragem,
nem quantas as estradas percorridas...
Posso afirmar: depois de longa viagem
meus pés estão dispostos a outras idas.

Sendo andarilhos, levam na bagagem
minhas vitórias — poucas — conseguidas;
também derrotas, e essa desvantagem
é que impulsiona para mais corridas!

“Tanta importância dada aos pés, no entanto,
parece injusta e traz calado espanto
a um corpo, quase todo" — alguém diria.

Lembro que, ao corpo, dão sustentação
e exalto, aqui, o poder: locomoção...
Porque sem pés, andar não poderia!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de 
FERREIRA NOBRE
Fortaleza/CE

Pelas ruas nas andanças
há muita gente que esquece
de buscar as esperanças
no santuário da prece.
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Poema de
ISIDORO CAVACO 
Faro/ Portugal

Sonho Louco

És a luz no infinito
E o sonho em que acredito
Poder contigo encontrar;
Faço poemas na rua
Com os retalhos de Lua
Que vejo no teu olhar.

Grito mais alto que o vento
Porque trago em pensamento
Esse amor que tanto quero,
Neste silêncio que é meu,
Onde apenas vivo eu
E a toda a hora te espero.

Dizer que te amo é pouco
Ao viver meu sonho louco
Numa ilusão permanente;
Até nas ondas do mar
Eu oiço pronunciar
Teu nome constantemente.

Tenho na alma esculpida
Essa tua imagem qu’rida,
Que já não posso apagar
Deste meu destino estreito,
Que vegeta no meu peito
Sem asas para voar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Enquanto a mente divaga,
  vou na jangada a sonhar,
  mas nenhum sonho naufraga
  nas tempestades do mar.
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Soneto de
DANTE MILANO
Rio de Janeiro/RJ (1899 -1991) Petrópolis/RJ

Divagação

Penso, para esquecer... Apenas vivo
Aquilo que me passa pela mente
E se vai desdobrando interiormente
Em forma de soneto pensativo.

Invento — não existe — algum motivo.
Como quem escrevendo à amada ausente
Imagina maior o amor que sente,
— Oh, tudo o que há no amor de descritivo —

Como o que ama de longe, assim pareço.
E ao me lembrar de tudo quanto esqueço,
(O voo da ave é uma existência à-toa?)

Escrevo a minha vida que se esfuma
Na distância... — Ah, bem sei que habito numa
Bola que rola e piso um chão que voa...
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Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Vê o boneco em sua cama
e arma o maior alarido!
O "banana de pijama"
é um clone... do seu marido!!!
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Poema de 
CREMILDE VIEIRA DA CRUZ 
Lisboa/Portugal

Embrulho

Embrulhei-me num embrulho,
Fiquei assim embrulhada.
Quis desfazer o embrulho,
Mas fiquei mais embrulhada.

Pus o embrulho num canto,
Perdi o canto do embrulho.
Fiz de tudo uma embrulhada,
Perdi até o meu canto;

Ficou dentro do embrulho.
Ando assim desesperada,
À procura do embrulho!
De campainha na mão,

Subo escada, desço escada,
Chamo, chamo, pelo embrulho,
Espreito pelo corrimão,
vejo só uma embrulhada.
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Trova de 
ANTONIO COLAVITE FILHO
Santos/SP

Na terra bem preparada,
este ponto eu não discuto:
- A semente bem plantada
traz esperança de fruto !
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Soneto de 
MÁRIO ZAMATARO
Curitiba/PR

A coisa do povo

Que coisa estranha o legado deste povo...
É coisa sua e quem usa a sua coisa
é outro alheio senhor da coisa alheia
apoderado das coisas do poder

E a coisa feia é pintada como linda
emoldurada em tecido corrompido
onde a pobreza é disfarce da miséria
e onde a verdade é forjada na caneta

Coisa tomada por quem quer ter direito
e é tão suspeito e comete o vão delito
à luz do dia ou da noite tanto faz

Coisa perversa que ecoa no silêncio
e que malversa a ilusão de ser feliz
enquanto a pública rês rumina morte
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Trova de 
MOREIRA LOPES
Maranguape/CE

Acalento tanto sonho
dos meus tempos de criança
que me conservo risonho
e repleto de esperança.
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Hino de Muitos Capões/RS

Ascende a chama do nosso Planalto
Capoense do Sul altaneiro
Esta querência que leva o reponte
Campeirismo na voz do rodeio.

Irmanados nos pagos que acampa
Na essência nativa da terra
Simbolizando a cultura gaúcha
Nestes campos de cima da serra.

Soberano Patrão das alturas
Que a nós estendeu orações
Abençoe as águas do Saltinho
Natureza de Muitos Capões.

E o campo tem muitas riquezas
Araucária nasceu o pinhão
Na certeza de um novo amanhã
Houve sempre o cantar do charão.

Na certeza de um novo amanhã
Houve sempre o cantar do charão
Cavalhadas, festas de rodeio
Patrão do tempo no lombo da história.

Tradição de um povo serrano
Que o Rio Grande guarda na memória
Este pago serrano garboso
Hospitaleiro, sem luxo.

Muitos Capões cavalga rumo ao futuro
Exaltando seu pampa gaúcho
Muitos Capões cavalga rumo ao futuro
Exaltando seu pampa gaúcho.

Soberano Patrão das alturas
Que a nós estendeu orações
Abençoe as águas do Saltinho
Natureza de Muitos Capões
E o campo tem muitas riquezas.

Araucária nasceu o pinhão
Na certeza de um novo amanhã
Houve sempre o cantar do charão

Na certeza de um novo amanhã
Houve sempre o cantar do charão.
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Com que ternura e altivez 
luta a mãe pobre e sem brilho 
para ao fim de cada mês 
pagar os sonhos do filho!
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Soneto de 
EMÍLIO DE MENESES
Curitiba/PR , 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

Sai... azar!

Seis horas. Estação da Leopoldina.
Tomo o trem. Mal me abanco, uma velhota,
De setenta anos, fala, sopra, arrota,
Numa desenvoltura de menina.

Quero ler. A carcaça, de voz fina,
Tanto fala e me diz tanta lorota,
Que, na raiva, o jornal se me amarrota
E ainda o raio da velha me bolina.

Quero fugir. A peste me segura.
Por pouco mais me torno um assassino.
Sinto que passa um vento de loucura.

E julgo ver que, em meio ao desatino,
Eu era da polícia a atroz figura,
E a velha era a figura do Aurelino.
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Trova da Princesa dos Trovadores 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Quem não sabe, quem não sente
que às vezes nos custa caro
essa audácia de ser gente,
quando ser gente é tão raro? 
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O urso e o amador de jardins

Em um bosque solitário
De funda mudez sombria.
Por lei do destino vário
Oculto um urso vivia.

Podia perder, coitado,
O juízo; vem dele a míngua
Ao que se vê isolado
Sem ter com quem dar à língua.

É muito bom o falar,
O calar-se ainda é melhor.
Dos sistemas no abusar
É que se encontra o pior.

Como no bosque recurso
Para conversar não achava,
Aborreceu-se o nosso urso
Da vida que ali levava.

E enquanto em melancolias
Ia consumindo o alento,
Não longe passava os dias
Um velho em igual tormento.

O velho amava os jardins
Que a capricho Flora esmalta:
Belo emprego, mas dos ruins
Quando um bom amigo falta.

E cansado de viver
Com gente que muda nasce,
Meteu-se a caminho, a ver
Se achava com quem falasse.

Ora, quando o velho ia
Saindo para a jornada,
Do bosque o urso saía
Levando a mesma fisgada.

Encontraram-se — era cedo —
E o velho, como é de crer,
Teve do urso grande medo
Como teria qualquer.

Mas por fim, julgando-o manso,
Com ele simpatizou:
«Queres jantar com descanso
No meu lar?» Ele aceitou.

Comeram; de alma no centro
Nenhum receou perigos;
E ficam portas a dentro
Vivendo os dois como amigos.

O velho as flores regava,
Com que muito se entretinha;
O urso saía, caçava
E abastecia a cozinha.

E tanto afeto exibia,
Embora em maneiras toscas,
Que quando o velho dormia,
Até lhe enxotava as moscas.

Mas um moscardo* maldito
Apareceu, tão ruim,
Que o urso se viu aflito
Para conseguir o seu fim;

E, de raiva furioso,
Agarra num matacão*,*
E esborrachou o teimoso...
Sobre a tola*** do patrão!...

A mil iguais fulanejos****
Lance a Parca a dura foice:
Querem encher-nos de beijos,
E o que dão, por fim, é coice!
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* Moscardo = moscão.
** Matacão = Grande pedra solta, arredondada
*** Tola = não achei significado, creio ser “cabeça”, “cachola”. (JF)
**** Fulanejos = fulanos quaisquer