— A campainha já parou de tocar. Vai começar a coisa.
Cruza com o Durvalino. Vai pras bandas da Amelinha, com certeza.
— Que pressa é essa, menino?
Nem responde. Estuga mais o passo.
— Tomara que ainda não tenha começado.
Atravessa a porta grande. Estranha o velho Gregório ainda na bilheteria.
— Pronto, padrinho. Ele mandou dizer que sim.
Entra no salão, com o pulso alterado.
Não. A função não começara ainda.
— Que sorte!
Ninguém quase. No reservado da direita, o Doutor Paiva, soleníssimo. Na terceira fila o seu Pernambuco, mais a família, gozando a delícia da permanente. Um pouco para trás, uma dúzia de espectadores. Lá em cima, como sempre, o negro Fabiano com a molecada. E bem na frente, rente à boca do palco, o Joca, afinando o instrumento.
— Coisa engraçada! Por que será que o pessoal não veio?
Juquita não compreende que o povo deixe de comparecer ao espetáculo do mágico.
— Ah! Quem sabe foi por causa da morte do Amâncio?
Acha que a razão é muito besta.
— Meu Deus! Morre um homem e agora ninguém mais se diverte?
Pela cabeça do Damião passa, de atropelo, um punhadão de pensamentos. Tem ímpeto de sair à rua e gritar:
— Pessoal! Ô, pessoal! Venha assistir ao espetáculo. Eu sei que o homem faz mágicas. Umas mágicas bonitas, eu sei.
E logo sente desejo de xingar o povo com os nomes mais feios do mundo. Detesta colossalmente, nesse momento, a gentalha da cidadezinha.
— Éguas! Bobalhões! Filhos da mãe!
Primeiro sinal. Música.
Segundo sinal. Silêncio.
Terceiro sinal. Aparece a cena, que é simples. Duas cadeiras. Uma mesa, com dois copos em cima. A caixa de papelão encardida. Vem o artista, desenxabido, vestindo uma roupa de gala muito surrada. A mulher é deselegante. Mais gorda ainda que dona Vitória.
O homem parlenga dois minutos. Damião não entende bem. Só sabe que, a cada passo, ele solta:
— Cavalheiros... Damas...
As mágicas são bem bobas.
Umas coisas mais sem efeito, gastas, repetidas. O relógio que passa, invisivelmente, do bolso do espectador para a caixa de papelão.
Um lenço branco que fica vermelho. O chapéu que vira passarinho.
No fim do espetáculo vêm aplausos tímidos, sem vontade. O homem se curva uma, duas vezes. A mulher agradece também.
Damião quer mais é derrubar o barracão, à custa de palmas. Só pra alegrar o mágico, que tem uns olhos muito tristes.
Diante da gaveta semiaberta, o velho Gregório, levantando a gola do casaco preto, aceita o fiasco com a resignação de sempre. E ainda troça, conferindo a aritmética da noitada:
— Está vendo? 25 pessoas. O delegado, o promotor, o Fabiano, os cinco moleques, o Pernambuco mais a família. Ao todo, treze pessoas que não pagaram. Doze entradas vendidas a 1$500 somam 18$000.
Conta redonda.
E articula, pausadamente:
— Dezoito mil réis.
O ilusionista foi ter com o empresário, no dia seguinte.
— O senhor ontem foi um pouco infeliz, não? — diz o velho.
— É. Não tive sorte, quase.
Faz um gesto de desalento:
— Já me aconteceu coisa parecida mais de dez vezes. Mas não faz mal.
— Paciência, amigo. A morte do Amâncio estragou a frequência. O senhor sabe. Povo do interior é assim. É muito respeitador.
O homem das mágicas tinha no rosto uma sombra de amargura infinita.
— Parece que não dá nem pra pagar o aluguel do teatro, não, seu Gregório?
Gregório levanta os ombros.
— Não importa. Perdoo o aluguel.
E fica pensando na coragem do homem em chamar aquilo de “teatro”.
Damião, no ângulo da saleta, espia com piedade a figura miserável do ilusionista. Tenta justificar consigo mesmo.
— Ele sabe fazer mágica. Sabe mesmo. O desastre foi a falta de assistência. Povo besta!
O artista solta um suspiro longo.
— Muito obrigado, seu Gregório, por sua boa vontade.
— Não há de quê. Disponha.
Já na porta, o homem volta-se. Fala, com brandura, humilde:
— Quando fui à sua casa, vi lá, num canto, uma pequena mala desocupada. O senhor não poderia fazer presente dela?
— Pois não. Pode ir buscar.
— É só carregar as bugigangas. A minha está tão velha...
Fica atrapalhado. Não sabe como explicar.
— Desculpe, senhor. Desculpe.
Damião aproxima-se discretamente do velho. E cochicha.
— Padrinho. Dê vinte mil réis ao coitado. Dê.
Gregório atende o menino. O artista ambulante agradece comovidíssimo. E abala rua acima.
No trem das quatro, Damião vai à estação.
Lá estão, no carro de segunda classe, quietinhos, o mágico e a mulher.
Damião se despede.
— Felicidades, amigo.
— Obrigado, menino.
O trem apita. Arranca, devagar. E logo desaparece, soltando fumaça, do lado do paredão.
Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público. (Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 17/12/1936)
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