domingo, 29 de setembro de 2024

Newton Sampaio (Espetáculo)

Damião desce correndo aquele pedaço de rua.

— A campainha já parou de tocar. Vai começar a coisa.

Cruza com o Durvalino. Vai pras bandas da Amelinha, com certeza.

— Que pressa é essa, menino?

Nem responde. Estuga mais o passo.

— Tomara que ainda não tenha começado.

Atravessa a porta grande. Estranha o velho Gregório ainda na bilheteria.

— Pronto, padrinho. Ele mandou dizer que sim.

Entra no salão, com o pulso alterado.

Não. A função não começara ainda.

— Que sorte!

Ninguém quase. No reservado da direita, o Doutor Paiva, soleníssimo. Na terceira fila o seu Pernambuco, mais a família, gozando a delícia da permanente. Um pouco para trás, uma dúzia de espectadores. Lá em cima, como sempre, o negro Fabiano com a molecada. E bem na frente, rente à boca do palco, o Joca, afinando o instrumento.

— Coisa engraçada! Por que será que o pessoal não veio?

Juquita não compreende que o povo deixe de comparecer ao espetáculo do mágico.

— Ah! Quem sabe foi por causa da morte do Amâncio?

Acha que a razão é muito besta.

— Meu Deus! Morre um homem e agora ninguém mais se diverte?

Pela cabeça do Damião passa, de atropelo, um punhadão de pensamentos. Tem ímpeto de sair à rua e gritar:

— Pessoal! Ô, pessoal! Venha assistir ao espetáculo. Eu sei que o homem faz mágicas. Umas mágicas bonitas, eu sei.

E logo sente desejo de xingar o povo com os nomes mais feios do mundo. Detesta colossalmente, nesse momento, a gentalha da cidadezinha.

— Éguas! Bobalhões! Filhos da mãe!

Primeiro sinal. Música.

Segundo sinal. Silêncio.

Terceiro sinal. Aparece a cena, que é simples. Duas cadeiras. Uma mesa, com dois copos em cima. A caixa de papelão encardida. Vem o artista, desenxabido, vestindo uma roupa de gala muito surrada. A mulher é deselegante. Mais gorda ainda que dona Vitória. 

O homem parlenga dois minutos. Damião não entende bem. Só sabe que, a cada passo, ele solta:

— Cavalheiros... Damas...

As mágicas são bem bobas.

Umas coisas mais sem efeito, gastas, repetidas. O relógio que passa, invisivelmente, do bolso do espectador para a caixa de papelão. 

Um lenço branco que fica vermelho. O chapéu que vira passarinho.

No fim do espetáculo vêm aplausos tímidos, sem vontade. O homem se curva uma, duas vezes. A mulher agradece também.

Damião quer mais é derrubar o barracão, à custa de palmas. Só pra alegrar o mágico, que tem uns olhos muito tristes.

Diante da gaveta semiaberta, o velho Gregório, levantando a gola do casaco preto, aceita o fiasco com a resignação de sempre. E ainda troça, conferindo a aritmética da noitada:

— Está vendo? 25 pessoas. O delegado, o promotor, o Fabiano, os cinco moleques, o Pernambuco mais a família. Ao todo, treze pessoas que não pagaram. Doze entradas vendidas a 1$500 somam 18$000.

Conta redonda.

E articula, pausadamente:

— Dezoito mil réis.

O ilusionista foi ter com o empresário, no dia seguinte.

— O senhor ontem foi um pouco infeliz, não? — diz o velho.

— É. Não tive sorte, quase.

Faz um gesto de desalento:

— Já me aconteceu coisa parecida mais de dez vezes. Mas não faz mal.

— Paciência, amigo. A morte do Amâncio estragou a frequência. O senhor sabe. Povo do interior é assim. É muito respeitador.

O homem das mágicas tinha no rosto uma sombra de amargura infinita.

— Parece que não dá nem pra pagar o aluguel do teatro, não, seu Gregório?

Gregório levanta os ombros.

— Não importa. Perdoo o aluguel.

E fica pensando na coragem do homem em chamar aquilo de “teatro”.

Damião, no ângulo da saleta, espia com piedade a figura miserável do ilusionista. Tenta justificar consigo mesmo.

— Ele sabe fazer mágica. Sabe mesmo. O desastre foi a falta de assistência. Povo besta!

O artista solta um suspiro longo.

— Muito obrigado, seu Gregório, por sua boa vontade.

— Não há de quê. Disponha.

Já na porta, o homem volta-se. Fala, com brandura, humilde:

— Quando fui à sua casa, vi lá, num canto, uma pequena mala desocupada. O senhor não poderia fazer presente dela?

— Pois não. Pode ir buscar.

— É só carregar as bugigangas. A minha está tão velha...

Fica atrapalhado. Não sabe como explicar.

— Desculpe, senhor. Desculpe.

Damião aproxima-se discretamente do velho. E cochicha.

— Padrinho. Dê vinte mil réis ao coitado. Dê.

Gregório atende o menino. O artista ambulante agradece comovidíssimo. E abala rua acima.

No trem das quatro, Damião vai à estação.

Lá estão, no carro de segunda classe, quietinhos, o mágico e a mulher.

Damião se despede.

— Felicidades, amigo.

— Obrigado, menino.

O trem apita. Arranca, devagar. E logo desaparece, soltando fumaça, do lado do paredão.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.  (Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 17/12/1936)

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