domingo, 15 de setembro de 2024

Recordando Velhas Canções (Ai, que saudades da Amélia)


(samba, 1942)
Compositor: Ataulfo Alves

Nunca vi fazer tanta exigência 
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudades da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Mas quando me via contrariado
Dizia: meu filho, o que se há de fazer ?

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era a mulher de verdade

A Nostalgia de uma Mulher Idealizada em 'Ai, Que Saudades da Amélia'
A música 'Ai, Que Saudades da Amélia', composta por Ataulfo Alves e imortalizada na voz de Mário Lago, é um clássico do samba brasileiro que retrata a figura de uma mulher idealizada, Amélia, em contraste com as mulheres da época em que a canção foi lançada, na década de 1940. A letra expressa a nostalgia de um homem que se ressente das exigências de sua atual companheira, comparando-a com a submissão e simplicidade de Amélia, que ele considera o parâmetro de 'mulher de verdade'.

A canção utiliza a figura de Amélia como uma metáfora para discutir as mudanças nos papéis sociais das mulheres. Amélia é descrita como alguém que aceitava passar necessidades sem reclamar, valorizando a resignação e a falta de vaidade como virtudes femininas. A letra reflete um saudosismo de uma época em que as expectativas em relação às mulheres eram de total dedicação ao lar e ao parceiro, sem aspirações pessoais de luxo ou riqueza. A música, portanto, pode ser vista como um comentário sobre as tensões geradas pelas transformações nos costumes e na dinâmica de relacionamentos.

É importante notar que, apesar de 'Ai, Que Saudades da Amélia' ser frequentemente interpretada como uma ode à mulher tradicional, a canção também pode ser entendida como uma crítica à idealização da mulher e à desvalorização de suas aspirações e necessidades. A Amélia da música é um ideal inatingível e, possivelmente, uma crítica à expectativa irreal que a sociedade impõe sobre o comportamento feminino. A canção se tornou um marco na cultura brasileira, sendo regravada por diversos artistas e permanecendo relevante como um retrato de seu tempo e como ponto de reflexão sobre as relações de gênero.

"Ai Que Saudades da Amélia" tem três personagens: o protagonista, sua mulher e Amélia, a mulher que ele perdeu. O tema é um confronto dos defeitos da mulher atual com as qualidades da mulher anterior. A atual, a quem o protagonista se dirige, é exigente, egoísta, "Só pensa em luxo e riqueza", enquanto a anterior é um exemplo de virtude e resignação - "Amélia não tinha a menor vaidade, (...) achava bonito não ter o que comer... '. Em suma, a primeira é o presente, a realidade incontestável; a segunda é o passado, uma saudade idealizada na figura da mulher perfeita, pelos padrões da época.

Este primoroso poema popular, coloquial espontâneo, escrito por Mário Lago , recebeu de Ataulfo Alves uma de suas melhores melodias, que expressa musicalmente o espírito da letra. E o paradoxal é que não sendo carnavalesco, este samba fez estrondoso sucesso no carnaval.

Segundo Mário Lago, "Amélia nasceu de uma brincadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que sempre que se falava em mulher costumava brincar - 'Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava..."'. Então, Mário achou que aquilo dava samba e fez a letra inicial de "Ai Que Saudades da Amélia". Brincadeiras à parte, a verdade é que a Amélia do Almeidinha existiu e, possivelmente, ainda vivia à época da canção. Era uma antiga lavadeira que serviu à sua família. Morava no subúrbio do Encantado (Zona Norte do Rio) e trabalhava para sustentar uma prole de nove ou dez crianças.

Com a letra pronta, Mário pediu a Ataulfo Alves para musica-la. O compositor executou a tarefa, mas alterou algumas palavras e aumentou o número de versos de doze para quatorze. "Isso é natural" - comentava Ataulfo, em depoimento para o MIS do Rio de Janeiro, em 17.11.65 -, "as composições dos parceiros que são letristas sofrem influência minha, que sou autor de letra e música. Mas o Mário não gostou. E não adiantou dizer que a música me obrigara a fazer as modificações". De qualquer maneira, como o samba estava bom, ficaram valendo as alterações.

Começou então a batalha da gravação. Ataulfo ofereceu "Amélia" em vão a vários cantores, inclusive a Orlando Silva. Como ninguém queria gravá-la, gravou-a ele mesmo na Odeon, no dia 27.11.41, acompanhado por um improvisado conjunto, batizado de Academia de Samba. Convidado na hora, Jacó do Bandolim participou dessa gravação, tocando cavaquinho, sendo sua a introdução.

Lançado no suplemento de janeiro de 1942, "Ai Que Saudades da Amélia" foi conquistando aos poucos a preferência do público, graças, principalmente, a uma intensa atuação de Ataulfo junto às rádios. Relembra Mário Lago que o locutor Júlio Louzada chegou a dedicar, na Rádio Educadora, uma tarde inteira de domingo a "Amélia", com entrevistas e o disco tocando dezenas de vezes. O resultado é que às vésperas do carnaval, quando houve o concurso para escolher o melhor samba, "Ai Que Saudades da Amélia" dividia o favoritismo com "Praça Onze", de Herivelto Martins e Grande Otelo. Realizado no estádio do Fluminense, este concurso reuniu uma enorme plateia que, de acordo com o regulamento, elegeria por aplauso os vencedores.

Precedendo "Amélia", apresentou-se "Praça Onze", valorizada por um verdadeiro show, preparado por Herivelto. Primeiro foram mostrados os instrumentos, explicando-se as funções de cada um; em seguida, vieram as passistas, um grupo sensacional de mulatas rebolando; e, finalmente, cantou-se o samba, que levou a platéia ao delírio, dando a impressão de que o certame já estava decidido. Acontece, porém, que "Amélia" também tinha seus trunfos. Tim e Carreiro, amigos de Mário e craques do time do Fluminense, que acabara de ganhar o bicampeonato carioca de futebol, haviam feito um excelente trabalho junto à torcida tricolor.

Para completar, no momento da apresentação, Mário Lago subiu ao palco e, num rasgo de eloquência e demagogia, fez um discurso emocionante, proclamando "Amélia" símbolo da mulher brasileira. Assim, quando Ataulfo e suas pastoras começaram a cantar o estádio veio abaixo, praticamente exigindo a vitória dos dois sambas. Sem a possibilidade de desempatar, o presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça - por coincidência, casado com uma "Amélia", a poeta Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça - autorizou o pagamento em dobro do prêmio de campeão a "Ai Que Saudades da Amélia" e "Praça Onze", cada um recebendo como se tivesse ganho sozinho.
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.

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