Compositor: Sílvio Caldas e Orestes Barbosa
Minha vida era um palco iluminado
eu vivia vestido de dourado
palhaço das perdidas ilusões
cheio dos guizos falsos da alegria
andei cantando a minha fantasia
entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do salgueiro
tinha o cantar alegre de um viveiro
foste a sonoridade que acabou
e hoje, quando do sol, a claridade
forra o meu barracão, sinto saudade
da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
na janela qual bandeiras agitadas
pareciam um estranho festival
festa dos nossos trapos coloridos
a mostrar que nos morros mal vestidos
é sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
mas a lua furando nosso zinco
salpicava de estrelas nosso chão
tu pisavas nos astros distraída
sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, O luar e o violão.
A melancolia no samba de 'Chão de Estrelas'
A canção 'Chão de Estrelas', interpretada pelo icônico Silvio Caldas, é uma obra que transita entre a melancolia e a celebração da vida simples. A letra da música descreve a vida de um homem que, outrora parte de um espetáculo iluminado e vestido de dourado, vivia uma fantasia de alegria e aplausos. A metáfora do palhaço pode ser interpretada como uma crítica à falsidade das aparências e à efemeridade do sucesso e da felicidade construída sob os holofotes.
O cenário muda para um barracão no morro do Salgueiro, um lugar de vida simples, mas cheio de alegria e vivacidade, como um 'viveiro'. A saudade é um tema central, expressa pela ausência da 'mulher pomba-rola que voou', uma referência à perda de um amor que trouxe vida e sonoridade ao ambiente. A imagem das roupas penduradas, agitadas como bandeiras, evoca uma sensação de festividade e orgulho da identidade cultural dos morros, onde mesmo a pobreza é celebrada como um 'feriado nacional'.
Por fim, a música descreve uma cena poética onde a luz da lua, atravessando o zinco do barraco, cria um 'chão de estrelas'. A mulher amada, ao caminhar desatenta sobre esse chão iluminado, não percebe que a verdadeira felicidade está na simplicidade da vida cotidiana, simbolizada pela 'cabrocha, o luar e o violão'. A música é um retrato da vida nas favelas do Rio de Janeiro, com suas dificuldades e belezas, e um lembrete de que a felicidade muitas vezes reside nas coisas mais simples.
Numa visita ao poeta Guilherme de Almeida, em 1935, Sílvio Caldas mostrou-lhe uma canção inédita, intitulada "Foste a Sonoridade Que Acabou". Terminada a apresentação, a canção recebeu um novo nome: "Chão de Estrelas". Aconteceu a mudança por sugestão de Guilherme, tomado de súbito entusiasmo pelos versos, que eram de Orestes Barbosa.
Sobre o fato, ele escreveria trinta anos depois (em crônica incluída no livro Chão de Estrelas, de Orestes): "Nem de nome eu conhecia o autor. Mas o que então dele pensei e disse, hoje o repito: uma só dessas duas imagens - o varal das roupas coloridas e as estrelas no chão (... ) - é quanto basta para que ainda haja um poeta sobre a terra".
Mas não pãra em Guilherme de Almeida o fascínio despertado por "Chão de Estrelas" entre nossos poetas. Em 1956, numa crônica em louvor a Orestes, Manuel Bandeira terminava assim: "Se se fizesse aqui um concurso (...) para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes: ‘tu pisavas os astros distraída..."'.
Composto por Sílvio Caldas sobre um poema em decassílabos - que Orestes relutou em consentir que fosse musicado -, "Chão de Estrelas" é a obra-prima da dupla, que produziu um total de quinze canções, a maioria de muito boa qualidade ("Quase Que Eu Disse", "Suburbana", "Torturante Ironia" etc.). Essas composições cantam amores perdidos ou impossíveis, tratados do ponto de vista masculino e quase sempre localizados em cenários urbanos arranha-céus, apartamentos, cinemas... Embora tenha se destacado no seu lançamento em 1937, "Chão de Estrelas" só se tornaria um sucesso nacional na década de 1950, quando Sílvio Caldas a gravou pela segunda vez.
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