quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Trovadora Homenageada do Dia: Wanda de Paula Mourthé (Trovas em preto e branco)


1
A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
2
– Barata em pinga?! Que horror!
E a garçonete “sensata”:
– Mas não pediu o senhor
a cachaça mais barata?
3
Chega bêbado… sequer
distingue um rosto e malogra:
dá alguns tapas na mulher
e muitos beijos na sogra!
4
Esta angústia indefinida,
que sempre à noite me invade,
são sombras próprias da vida
ou disfarces da saudade?
5
Forçada a escolhas na vida
- teatro que não domino
fui marionete movida
pelos cordéis do destino!
6
Gente que escolhe sem tino
as propostas da existência,
quando erra, culpa o destino
pela própria incompetência.
7
Meu diário! Em tuas folhas
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
8
Na feira de antiguidade,
ao ancião combalido
perguntam, não sem maldade:
-Vem comprar ou ser vendido? 
9
O destino traiçoeiro
separou-nos, sem piedade,
mas o amor fez do carteiro
o porta-voz da saudade.
10
Partiu... nem disse o motivo,
e eu, da saudade à mercê,
estou vivo, mas não vivo,
pois não vivo sem você.
11
Tanto amor e afinidade
entre nós dois, já se vê,
que perdi a identidade:
eu sou eu... ou sou você?
12
Volto à capela em que, um dia
me esperaste ao pé do altar...
E hoje a saudade, em magia,
me espera no teu lugar...

As Trovas de Wanda em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS DE DIVERSAS ÉPOCAS

Trova 1. Mundo Ideal vs. Realidade
A trovadora expressa um anseio por escapar das duras verdades da vida cotidiana, preferindo as ilusões e mentiras reconfortantes dos sonhos. Essa oposição entre o ideal e o real reflete uma busca por significado e felicidade em um mundo muitas vezes cruel.

Fernando Pessoa (Portugal): "Tabacaria" e "Autopsicografia" exploram a busca por realidades alternativas e a criação de personas.

Adélia Prado: "A Casa" e "Oração" refletem a busca por um sentido mais profundo na vida e a valorização do sonho.

Walt Whitman (EUA): "Song of Myself" celebra a liberdade e a individualidade, criando um mundo de possibilidades que contrasta com as limitações da vida cotidiana.

Charles Baudelaire (França): "A Une Passante" reflete sobre a efemeridade e a busca por beleza em meio ao desencanto da vida urbana, capturando a tensão entre ideal e real.

Trova 2. Humor e Crítica
A cena com a garçonete revela a ironia da situação com humor, destacando uma crítica social sobre as condições de vida e as expectativas de consumo. A pergunta retórica sobre a bebida mais barata expõe a absurdidade das escolhas feitas em momentos de necessidade.

Gregório de Matos: "Agradecimento" utiliza humor e crítica social.

Marcelino Freire: "Contos Negreiros" aborda a crítica social com um tom irônico.

T.S. Eliot (Inglaterra): "The Love Song of J. Alfred Prufrock" utiliza humor e ironia para criticar a sociedade e as expectativas, refletindo as absurdidades do cotidiano.

Dorothy Parker (EUA): Em seus poemas e contos, frequentemente satiriza as convenções sociais, abordando com humor as dificuldades da vida moderna.

Trova 3. Violência e Confusão
Trova humorística onde a embriaguez é um símbolo da confusão e do desespero nas relações. A imagem do homem que confunde a sogra com a esposa ilustra a desorientação emocional e a violência que pode surgir em ambientes familiares, sublinhando a fragilidade das dinâmicas pessoais.

Alberto de Oliveira: "O Último Beijo" fala sobre a confusão emocional e as consequências do amor.

Hilda Hilst: "A Obscena Senhora D" lida com a brutalidade nas relações.

Sylvia Plath (EUA/Inglaterra): "Daddy" explora a violência emocional e a confusão, trazendo à tona a complexidade das relações familiares e o impacto psicológico.

Charles Bukowski (EUA): "The Most Beautiful Woman in Town" retrata a brutalidade das relações e a autodestruição que pode surgir da embriaguez e da

Trova 4. Angústia e Saudade
A angústia é apresentada como uma presença constante, questionando se essas sombras são reflexos da vida ou da saudade. Essa dualidade sugere que a dor da ausência é intrínseca à experiência humana, revelando um estado emocional profundo.

Álvares de Azevedo: "Noite de Luar" fala sobre a melancolia e a saudade.

Marina Colasanti: "A Mulher que Aprendeu a Ver" reflete sobre a angústia e a memória.

Octavio Paz (México): "Piedra de Sol" explora a angústia e a busca por significado, ressoando com as inquietações presentes nas trovas de Mourthé.

Emily Dickinson (EUA): "I felt a Funeral, in my Brain" enfatiza a angústia e a introspecção, refletindo sobre a própria condição humana e a saudade da vida.

Paul Verlaine (França): "Chanson d'automne" expressa melancolia e saudade, capturando a passagem do tempo e a dor da perda.

Trova 5. Marionete do Destino
A metáfora da marionete sugere a falta de controle sobre os próprios destinos. A autora se sente movida por forças externas, o que gera um sentimento de impotência diante das escolhas que a vida impõe. Essa ideia ressalta a inevitabilidade das circunstâncias que moldam nossas vidas.

Luís de Camões (Portugal): "Os Lusíadas" lida com o destino e o controle sobre a própria vida.

Alice Ruiz: "A Bússola" explora o tema das escolhas e do destino.

Robert Frost (EUA): "The Road Not Taken" aborda a ideia de escolhas e como elas moldam nosso destino, refletindo a luta entre livre-arbítrio e destino.

Alfred Tennyson (Inglaterra): "The Charge of the Light Brigade" explora o tema do destino inevitável, onde os personagens são tragicamente levados a seguir caminhos que não escolheram.

Trova 6. Responsabilidade e Destino
A crítica à forma como as pessoas frequentemente culpam o destino por suas falhas revela uma reflexão sobre a responsabilidade pessoal. A autora destaca a tendência humana de transferir a culpa, sugerindo que a verdadeira competência reside na capacidade de reconhecer e aprender com os próprios erros.

Machado de Assis: "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro" abordam a responsabilidade pessoal e suas consequências.

Fábio de Melo: "A Vida é uma Viagem" e "As Coisas que Perdemos" discutem a responsabilidade nas escolhas da vida.

Langston Hughes (EUA): "Harlem" questiona o que acontece com os sonhos não realizados, refletindo sobre a responsabilidade pessoal em relação ao destino.

John Keats (Inglaterra): "Ode to a Nightingale" reflete sobre a fragilidade da vida e a necessidade de aceitar as consequências de nossas escolhas.

Trova 7. Diário e Desejos
O diário se torna um espaço onde os desejos não realizados ganham vida, simbolizando a frustração e a influência das decisões alheias. A ideia de "pagar o preço" das escolhas de outros reflete a luta interna entre o desejo pessoal e as imposições externas.

Cecília Meireles: "Motivo" expressa a luta entre desejos e a realidade. "Romanceiro da Inconfidência" explora as escolhas e a busca por liberdade, semelhante ao discurso de Mourthé sobre o destino.

Jorge Luis Borges (Argentina): Em seus contos e poemas, frequentemente reflete sobre o destino, as escolhas e as consequências, alinhando-se com a crítica de Mourthé sobre a responsabilidade em relação ao próprio destino.

Anne Sexton (EUA): "The Awful Rowing Toward God" explora a confissão e os desejos não concretizados, abordando a busca por significado.

Trova 8. Antiguidade e Ironia
A feira de antiguidades provoca reflexões sobre o valor da vida e a transitoriedade das coisas. A pergunta sobre comprar ou ser vendido sugere uma crítica à condição humana, questionando o que realmente valorizamos e o que estamos dispostos a sacrificar.

Olavo Bilac: "O Caçador de Esmeraldas" discute a passagem do tempo e o que se perdeu.

Mário Quintana: "A Rua dos Cataventos" e "O Aprendiz de Feiticeiro" falam sobre a ironia da vida e suas transições.

Marcel Proust (França): "Em Busca do Tempo Perdido" Proust reflete sobre a memória e o valor do passado, dialogando com a ironia da vida e do que valorizamos.

Philip Larkin (Inglaterra): "An Arundel Tomb" aborda a transitoriedade da vida e a ironia do que permanece, questionando o valor das coisas.

Trova 9. Amor e Separação
A dor da separação é um tema central, onde o amor se transforma em saudade. A figura do carteiro como mensageiro da dor simboliza a comunicação da ausência, enfatizando como o amor pode persistir mesmo na separação física.

Vinícius de Moraes: "Soneto de Separação" e "Eu Sei Que Vou Te Amar" captura a essência da dor do amor perdido, refletindo a saudade presente em Mourthé.

W.H. Auden (Inglaterra): "Funeral Blues" expressa a dor da perda e a saudade, ressoando com a experiência do amor e da separação.

Trova 10. Saudade e Existência
A luta entre estar vivo e sentir-se vivo retrata a experiência de viver sem a presença do outro. Essa tensão entre a existência física e a conexão emocional ressalta a profundidade da saudade, que pode tornar a vida vazia.

Carlos Drummond de Andrade: "Quadrilha" e "No Meio do Caminho" abordam a saudade e a existência.

Alfonsina Storni (Argentina): Em poemas como "Peso Ancestral" fala da angústia existencial e a luta interna das mulheres.

Charles Dickens (Inglaterra): "A Tale of Two Cities" é sobre a vida e a morte, a saudade e a luta pela existência em tempos difíceis.

Robert Frost (EUA): Em "Stopping by Woods on a Snowy Evening" medita sobre a vida, a morte e o que significa realmente viver.

Trova 11. Identidade e União
A confusão entre as identidades dos amantes sugere uma união tão profunda que desafia a noção de individualidade. Essa identificação mútua reflete a intensidade do amor, onde os limites entre duas pessoas se tornam indistintos.

O Soneto de Luís de Camões "Amor é fogo que arde sem se ver" explora a fusão de identidades no amor.

Marcelino Freire, com "Luz" fala sobre a conexão entre as pessoas.

Clarice Lispector: Embora seja mais prosas, suas reflexões sobre a identidade e a subjetividade em obras como "A Paixão Segundo G.H." ecoam as preocupações de Mourthé sobre a busca por identidade nas relações.

Nicanor Parra (Chile): Com seu "antipoema," desafia conceitos tradicionais de identidade e amor, refletindo sobre a complexidade das relações.

John Donne (Inglaterra): "A Valediction: Forbidding Mourning" contém a ideia de que dois amantes são um só, refletindo a união e a fusão da identidade.

E.E. Cummings (EUA): Em "I carry your heart with me" a interconexão profunda entre amantes captura a essência da identidade compartilhada.

Trova 12. Memórias e Expectativas
O retorno à capela é carregado de nostalgia, simbolizando o espaço onde a saudade habita. A expectativa da saudade no lugar do outro sugere que a memória é uma forma de presença, onde o passado se torna um espaço emocional contínuo.

Braulio Tavares: "Inquietação" lida com a nostalgia e as memórias.

Adélia Prado: Em sua obra, explora a memória e a vida cotidiana, refletindo sobre como as experiências moldam a identidade e as relações, de maneira similar à abordagem sa trovadora.

César Vallejo: "Os Heraldos Negros" explora a dor da ausência e a memória.

Mario Benedetti (Uruguai): Em poemas como "Te Quiero" fala sobre amor e lembranças, abrangendo a essência da saudade. Suas reflexões sobre o passado se conectam com a nostalgia presente nas trovas de Mourthé.

Marcel Proust (França): Novamente, Proust é fundamental, com sua exploração da memória em "Em Busca do Tempo Perdido" onde a saudade é uma constante na reflexão sobre o passado.

Walt Whitman (EUA): Em "When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd" fala sobre memória e perda, refletindo a conexão entre passado e presente.

Gabriela Mistral (Chile): "Sonetos da Morte," aborda a perda e a saudade de forma tocante, semelhante à forma como Mourthé explora a ausência e a memória.

Esses poetas e suas obras ajudam a contextualizar as trovas de Wanda de Paula Mourthé, mostrando como temas universais de amor, saudade, identidade e a condição humana são explorados em diferentes tradições literárias. Essa interconexão destaca a riqueza da experiência poética e a relevância contínua de tais temas ao longo do tempo e das culturas.

INFLUÊNCIAS NAS TROVAS DE MOURTHÉ

A sensibilidade e a intensidade emocional da poesia romântica, especialmente de poetas como Álvares de Azevedo e Castro Alves, são evidentes nas suas trovas, que frequentemente abordam temas como amor, saudade e melancolia.

A ruptura com formas tradicionais e a busca por novas expressões poéticas, características do modernismo brasileiro, influenciam sua linguagem. Autores como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade podem ser vistos como referências.

Poetas contemporâneos, como Adélia Prado e Hilda Hilst, também têm um papel significativo nas suas influências, especialmente em relação à exploração da subjetividade e das questões femininas.

A abordagem de temas de gênero e a busca por uma voz feminina forte em suas obras são influenciadas pelo movimento feminista, refletindo as lutas e experiências das mulheres na sociedade.

Elementos da música popular brasileira e do folclore influenciam a musicalidade de sua poesia, trazendo uma cadência lírica que ressoa com as tradições culturais do Brasil.

Suas vivências pessoais e emocionais, como a relação com a saudade, amor e a passagem do tempo, são fontes fundamentais de inspiração, tornando sua obra íntima e reflexiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Wanda de Paula Mourthé constituem uma teia poética que explora as complexidades da experiência humana. Cada trova revela uma profunda introspecção sobre temas universais como amor, saudade, identidade, escolhas e a condição humana. Esses temas não apenas repercutem nas vivências individuais, mas também capturam as nuances das relações sociais e emocionais que permeiam a vida cotidiana.

As trovas abordam a dualidade entre o ideal e a realidade, revelando um desejo de escapar das duras verdades da vida por meio das ilusões do sonho. A ironia e a crítica social presentes em suas palavras lançam luz sobre os absurdos do cotidiano, enquanto a angústia e a saudade permeiam a obra, convidando o leitor a pensar sobre a passagem do tempo e as perdas inevitáveis. Também explora a vulnerabilidade humana ao se sentir controlada pelas circunstâncias, questionando a responsabilidade nas escolhas que moldam o destino.

As influências da trovadora podem ser vistas em diálogos com poetas brasileiros como Cecília Meireles e Adélia Prado, que também revelam a profundidade emocional e a experiência feminina. No contexto internacional, a obra de Mourthé encontra ecos em poetas como Pablo Neruda e Sylvia Plath, que abordam temas como amor e angústia de maneira intensa e pessoal. Esses diálogos intertextuais enfatizam a universalidade das emoções e experiências retratadas, tornando sua obra relevante e conectada a tradições poéticas mais amplas.

A relevância das trovas se estende além do âmbito literário; elas oferecem uma reflexão crítica sobre a realidade contemporânea. Em um mundo frequentemente marcado por incertezas e desconexões, suas palavras evocam a necessidade de introspecção e empatia. A forma como ela lida com a saudade, a identidade e as relações interpessoais ressoa profundamente com as experiências de indivíduos em busca de sentido e conexão.

Para as futuras gerações, a sua obra serve como um convite à exploração de emoções e à valorização da subjetividade. Em tempos de superficialidade e pressa, as trovas lembram a importância de refletir sobre a vida, as escolhas e os laços que formamos. Através de sua poesia, não apenas documenta a condição humana, mas também oferece um espaço para que leitores de todas as idades se conectem com suas próprias experiências, promovendo um diálogo contínuo entre passado, presente e futuro.

Em suma, as trovas de Wanda de Paula Mourthé são um testemunho da riqueza da experiência humana, uma obra que transcende o tempo e o espaço, convidando todos a uma profunda reflexão sobre o que significa viver, amar e lembrar.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

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