Havia um reinado em que a rainha velha tinha a sina de correr de lobisomem, matando gente para beber o sangue. O príncipe seu filho era um moço sem tacha, bom e valente, e vivia triste com o destino da mãe. Sua distração era ir conversar com um velho, muito velhinho, que morava fora da cidade, perto de uma floresta sombria, na qual ninguém ia caçar nem passear.
O velhinho armava uma rede no alpendre para o príncipe descansar e este passava horas e horas ouvindo as histórias do tempo antigo, esquecendo-se da rainha velha e da sua doença de beber sangue de gente.
Vez por outra, quando o vento passava mais forte e levantava os galhos do arvoredo, o príncipe enxergava, lá ao longe, uma pequena mancha vermelha, parecendo um telhado de casa.
Um dia ele perguntou ao velhinho que telhado ao longe era aquele. O velho, então, contou:
– Aquilo é um palácio encantado, príncipe meu senhor. Meu avô contou a meu pai e este contou a mim que, há cem anos, está ali dormindo uma princesa, com todos os seus criados, pajens e mordomos, por via de umas fadas. No reinado Fulano, o rei e a rainha, nesse tempo, não tinham filhos e só faltavam morrer de vontade. Apresentou-se a rainha grávida e descansou uma menina bonita como o sol. Todo o dia era uma festa no palácio. Para o batizado o rei convidou todas as fadas que existiam por perto do reinado. Só não convidou a fada mais velha porque ninguém sabia da morada dela e julgavam que tivesse morrido.
As fadas vieram todas e já estava na mesa do banquete quando a fada velha apareceu resmungando e dando de corpo como uma condenada. A fada mais moça botou reparo na zanga da fada velha e mais do que depressa escapuliu-se da mesa e se escondeu sem que ninguém notasse sua falta. Depois do banquete as fadas foram fadar, dando as sinas e os dons. Cada uma dizia a coisa mais bonita.
– Eu te fado que sejas linda como a luz do sol.
Outra dizia por aqui assim:
– Eu te fado que sejas boa como o amor de mãe. Eu te fado que sejas rica como um tesouro. Eu te fado com a ciência de Salomão. E assim foram dizendo, e o rei, todo satisfeito, ao lado da rainha que tinha a princesinha nos braços. No fim, a fada velha se levantou, com a fala grossa, e disse:
– Nem vale a pena tanta sina boa para essa menina. Ela será tudo isto mas durante pouco tempo. Quando se puser moça, irá visitar a quinta do seu pai e aí furará a palma da mão com um fuso de fiar algodão e morrerá logo, sem remédio nem jeito.
As fadas, que já tinham fadado e não podiam desmanchar o que a fada velha tinha feito, choravam, quando a fada mais moça saiu de trás de uma cortina e disse:
– Não posso desmanchar o que foi fadado porque não tenho poderes mas, como ainda não fadei, fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra, mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz.
Acabou-se a festa e o rei proibiu, sob pena de morte, que alguém fiasse com o fuso no seu reinado. Apesar de todo cuidado, quando a princesinha inteirou os quinze anos, foram todos visitar outro palácio que o rei possuía dentro de umas matas mais bonitas do mundo. A menina andava, para cima e para baixo, corrigindo tudo, e, lá num quarto esconso da casa, encontrou uma velha ama que estava fiando. Pediu logo para ver o que era e desejou imitar. Assim que pegou no fuso, este saltou e varou sua mão.
Nem marejou sangue mas a princesinha caiu para trás, como morta.
Correram todos e deitaram a menina numa cama, num quarto preparado de um tudo, espelhando de bonito. A fada moça veio voando e bateu a varinha de condão na cumeeira do palácio. Todo mundo que estava dentro, tirando o rei e a rainha, pegou no sono profundo. Os músicos ficaram com os instrumentos na boca e a mesma cozinheira agarrou a dormir com a mão segurando uma galinha que estava assando no fogo.
O rei e a rainha, como aquilo era sina permitida por Deus, beijaram a filha, abençoaram e foram embora, com a fada, para o reinado. Por lá morreram e o reinado deles acabou-se. Só ficou o palácio dentro do arvoredo, com a princesa dormindo o sono sem fim. Era o que meu avô contava a meu pai e este me contou quando eu era menino.
O príncipe ficou alvoroçado com a história que o velho contou e não dormiu pensando na princesa encantada. Pela manhã pegou um facão bem afiado e tocou-se para a mata, perto da casinha do velho. Chegou e meteu o facão, abrindo uma picada, porque era tudo fechado, fechado. Ia abrindo e entrando, e, assim trabalhando, foi andando, até que deu numa roda de árvores enormes e no meio estava o palácio coberto de cipós, sem nenhum rumor, parecendo morto. O príncipe entrou pela porta principal e foi vendo soldados, músicos, damas e senhores, até cozinheiras e meninos, até os bichos, tudo parado, dormindo a sono solto.
Depois de subir as escadas e passar as salas cheias de gente roncando, viu deitada numa cama, forrada de seda, a moça mais bonita que a terra havia de comer, profundamente adormecida. O príncipe chegou para perto e pegou na mão da princesa e esta logo abriu os olhos, dizendo:
– Oh príncipe! Como demoraste em vir!...
O palácio estremeceu e todo mundo acordou. O príncipe ouviu as cornetas tocando, bichos berrando, as pisadas dos soldados, gritos, a música, enfim o barulho de gente viva.
Veio um mordomo muito bem-vestido anunciar que o jantar estava na mesa e o príncipe comeu a galinha que estava sendo assada há cem anos.
Ficou aí como num céu aberto. Veio o padre e casou os dois sem perder tempo. Os dias voavam e a princesa era feliz. O príncipe, sabendo a mãe que tinha, ia ao palácio dar ordens e voltava, dizendo que estava caçando. Não queria que ninguém o acompanhasse.
No fim de um ano a princesa teve um filho lindo que se chamou Belo-Dia; e no outro ano nasceu uma menina, batizada por Bela-Aurora.
Apareceram umas guerras e o príncipe não podia deixar de ir com as tropas. Como não queria deixar a mulher e os filhos naquele ermo, resolveu levar todos para casa. Foi na frente e contou o que se passara a sua mãe. A rainha velha só fazia pigarrear, com a cara fechada como o rei Herodes, imaginando coisas ruins.
Antes de ir embora, o príncipe dividiu o palácio em duas partes. A rainha velha ficaria num canto e a mulher com os filhos noutro, todos com criados e conforto. Chamou o príncipe ao mordomo que era muito seu amigo, de toda confiança, e pediu que vigiasse a família e tivesse cuidado com a rainha velha.
Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e, não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.
O mordomo só faltou morrer. Pensou, pensou, procurou a princesa, contou tudo, levou Belo-Dia para sua casinha, longe do palácio e escondeu-o.
Na manhã do outro dia matou uma lebre, guisou-a bem e avisou que o almoço estava na mesa. A rainha velha comeu a fartar lambendo os beiços e gabando tudo.
Dias depois, veio o desejo e ela mandou que o mordomo matasse Bela-Aurora. O mordomo levou a menina para casa e assou uma paca. A rainha achou o prato gostoso por demais.
Dias passados, exigiu que a princesa fosse refogada em molho de tomate e cebola, para o jantar, porque tinha a carne dura. O mordomo levou a princesa para sua casa, juntou-a aos filhos, bem escondidos, e matou uma veadinha, refogando-a e preparou o jantar, com molho de tomates e cebolas. A rainha velha comeu, saboreando.
Os dias iam passando e a velha tornou a ter a cisma da carne humana de cristão e saiu de noite, como uma desesperada, farejando quem mandar matar para saciar sua sina. Ia passando por uma rua longe do palácio, tarde da noite, quando ouviu a voz da princesa sua nora e a dos netos, conversando dentro de uma casa. Subiu na calçada, encostou o ouvido e soube que era ali a casa do mordomo e que a princesa estava fazendo Belo-Dia dormir, porque este perdera o sono e acordara Bela-Aurora, todos com saudades do pai.
A rainha velha, feia como uma coruja, nem coração tinha para essas coisas, saiu babando de raiva e pela manhã mandou prender a nora, os netos e o mordomo. Uma fogueira enorme foi feita diante do palácio, e quando o braseiro estava escandeando de quente, a rainha velha veio para a varanda assistir à morte da mulher e dos filhos do seu filho e do pobre mordomo.
Já vinham todos amarrados, no sol pegando fogo, quando ouviram a fortaleza salvar e o tropel de cavalaria. Era o príncipe que vinha voltando com os seus soldados, morto de saudades da mulher e dos filhos. Chegando na praça e vendo aquele horror, o príncipe voou do cavalo embaixo, puxou a espada e livrou a esposa e os filhinhos e o mordomo das cordas, e, bufando de raiva, gritou perguntando quem se atrevera a pôr a mão no que ele queria demais em cima do Mundo.
A rainha velha saltou do sobrado para o fogo das fogueiras, com medo do castigo, e aí morreu, queimada, estorricada, virada cinza e pó preto.
O príncipe foi para o palácio com a princesa, Belo-Dia e Bela-Aurora, abraçando-os e chorando de alegria. Nomeou o mordomo para vice-rei num reinado que ganhara na guerra. E morreram todos de velhos, bem felizes.
Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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