sábado, 8 de março de 2014

A Mulher em Versos


Deus, demonstrando poder,
quando a mulher engravida,
transforma a dor em prazer
na celebração da vida!
ADEMAR MACEDO
 

Da criação, a mulher,
deveras é obra prima.
Melhor é aquiescer
sem ela, a vida não rima…
ANA MARIA GAZZANEO

Terá, mulher, se quiseres,
o mundo todo a teus pés.
Porque o mundo é das mulheres,
que forem como tu és!
ANIS MURAD

Uma trova… um belo tema,
Pra dizer o que se quer;
Quando o poeta é bom, da gema,
Inspira-se…na mulher!
APOLLO TABORDA FRANÇA

Mulher é sonho, harmonia,
mistério, contradição,
sol e sombra, amor, poesia...
Tudo... e apenas, coração!
CAROLINA RAMOS
 

Mulher… Visão colorida
que no mundo a gente tem…
Só perfuma sua vida
se floresce para alguém.
DANIELA ESTANISLAU

Mãe, mulher, sempre presente
no cuidado e educação;
fértil terra onde a semente
frutifica em cidadão.
ELIANA RUIZ JIMENEZ

A família é sinfonia
e a mulher, sua regente,
que com amor e harmonia
orquestra a vida da gente.
ELIANA RUIZ JIMENEZ
 

Ficou pronta a criação,
sem um defeito sequer,
e atingiu a perfeição
quando Deus fez a mulher.
EVA REIS

A mulher – pura beleza –,
de tez alva, igual à lua,
no universo é a riqueza
da minha alma que flutua.
FÁBIO SIQUEIRA DO AMARAL

A mulher que a gente ama,
para nós sempre é a mais bela,
pois o coração conclama
não ver os defeitos dela!…
HARLEY CLÓVIS STOCCHERO

Ser guia da Humanidade,
que busca os rumos da paz,
do amor, da felicidade;
só a Mulher será capaz.
HÉLICA CRUZ DE O. SOUZA

À mulher foi concedido
o dom da maternidade,
e no filho concebido,
recria a humanidade.
HENRIETTE EFFENBERGER

Minha saudade é defeito
que outra saudade requer,
pois, sempre que abro o meu peito,
encontro a mesma mulher…
HÉRON PATRÍCIO

Mulher empreendedora,
mulher que não desanima,
é mulher batalhadora.
Bem merece nossa estima!
JOAREZ DE OLIVEIRA PRETO

Mulher é sempre um mistério,
não se sabe o seu segredo;
brincando ela fala sério,
falando sério, dá medo.
JOSÉ BARROS VASCONCELOS

Sabendo que o homem criado
teria, aqui, muito espinho,
Deus por tanto preocupado,
pôs-lhe a Mulher no caminho!
JOSÉ DE VASCONCELOS PADRÃO

Minha mulher reza tanto
aos pés de Nosso Senhor,
que eu vou precisar ser santo
pra merecer seu amor.
JOSÉ LUCAS DE BARROS

Mulher-Mãe, mais bela trova
que o mundo pôde compor!
Nela, o Senhor nos comprova
como é grande o seu Amor!
JOSÉ JACINTO M. GODOY

Diz-se que em uma mulher
não se bate nem com flor.
Mate-a porém, se puder,
com muitos beijos de amor….
JOSÉ SOLHA

Eu queria em tua vida,
não ser “bom” ou “mal-me-quer”
ser somente a flor querida
que me faz sentir Mulher.
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Ninguém por certo imagina,
por um momento sequer,
a beleza que há na sina
da arte de ser Mulher!
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Ser Mulher é ser divina,
é ter perfume de flor ;
ser adulta e ser menina,
é ser mãe e ser amor.
JOSEFA MORAES RODRIGUES

Alma o mundo não teria
nem teria amor sequer ;
mas Deus criou a poesia
e concebeu a Mulher.
JUDITH COELHO MACIEL

Para a mulher, só um dia?
Àquela que traz no ventre,
sempre com tanta alegria,
dando ao futuro, a semente?
LEDA MONTANARI LEME

- Formem coroa de glória,
estrelas do Pavilhão,
sobre a Mulher que, na História,
aboliu a escravidão!
LÚCIA VITÓRIA AVELAR

Mulher, “Imagem de Deus”,
graças e dons aplicando,
para os Céus e para os seus,
o Mundo está elevando!
LÚCIA VITÓRIA AVELAR

Ao teu prazer eu me entrego
- seja lá o que quiseres –
pois te escolhi, eu não nego,
entre todas as mulheres.
LUIZ CARLOS ABRITTA

- Uma mulher de verdade,
Traduz sentido profundo:
- No coração tem bondade,
- Nas mãos, as rédeas do mundo!
LYRA FERNANDINO

Papel da Mulher no mundo,
é ser forte, verdadeira! …
Amar com amor profundo,
ser do homem companheira!
LYRA FERNANDINO

Entre os sexos, igualdade
não existe, pensem bem.
O dom da maternidade
somente as mulheres têm.
LYRSS CABRAL BUOSO

A mulher traduz ternura,
doação, vida e amor;
colabora com doçura
com a obra do Criador.
MARINA VALENTE

Ele mudou a estrutura
no amor que o Mundo requer;
sendo Deus, se fez criatura,
no ventre de uma Mulher!
MARIZA DA C. PEREIRA

A mulher apaixonada,
quando recebe uma flor,
fica logo deslumbrada,
achando que é amor.
MYRTHES NEUSALI SPINA DE MORAES

No Céu, a monotonia
de um Adão sem “bem-me-quer”
era preciso alegria…
e assim surgiu a Mulher!
NANCI R. ZURMELY

Da fêmea o maior tributo,
sublime e grande mister,
é gerar em si o fruto
que a torna Mãe e Mulher.
NANCI R. ZURMELY

Como se faz a Mulher?
- Muita pimenta com mel
e tudo de bem que houver,
mais um pedaço do Céu!
NANCI R. ZURMELY

Ó Mulher, celebridade
- filha, mãe, mulher, madrinha -
já nasceste Majestade
para ser nossa Rainha!
NEI GARCEZ

A mulher é um ser sublime,
a fonte de inspiração,
sopro de luz que exprime
o auge da criação.
NORBERTO DE MORAES ALVES

Sobre mulher não discutam,
seus impulsos não se medem:
- As mais fracas também lutam…
- As mais fortes também cedem…!
NYDIA YAGGI MARTINS

Mulher de recursos fartos!
Como é que está impenitente,
tendo no corpo dois quartos,
dá pousada a tanta gente?
OLAVO BILAC

Rosa em broto, rosa rubra,
flor de todo o meu jardim,
não há cravo que descubra
donde vem mulher assim.
OLIVALDO JUNIOR

Numa estrela matutina,
num brilhante malmequer,
vejo os raios da menina
desfolharem-se em mulher.
OLIVALDO JUNIOR

Minha mãe, mulher de Minas,
tem nas minas do viver
todo o encanto das meninas
que se fazem renascer.
OLIVALDO JUNIOR

Se não sou mulher rendeira,
sou eleita mulher forte,
sempre chamada guerreira
que luta para ter sorte.
SÍLVIA DE ARAÚJO MOTTA
 

Quando Deus fez a mulher,
de “presente” ao homem deu.
Acredite quem quiser:
o homem não mereceu!
VOLPONE DE SOUZA
 

Englobando a criação
do que Deus aqui deixou,
é a mulher confirmação
de quanto ele caprichou.
WADAD NAIEF KATTAR

Noite alta, Lua cheia
vencendo sombra qualquer -
onde o bom senso se alteia
há presença da mulher!
WAGNER MARQUES LOPES

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Mulher)

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Francisco Pessoa (Trova para a Mulher)


Débora Novaes de Castro (Mulher)

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Ógui Lourenço Mauri (Mulher... A Vida!...)

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Dorothy Jansson Moretti (Trova)

Dorothy é de Sorocaba/SP

José Antonio Jacob (Tu, Mulher)

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Carlos Lúcio Gontijo (Mulher Amada)

O poeta é de Santo Antonio do Monte/MG

Errata do Universo de Versos n. 145

Aos que receberam as postagens de ontem pelo e-mail:

Como bem observado pela autora do soneto, houve uma falha não de digitação, mas de desatenção de minha parte (peço desculpas):

No primeiro verso do último terceto do Soneto Velha Chácara, de Dorothy Jansson Moretti, de Sorocaba

onde se lê:

 No pomar um jardineiro abrindo os braços mansos

O correto é:

No pomar um jambeiro abrindo os braços mansos.

Aos que acessarem o soneto pelo blog, já está corrigido.

Luiz Alberto Machado (É pra ela)


Regina Kreft (Mulher)


Anônimo (Uma Flor para a Mulher)


Cecília Meireles (Serenata)


Cora Coralina (Assim eu vejo a vida)


quinta-feira, 6 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Ser "alguém")

Nestas últimas décadas, um dos fatos sociais mais importantes é a saída da mulher do seu casulo doméstico e a sua entrada, quase em massa, nas profissões e atividades dantes reservadas ao homem. Tivemos agora a prova disso com a espetacular vitória das mulheres nas recentes eleições, em muitos casos com maioria esmagadora sobre os seus adversários - homens. E aquelas que ainda não tiveram a sua oportunidade - a sua hora e sua vez, como diria mestre Rosa - ficam num desespero de "aparecer", de "vencer", de "ser alguém".

Na minha área, por exemplo: as que me procuram, o que elas chamam de "ser alguém" é ver o próprio nome em letra de forma, assinando colunas de prosa e verso, é aparecer nos jornais, nas revistas, na TV.

Não sabem que isso de "ser alguém" acaba não sendo nada. É apenas um nome impresso ou uma imagem no vídeo. É renunciar a si, conformar-se em ser apenas a figura que o público imagina que ela é, encher o molde do figurino que lhe traçaram, realizar perante o auditório a personalidade que o público quer que ela seja -, sem consideração nenhuma pela sua própria personalidade. Ser alguém é não ser ninguém, é ser um boneco, uma voz, uma assinatura. Posso dar muitos exemplos práticos, como demonstração. E, para não ofender ninguém, começaremos com o exemplo da mulher que assina esta coluna, que é pau para toda obra e já não se ofende com coisa nenhuma.

Em geral, as moças me escrevem dizendo que "gostariam de estar no meu lugar, serem conhecidas, citadas", etc. Muito bem. Pois então quem é que sou?

Na minha própria opinião sou uma pobre de Cristo, mas isso não vem ao caso.

Aos olhos delas, sou uma senhora que escreve nas folhas, tem retrato impresso e é lida ou citada em toda parte onde se lê o jornal ou se vêem os programas "educativos" da TV. Mas já se lembraram vocês que este nome que lêem impresso e que vai a todo lugar é apenas um nome, não é uma pessoa? Que não tem nada comigo, apenas me dá trabalho e incômodo? Nada tem a ver coma minha vida propriamente dita, com o que eu queria ser e que não fui, com o que eu sofro e com o que eu gosto? A entidade que vocês conhecem, o nome que vocês pensam que eu sou, é apenas aquela assinatura no alto ou ao pé do artigo. Não é uma mulher, é uma contrafacção. Não me pertence, antes me escraviza, me obriga muitas vezes a dizer o que não quero, a fingir o que não sinto.

Se eu por exemplo, quisesse mudar e escrevesse nesta página receitas de crochê ou segredos de cozinha - temas de que gosto, ou, pelo menos gostava quando não tinha as limitações da vista e dos movimentos - o homem do jornal teria vindo, com todo o respeito, me tomar satisfações, porque sou paga para outra coisa. Era como se o cachorro ensinado de circo de repente deixasse de fazer aqueles papéis ridículos e ladrasse contra a platéia, feito um cachorro normal.

É verdade que posso comentar meus aborrecimentos, minhas singelas alegrias - mas dentro de determinadas condições, submetendo tudo à deturpação literária, "escrevendo", maculando a pureza e a autenticidade do desabafo com a obrigação de transformar aquilo em matéria impressa. Se conto apenas que tive uma úlcera ou uma dor de fígado, talvez os enoje ou pelo menos os enfade; preciso usar de astúcia e transformar a dor e a náusea em qualquer coisa comovente, ou engraçada, ou curiosa. E, no entanto, o que tive foi uma dor comum, igual à dor de todo mundo, mas que me incomoda ou me assusta, e da qual eu gostaria de falar, como todo doente gosta.

É esse o meu, o nosso privilégio - o privilégio de ser escravo. Outro exemplo: imaginemos que a nossa artista predileta, no meio do espetáculo, se chateasse, largasse a peça, tirasse a caracterização incômoda e se pusesse a falar de outra coisa. A menos que o gesto não fosse tomado como um novo maneirismo gracioso da atriz, o público ficaria danado da vida, reclamaria aos gritos e obrigaria a fugitiva a repor a cabeleira falsa, a voltar docilmente a dizer as linhas alheias, prisioneira do público, do papel, prisioneira principalmente do seu cartaz, da sua obrigação.

É no anonimato e no silêncio que se pode realmente ser alguém. Na paz, na decência da vida particular, o homem é dono do mundo inteiro. Tudo que tem ao redor é seu, pode sonhar, ou dormir, dizer o que quer ou transformar-se à vontade. Recitar a peça ao seu gosto, não tem leitor nem ouvinte que o obrigue a conformar-se com um papel ou uma figura, como é o caso quando ele quer ter valor comercial e êxito. Aliás, a palavra êxito só agora apareceu aqui, mas é ela é a chave de tudo. Pois toda a nossa vida está condicionada a isto: êxito. Por amor dele nos padronizamos num tipo que no fundo detestamos, por culpa dele vivemos no terror da frase errada, do gesto errado.

E, no final de contas, já que me dei como exemplo, feliz de mim que não fui, não sou, praticamente ninguém nessa escada perigosa. Quem menos sobe, menos tem medo da queda. Mas quem está lá nos pináculos do favor público, mais forte sente a melancólica ameaça da descida. É que, além dos cimos, não há nada - senão a vertente oposta.

 Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 12 de outubro de 2002.

Dáguima Verônica (Aquarela de Trovas)

Dáguima Verônica de Oliveira (Santa Juliana/MG)
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A folha seca do galho
promove a sabedoria,
tece a colcha de retalho
no vagar do dia a dia.

A gente sempre se engana,
muitas vezes eu falhei,
esquecia que era humana
e em meu limite esbarrei.

“Água mole em pedra dura,”
- nos ensina a paciência -
“tanto bate até que fura”:
É um tesouro da Ciência.

Amor, senhor da utopia;
tempo, senhor da razão.
Mas, nessa eterna porfia,
sempre vence o coração,

Alargue seu horizonte,
empregue sua alegria,
atravesse a sua ponte
e renasça em poesia!

Analisa a própria crença,
veja a beleza da flor,
sinta seu perfume e pensa:
- A minha essência é o amor!

A noite caminha torta,
sem estrelas, sem luar...
Mesmo assim eu abro a porta,
querendo te ver chegar.

A rosa mais se perfuma
quando o vento a despetala...
Veja, perturbada, a bruma,
simplesmente ela se cala.

A saudade traz nos fios
velha malha já vestida,
de tão gasta pelos “frios”
não mais serve, está perdida.

A vida é uma escola de arte
onde o tempo é o professor
e cada etapa é uma parte
para o artista botar cor.

Com o andar cambaleante
fiz a trilha verdadeira;
não sei dar passo gigante,
porém, sei chegar inteira.

Como o pingo da goteira
a despencar fora de hora,
eu carrego a vida inteira
os sonhos que o peito chora.

Com pincel remanescente
- que  a saudade me legou,
pinto a vida sem presente
que o passado me roubou.

Controlei meu pensamento
e tracei uma divisa,
prendi a força do vento
e dei asas para a brisa.

Dizem:  “Depois da tormenta
sempre aparece a bonança”.
Pense bem e vê se aguenta,
“quem espera sempre  alcança”

Do vale emergi ao topo
da relva virei madeira
do poço fui ao escopo
e em tudo fui verdadeira.

E desde o raiar do dia,
entre rocha, musgo e lua,
vou te fazendo poesia,
morta de saudade sua.

“É na hora da aflição
que  todos lembram  de Deus.”
Veja quanta ingratidão
presente nos filhos Teus!

É na  margem do atoleiro”,
- no ponto de provação,
“que  conhece o cavaleiro”
sem nenhuma distorção.

E “não adianta chorar
sobre o leite derramado”,
aproveite e vá cobrar
de você,  aprendizado.

Eu me lembro, com saudade,
da madrugada de outrora,
mamãe, na extrema bondade:
-“ Filha acorda, está na hora.”

Eu tenho aqui na garganta
o meu grito aprisionado,
não sai porque não adianta
gritar ao velho passado.

Folhas migradas de outono
como os meus sonhos trincados
num chão dormente, sem sono...
vagam, buscando outros prados.

Fugir de mim mesma, ousei,
não pensei nas consequências;
chegando lá não me achei,
eu não tinha referências.

Fui dando tudo que tinha
e como o surrar de um sino
a dor foi somente minha,
nunca culpei o destino.

Injustiça é nosso avesso,
fazemos tudo escondido:
na aparência um endereço
e por dentro o do bandido.

Lágrimas são confissões,
do coração, extirpadas,
rendidas nas emoções,
pelos olhos libertadas.

Na competição da vida
ganha quem sabe parar,
parando,  ganha a corrida
que te leva a caminhar.

Na manhã cinzenta e  fria
um lenço acena no cais,
outro alguém de mão vazia
colhe ao vento os meus sinais.

“Não conte  ovo na barriga
 da galinha” sem saber,
pois  pode haver é lombriga
fazendo-te empobrecer.

Não quero viver em vão,
quero o avesso dessa malha,
tricotar com minha mão
o reverso da medalha.

Não seja sempre medroso,
“se cair, do chão não passa”,
pode até ficar bolhoso,
mas quem ousa não fracassa.

Na paineira do sertão,
- muito longe da cidade,
sabiá, na solidão,
canta o choro da saudade.

No meu rosto que envelhece
vejo um sorriso brilhando
toda mudança é uma prece
que jovem se faz chorando.

No palco rude da vida
é preciso ser palhaço:
Ver chegada em despedida,
 puxar a sorte no laço.

No silêncio do meu grito
ouço a voz da solidão...
Nos meus versos deixo escrito
como está meu coração.

O mal nunca vence a vida,
mesmo que ele a desarrume,
mesmo a rosa fenecida,
Deus recolhe o seu perfume.

Ponha luz no seu caminho,
pinte a estrada de alegria,
deixe um rastro de carinho,
faça um mundo de poesia!

Prenda o mal com sua dor,
faça do fraco o seu forte,
transforme um espinho em flor,
plante a vida onde haja morte.

Quando eu era ainda criança,
inocente, na janela,
eu comprava uma esperança
com uma flor amarela.

Que importa se é noite ou dia?
Olvida, serve e perdoa,
acenda a luz da alegria,
 descubra que a vida é boa!

Saudade barco vazio,
abrigo sem proteção,
esquenta fazendo frio...
É presença sem visão!

Saudade que rasga trilho,
-na cidade eu não me encerro,
me arranque desse cadilho
e me leve a um trem de ferro.

Se eu pudesse rasgaria
a cortina da saudade,
que me impede, noite e dia,
de viver a minha idade.

Se pergunto o que é saudade
quem dela sabe responde:
-  uma dor com caridade,
ora vem ora se esconde.

Serenata tão singela,
fez pra mim, ao fim do dia,
um sabiá, na janela,
celebrando a nostalgia.

Somente “na adversidade
que se conhece os amigos”.
Quando se quer caridade
muitos viram inimigos.

Sou de fases como a lua:
Posso vestir de incerteza,
mas também sei ficar nua,
ao cobrir-me de firmeza.

Tem que existir o conflito
para discernir a paz
não tem silêncio sem grito
nem ordem sem capataz.

Tive o trem como uma escolta:
Da esperança preso ao trilho,
bem mais tarde ele me volta,
no brinquedo do meu filho.

Um grande amor escondido
em cada frase não lida,
em cada letra um pedido:
- Não me tranque eu sou a vida!

GRINALDA DE TROVAS

Analisa a própria crença,
veja a beleza da flor,
sinta seu perfume e pensa:
A minha essência é o amor.

A minha essência é o amor,
meu viver não tem descrença,
tendo Deus como Senhor,
Ele faz a diferença!

Ele faz a diferença,
é campeão de valor;
com AMOR faço presença,
eu sou afeto e calor!

Eu sou afeto e calor
e traço a minha sentença:
- No meu mundo não tem dor,
isso eu herdei de nascença.

A minha essência é o amor,
ele faz a diferença!
Eu sou afeto e calor,
isso eu herdei de nascença.

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) Parte 1

(tradução Monteiro Lobato)

 Vou contar a história da grande guerra que Rikki-tikki tavi sustentou sozinha, na sala de banho dum grande bangalô do acantonamento de Segowlee. É verdade que Darzee, o passarinho-alfaiate, a ajudou, e Chuchundra, o rato mosqueado que nunca ousa caminhar pelo meio da casa e sempre passa deslizando ao longo das paredes, lhe deu um aviso. Isso, porém, foi pouco diante do muito que Rikki-tikki fez.

Era uma jovem mangusta, que pela cauda e pêlo se assemelhava a um gatinho, embora pela forma da cabeça e hábitos lembrasse a doninha. Tinha os olhos cor-de-rosa, e também a ponta do focinho; podia coçar-se com todas as patas, as de diante e as de trás, à vontade; podia também eriçar a cauda ao jeito dos chumaços de lavar garrafa, e seu grito de guerra, quando estava em casa nos campos, era Rikk-tikk-tikki-tikkitchek !

Certo dia as águas dum temporal de verão a arrastaram da toca onde vivia com os pais, e a levaram, a debater-se aflitíssima, para dentro dum valo que havia perto. Rikki agarrou-se a um tufo de ervas flutuantes e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, estava numa rua de jardim iluminada pelo sol, com um menino na frente, que dizia:

- E uma mangusta morta. Vamos enterrá-la.

- Não, disse a mamãe. Vamos pô-la a secar, porque pode não estar bem, bem, bem morta.

E a recolheu dentro de casa, onde um homem a examinou e declarou que realmente não estava morta, mas apenas asfixiada; envolveram-na então em flanelas e a puseram perto do fogo... e Rikki-tikki logo abriu os olhos e espirrou.

- Bravos! - exclamou o homem (era um inglês que havia alugado o bangalô muito recentemente). - Agora é não a assustarem e veremos o que a pobrezinha faz.

A coisa mais difícil do mundo consiste justamente em assustar a mangusta, porque é um animalzinho da cabeça aos pés feito de curiosidade. Parece que a divisa da raça é: "Procura e descobre", e Rikki-tikki não desmentia as qualidades do seu povo. Provou logo a flanela que a envolvia e verificou não servir para comer; correu depois em redor da mesa, sentou-se, foi empoleirar-se sobre o ombro do menino.

- Não tenha medo, Teddy, disse-lhe o pai. Esse é o modo de as mangustas mostrarem amizade.

- Ui! Ela está-me fazendo cócegas no pescoço...

Rikki-tikki enfiou os olhos por entre a gola e o pescoço do menino, farejou-lhe as orelhas e depois veio dum salto ao chão, onde se sentou, esfregando o focinho.

- Meu Deus! - exclamou a mãe de Teddy. - Então é a isto que chamam animal selvagem? Será que compreende que somos bons para ela e mostra-se grata?

- Todas as mangustas são assim, disse o marido. Se Teddy não lhe puxar a cauda, nem procurar metê-la em gaiola, viverá em paz aqui dentro, correndo por toda a casa o dia inteiro. Vamos dar-lhe alguma coisa de comer.

Veio um pedaço de carne crua, que Rikki-tikki achou excelente. Depois que a comeu foi para a varanda e sentou-se ao sol, eriçando a cauda para fazê-la secar completamente. Estava já quase sarada.

- Há mais coisas a descobrir nesta casa do que a minha gente lá no mato verá em toda a sua vida, pensou consigo a mangustinha. Vou ficar por aqui.

E começou a correr o bangalô, peça por peça. No banheiro por um tico não morreu afogada. No escritório sujou a ponta do nariz no tinteiro e a queimou na brasa do charuto, ao saltar para o colo do pai de Teddy a fim de vê-lo manejar a pena. Ao cair da noite correu ao quarto do menino para ver a criada acender o lampião, e quando Teddy foi para a cama Rikkitikki fez o mesmo. Mas era má companheira, visto como se levantava cem vezes durante a noite para descobrir a causa de todos os barulhinhos. Os pais de Teddy tinham vindo dar no filho a última vista d'olhos e lá encontraram a mangusta, muito esperta, deitada no travesseiro.

- Não gosto disto, declarou a mamãe. Ela é capaz de mordê-lo.

- Não morde, não, disse o pai. Teddy está mais seguro na companhia deste animalzinho do que se estivesse uma ama a guardá-lo. Se uma cobra entrasse no quarto agora...

No dia seguinte, muito cedo, Rikki-tikki veio à varanda para a refeição, repimpada no ombro de Teddy; recebeu uma banana e um pouco de ovo cozido, deixando-se tomar ao colo por todos os presentes. A mangusta bem educada procura tornar-se logo doméstica, e a mãe de Rikki, que já morara na casa do general comandante da região, lhe havia ensinado o que fazer, caso caísse nas mãos dos homens brancos.

Depois do almoço Rikki foi passear e observar o que havia pelo jardim. Era um grande jardim, mas um tanto largado, com tufos de roseiras Marechal Niel espessos qual moitas, e limoeiros e laranjeiras e touceiras de bambu enormes. Rikki-tikki lambeu os beiços de gosto.

- Que esplendido campo de caça! - disse, e a esse pensamento sua cauda se eriçou. Imediatamente se pôs a correr dum lado e doutro, farejando tudo. Súbito, ouviu lamentações doloridas que vinham de dentro duma moita de espinheiros.

Era Darzee, o passarinho-alfaiate e sua companheira. Moravam ali, tendo construído um belo ninho por meio da junção de duas folhas largas que coseram com fibras nos bordos; a concavidade assim formada fora enchida de paina. O ninho balouçava-se no ar, enquanto os donos, com os olhos no chão, piavam um choro triste.

- Que é que têm vocês? - perguntou Rikki-tikki.

- Somos muito infelizes, respondeu Darzee. Um dos nossos filhotes caiu do ninho, e Nag o devorou.

- Hum ! exclamou Rikki-tikki. O caso é realmente triste. Mas sou nova por aqui e não sei quem é Nag.

Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o cabelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco - e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu cabelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direi to de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigilava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag molejou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás ! cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado ! Malvado Darzee! exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.
================
continua…
 
Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

Jangada de Versos do Ceará (12) José Albano

José d'Abreu Albano
Fortaleza 1882-1923


SONETO DA DOR
 

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.

SONETO DA PRECE
 

Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminando este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor Divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!

SONETO DA SAUDADE
 

Trato só da perpétua saudade
Que mora neste peito desditoso
Mas o queixume derramar não ouso
Com medo de que aos outros desagrade.

Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se traslade.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro em que ando
Para espalhar o meu tormento infindo.

Ah! seja o teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando!

SONETO DO AMOR

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido,
Sem um suspiro vão, sem um gemido,
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento,
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido,
É todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido, por dinheiro,
E entre ladrões morrer crucificado.

SONETO DO SONHO

Doce me foi viver, quando sonhava
E entre esperanças e ilusões sorria,
Antes de conhecer a dor sombria
Cuja lembrança na alma inda se grava.

Naquele tempo não adivinhava
A pena sem igual que dura um dia
Mas sempre faz surgir a fonte fria
Que os saudosos olhos banha e lava.

Cansado coração, tu nunca viste
Outro que tanto gozo e mágoa sente,
Outro que a tanto bem e mal resiste.

Amor te castigou severamente,
Pois foste, uma só vez apenas, triste
E nunca mais tornaste a ser contente.

SONETO PESSIMISTA

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com as saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

Rachel de Queiroz (Falso Mar, Falso Mundo)

Falso mar, falso mundo reune 89 crônicas produzidas por Rachel de Queiroz entre 1983 e 2000. A autora deixa em sua obra as impressões de quem assistiu a todo o processo e degradação do mundo ao longo do século XX.

Especialmente na crônica Falso mar, falso mundo, que dá título à coletânea, Rachel de Queiroz apresenta-nos, por meio de suas experiências e escrita, a confirmação da existência de um sujeito cuja identidade fragmentada remete a literatura contemporânea brasileira a uma nova perspectiva. Aberta a situações, as mais diversas possíveis, que surgem, talvez, como respostas alternativas da modernidade ou ainda, para reforçar a posição de que essa nova literatura permite a coexistência de traços muito diferentes e marcantes, a autora deixa transparecer sua posição sobre todas essas ocorrências: o medo de que, em meio a tantas transformações, os indivíduos deixem de ser seres animados e passem a ser considerados, meramente, bonecos comandados por um novo ponto de vista, alterado e distorcido, e deixem de ser sujeitos ativos para aceitar, com passividade, as novas imposições sociais.

As crônicas também mostram uma narração generosa e profunda sobre a velhice. Traz ainda as impressões da literata, da bisavó, da amiga e acima de tudo, da cidadã, que com a idade e vasta experiência que tinha, não abandonou o sertão nordestino e, especialmente, o cearense, onde está encravada a sua Fazenda Não Me Deixes, se entristecendo com o período seco e vibrando com a volta das chuvas:

    “Não é entusiasmo sertanejo, não é patriotismo cearense, mas o sertão está lindo, tão lindo, que poderia competir com as paisagens clássicas de além-mar” ("Nós e a natureza").

Aliás, algo que não lhe saía do pensamento, era o sertão; estando em Berlim Ocidental, encontra “a caatinga nordestina em réplica”. Isso foi o suficiente para o retorno à Pátria natal, “Me vi de repente no Ceará, tal como deve ele estar agora...” E prossegue a lúcida amiga, que lembra “Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza...” ("Ah, os amigos").

A arte da escrita, tão bem dominada por Rachel de Queiroz, está presente nessas crônicas. Ao final de cada crônica, uma lição nos é dada e enriquecidos ficamos com a leitura de quem muito sabe, muito viveu e mostra que a vida é um eterno aprendizado.

Nas lições de seu bisneto Pedro e sua ânsia de conhecer o mundo, acompanhada da busca da liberdade, Rachel nos dá um exemplo de sua sabedoria, revestida da simplicidade comum aos gênios e sábios dessa vida, com suas paixões, seus declínios e acertos.

Na crônica “Rubem Braga explicava Portugal...”, Rubem Braga, à sua maneira casmurra, justificava o título e ainda ensinava à linda rapariga que não lhe dava bola, que é impossível recitar Os lusíadas ao ritmo do atual falar português, pois Camões metrificou o poema ao ritmo do falar de então, que veio a ser o nosso, brasileiro e, sobretudo, carioca.

A crônica "Os Noventa", fecha o livro com chave de ouro. Sendo que nele vemos o futebol e a ânsia que tínhamos pelo pentacampeonato que conquistamos; os colegas; o sertão; o Rio de Janeiro; as Guerras; enfim, o dia-a-dia sob a ótica lúcida de quem se preocupava com o fim do mundo e via atenta as novidades do novo milênio e lembrava o "Falso mar, falso mundo", tendo por pano de fundo uma ´Praia Artificial´ no Japão, observando que "Aquilo não pode deixar de ser pecado".

Fonte:
José Luís Lira, advogado e escritor e Adriana Giarola Ferraz Figueiredo (UEL)
Disponível em Passeiweb

quarta-feira, 5 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Livro, Televisão, Internet)

É dizer como o outro: já que o homem não vai ao livro, que vá o livro ao homem. Multipliquem-se as feiras de livros pelas praças da cidade, e não só desta, como de todas as cidades do interior. Ah, o interior! As livrarias são poucas, a distribuição das editoras não é boa. Nunca se pisa em cidade do interior sem escutar dos interessados a queixa de que livro de fulano, que está muito falado, não apareceu à venda na terra. Talvez fosse um êxito inesperado a inauguração de feiras de livros por este Brasil afora: o pessoal ver os livros assim de cara como a farinha e os legumes. Poder mexer, palpar, olhar as figuras, se interessar. Seria talvez uma revolução.

É claro que, com a vida difícil de hoje em dia, o pessoal anda primeiramente preocupado em juntar algum no bolso para adquirir o pão, a roupa e o teto: e assim se esquece que a alma também precisa de alimento, esquece aquela velha história de que nem só de pão vive o homem, e vai deixando o livro de lado.

Mas assim mesmo, com todas as dificuldades da vida, o fato é que, para terra tão grande, vende-se muito pouco livro no Brasil. Será que o povo não tem mais tempo para ler? Nas casas mais humildes de cidades do interior aparece com notável frequência a antena de TV. E se tem antena, tem TV lá dentro.

O homem tem posto em uso invenções estupendas para o seu divertimento, mas a verdade é que não há milagre eletrônico capaz de superar o poder de entretenimento de um bom livro. A TV é ótima mas você tem de depender dos caprichos da programação, escuta e vê o que não pediu, tem de se submeter a horários criados pelos outros de acordo com as conveniências deles, não da sua, e sabe que está sendo incluído numa categoria subjetiva a que eles chamam de público-alvo, tudo catalogado como roupa em gaveta: roupa chique (classe A e B), gavetas de cima; roupas de uso doméstico e de trabalho, gavetas do meio; e lá embaixo, a roupa descombinada e sem grife dos programas de auditório. E ainda não falei na praga maior, que é o anúncio. O eterno, inevitável, apavorante anúncio, mal necessário, sim, que chateia durante meia hora para nos deixar ver um programa de cinco minutos.

Cinema é muito bom, mas é caro, longe de casa, exige que se saia, mude de roupa, e também, só se veem as fitas que estão em cartaz, e não aquelas que a gente desejaria.

O livro, não. Apesar de ter subido de preço, ainda custa barato, mais barato do que um ramo de rosas para a namorada ou um jantar no restaurante. Uma noitada em boate, com show e bebida, dá para comprar algumas dezenas de volumes - quer dizer, divertimento para meses e até ano, se o leitor é vagaroso. O livro não exige capital nem maquinismo, não tem anúncio - e não tem patrocinador! A sua variedade tem como limite o infinito; discute com você todos os assuntos que a mente humana já tratou, apresenta-o às personalidades mais ilustres e lhe conta os seus segredos. Você quer saber as últimas teorias científicas sobre o espaço cósmico, os ritos funerários dos egípcios, a série cronológica dos amantes de Catarina, a Grande? Há sempre um livro que lhe dará a informação. E se o que você deseja é sentir a presença inefável dos grandes poetas, a imaginação dos maiores ficcionistas - ah, eles estão todos aí, se oferecendo à sua mão, na hora em que você os convocar. Poemas, romances, contos, narrativas, memórias - o que a mente do homem criou, desde que sabe escrever - e isso já faz séculos, milênios - está tudo nos livros, guardado nos livros, como um tesouro para seu uso.

E a feira de livros, além de colocar o livro ao alcance fácil do comprador, a preços de desconto, ainda tem a parte social e simpática: as festas de autores, em que não só o livro, mas os que os escrevem, os autores, são convocados a se apresentar ao povo, num contato democrático e cordial. Aí você, leitor, terá oportunidade de conhecer em carne e osso seu romancista predileto, o seu poeta de estimação ou o seu erudito de confiança.

Eu sei, eu sei: todos vocês, jovens, vão dizer - "Mas hoje, toda informação que quisermos, vamos encontrar na internet." Mas é isso: internet é informação, é trabalho, não traz prazer ou divertimento. Pois então vá experimentar ler, na íntegra, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, ou Guerra e Paz, de Tolstoi, pela internet. E depois me diga.

Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 19  de outubro de 2002

Humberto Rodrigues Neto (Trovas Avulsas)


Ah, que fados sorrateiros
têm nossas vidas sombrias...
os leitos sempre solteiros,
de duas camas tão vazias!

Ano velho não demora,
põe-te ao largo e vai saindo.
Anda, ano velho! Cai fora,
pois o novo já vem vindo!

Ao teu vigor vibro, tremo,
sinto o sangue em alvoroço
se ao leito te abraço e espremo,
volta a mim o ardor de moço!

As contas de amor resolvo
E as liquido de uma vez:
teu beijo com dois devolvo
pra me dares outros três!

As mulheres são primores,
que Deus fez pensando em mim...
e ao perceber que eram flores,
plantou-as no meu jardim.

Até nos dias frios, nevados,
as nossas sensuais fraquezas
tornam dois corpos gelados
em duas fogueiras acesas!

A um retiro me decido
levar-te pra ousarmos mais,
mas calo e não te convido,
porque não sei se tu vais!

Buscar o céu noutro espaço,
não, meu bem, não é  preciso;
se eu tiver o teu abraço,
que me importa o paraíso?

Como é bom, como eu desejo,
quanto a minh'alma se agita
de nos lábios ter um beijo
de mulher moça e bonita!

Como é doce, em terno encosto,
debruçar por entre apelos,
o entardecer do meu rosto
na noite dos teus cabelos!

Como sofrem meus desejos,
ao saber, meu querubim,
que os teus braços e os teus beijos
não foram feitos pra mim!

Confesso-te meus queixumes,
que esquecer jamais consigo:
suportar mortais ciúmes
desse alguém que está contigo!

Dá-me, Deus, com certa urgência,
a graça que aqui rabisco:
dez por cento da paciência
que puseste em São Francisco!

Dá-me um beijo bem ardente,
já que és moça e tão menina,
só pra ver se assim a gente
sente algo que combina!

Das mágoas que me consomem,
a que mais me faz chorar
é ter ciúme do homem
que puseste em meu lugar!

Desse teu beijo fagueiro,
jamais vou sentir-me farto...
dá-me mais dois, e um terceiro,
e mais três depois do quarto!

Deus foi artista perfeito
no marcar da noite os mastros,
mas bem que podia ter feito
dos teus dois olhos, dois astros!

De vez em quando o ciuminho
vem junto a mim e reclama;
sente inveja desse ursinho
com que enfeitas a tua cama!

Dois mimos teus inda anseio,
pois vivos n’alma  os mantive:
o abraço que jamais veio
e o beijo que nunca tive!

Do paraíso os recamos
não estão nas Escrituras,
pois de há muito os desfrutamos
nas nossas mútuas loucuras!

Do teu rosto a linda imagem
é um colírio à nossa vista,
pois pareces personagem
dessas capas de revista!

Em matéria de grandeza,
Deus não se omitiu em nada;
pegou tudo que é beleza
e deu tudo à minha amada!

É nos becos da tua rua
que eu quero te namorar,
pra que só o olhar da lua
se atreva a nos espiar.

Entre afagos e carinhos,
pressentem meus sonhos vãos
que há mil sins escondidinhos
na timidez dos teus nãos!

Entre nós Deus colocou
da distância os desatinos;
sem saber crucificou
na mesma cruz dois destinos!

É sublime ouvir o frolo
da saia erguida em viés...
desde a alvura do teu colo
ao rosado dos teus pés!

Eu não sei qual julgamento
de ti sobre mim recaia,
mas adoro ver o vento
levantando a tua saia!

Lisinhas, macias, mimosas,
carinhosas e branquinhas,
são fofinhas, são formosas
quais duas rosas, tuas mãozinhas!

Meu amor, eu não pensava,
que pra ver o paraíso,
bastava, apenas bastava
contemplar o teu sorriso!

Meus olhos não mais buscaram
mentirosos paraísos
desde o dia em que pousaram
no encanto dos teus sorrisos!

Mimos de tanta beleza,
tais como os teus, jóia minha,
não possui uma princesa,
nem os sonha uma rainha!

Não maldigas as diabruras
que o amor nos faz cometer,
antes fazer mil loucuras
que ser sãos e não viver!

No amar-te tanto é que sinto
do pecado o vil assomo,
pois ao te abraçar pressinto
mil tentações que eu não domo!

No céu Deus gravou a face
de faiscantes universos
pra que o poeta os cantasse
na beleza dos seus versos!

No olhar que a noite esquadrinha,
eu procuro a imagem tua
e te encontro sentadinha
na foice prata da lua!

Outra mulher não havia
sentido o amor tão desperto,
pois  antes sequer sabia
que o céu ficava tão perto!

Pergunta ao mestre o aprendiz:
- Que é a luz, nos conceitos teus?
E a sorrir, Einstein lhe diz:
– A luz é a sombra de Deus!

Por nuances maravilhosas
meu raciocínio se espraia
no quão devem ser ditosas
as tuas colchas de cambraia!

Possa eu dar-te, ó sepultura,
algo que os vermes não comem:
mente limpa e alma pura,
dois tesouros num só homem!

Pra não viver tão sozinho,
quisera ter-te por dona,
só pra ser como o gatinho
que em teu colinho ronrona.

Quando deito não me esgueiro
de carinho tão escasso,
pois me abraço ao travesseiro
na ilusão de que te abraço!

Que em nós dois Cupido mire
suas flechas num voo breve;
que de ti ninguém me tire,
que de mim ninguém te leve!

Quem foge à paixão tirana
temendo remorsos ter,
ou tem uma mente insana,
ou nunca amou pra valer!

Quero afastar os revezes
das mágoas que me consomem:
ser teu menino cem vezes
e mil vezes ser teu homem!

Quero, em anseio incontido,
do céu levar-te aos confins,
e escutar junto do ouvido
teus nãos simulando sins!

Que vivam na dor, conjuntos,
dois corações machucados,
pois é melhor sofrer juntos
do que chorar separados!

Remexo da mente o cofre,
mas não descubro o que é isto:
na face de alguém que sofre
eu vejo o rosto do Cristo!

Saudade é glória ou castigo
quando alguém, num tom pungente,
noss'alma leva consigo
e deixa a sua com a gente!

Saudade, pensando bem,
é quando a mente se queixa
que tenta esquecer alguém,
mas o coração não deixa...

Se consulto o coração
pra ver aquela que o dome,
ele pulsa de emoção
e diz baixinho o teu nome!

Se há algo que nos deslumbra
e ao proibido nos inclina,
é aquele beijo em penumbra
no cerrar de uma cortina!

Sempre alheia ao meu apelo,
és a encarnação de Fedra,
pois em teu peito de gelo
bate um coração de pedra!

Se puxo as mãozinhas tuas,
tento mais perto senti-las
pra ver dividida em duas,
minha  face em tuas pupilas!

Se teu bem partiu, foi embora,   
não penses nunca mais nele;          
enxuga os olhos, não chora,
e me põe no lugar dele!

Sobre meu chão colocaste
um mar de espinhos e abrolhos
desde o dia em que lançaste
sobre mim teus lindos olhos!

Somos seres incompletos
vivendo eterno amargor...
Você tão pobre de afetos
e eu tão carente de amor!

Tão intenso é aquele amar
que mantemos eu e ela,
que a lua vem nos espiar
pelas frinchas da janela.

Vão tão bem os  teus pezinhos
calçadinhos nas chinelas,
que os meus olhos, coitadinhos,
vão doidinhos atrás delas!

Vem, neste inverno polar,
aquecer-me em teus mormaços...
Vem, meu quindim, me aninhar
no verão dos teus abraços!

Vem, ó “Príncipe Encantado”
dar nela o beijo da vida,
depois deixa a meu cuidado
a tua “Bela Adormecida”!

Ver amor igual ao nosso,
nunca sonhes nem esperes:
quero ter-te mas  não posso,
podes ter-me mas não queres!

Teófilo Braga (O Coelho Branco)

Recolhido na Ilha de São Miguel, Açores

Havia um rei que tinha uma filha já crescida, que gostava muito de se lavar no balcão, e pedia à aia que levasse a bacia e outros preparos e uma bandeja para pôr os anéis. Vinha um coelhinho branco, furtava-lhe os anéis e fugia; a princesa gostava de ver aquilo, não dizia nada, ia ao cofre e metia outros nos dedos.

Continuou o coelhinho a furtar, até que a princesa ficou sem nenhum anel. Antes tinha tão grande abundância, que ela ficou muito triste e melancólica; o rei teve muita pena com isto, e até mandou pôr um edital para virem todas as pessoas antigas para contarem contos e histórias para alegrarem a princesa. Vieram muitas pessoas, mas a princesa estava no mesmo; até que vieram duas velhas sem saberem o que haviam de contar.

Pelo caminho encontraram um burro sem pés nem mãos, carregado de lenha; as velhas foram em seguimento do burro, viram-no chegar a umas casas, descarregar a lenha, e acarretá-la para dentro. Elas então subiram e no patim em cima viram umas púcaras a ferver; uma das velhas meteu o dedo e provou, e neste tempo ouviu uma voz a dizer-lhe:

— Não proves, que não é para ti.

E a velha olhou pelo buraco da chave e viu um coelho, que tirou a pele, e tornou-se em um príncipe, e disse:

— Quem me dera ver a dona dos anéis que tenho aqui.

As velhas partiram para o palácio, e lá contaram o que tinham visto à princesa. Isto, já se sabe, alegrou logo a princesa, e disse ao rei que queria ver aquilo. Foram todos, velhas, princesa e rei. Viram o burro fazer o mesmo, e foram à dita casa. A princesa meteu o dedo e provou; neste ponto ouviu dizer:

— Prova, que é para ti.

Ela foi vigiar (espreitar), e as portas abriram-se, e o coelho disse:

— Quem me dera ver a dona dos anéis que tenho aqui!

A princesa respondeu:

— A dona sou eu.

O coelho tornou-se príncipe, porque aquelas palavras lhe quebraram o encantamento, e casaram, foram muito felizes, e as duas velhas ficaram damas de honra do paço.
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Notas Comparativas

Em uma versão do Algarve, inédita, vinha o estribilho poético:

Lenço, liga, cordão e cuidado,
Quem me dera ver aqui
A dama do meu agrado!


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_Tradicionais_do_Povo_Portugu%C3%AAs/O_coelho_branco

Laurindo Rabelo (Sonetos Avulsos)

SONETO DO FADO

Geme, geme, mortal infortunado,
É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinqüente,
Sempre tirano algoz terás no Fado

Mas, para não ser mais envenenado
O fel que essa alma bebe, e o mal que sente,
Não te iluda o falaz riso aparente
De um futuro de rosas coroado.

Só males o presente te afiança:
Encrustado de vermes, charco imundo,
Se te volve o passado na lembrança.

Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.

A UMA SENHORA

Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade impia,
Tu, amada do Anjo d'Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.

Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-me de magia,
E lá dos mortos na solidão sombria
Operou-se um milagre de repente.

A morte sobre a fouce, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!

Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C'um sorriso de glória um — bravo — deu.

À SRA. MARIETA LANDA

Disseste a nota amena d'alegria,
E, arrebatado então nesse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh'alma aos céus subia.

Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em sucessivo e rápido transporte?!

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida ou dar a morte,
Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.

À MESMA SENHORA

Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena,
À cheia de solene majestade,
Já lânguida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Mulher, do canto teu no dom superno
A dádiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.

E minh'alma, num êxtase embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gozá-lo, eterna a vida.

À MESMA SENHORA

Alcíone, perdido o esposo amado,
Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia
O céu, de seus amores descuidado.

Em vão o pranto seu d'alma arrancado
Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia,
De seu cruel penar se ria o fado.

Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera
Tão bela, tão gentil, tão doce e clara,
Daquela que hoje neste palco impera.

Se assim cantasse, o túmulo abalara
Do bem querido; e, branda a morte fera,
Vivo o extinto esposo lhe entregara.

CONTA E TEMPO

Deus pede estrita conta do meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas como dar em tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
Dado me foi bom tempo e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta;
Quero, hoje, fazer conta e falta tempo.

Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis esse tempo em passa-tempo:
Cuidai enquanto é tempo em fazer conta.

Mas, oh! se esses que contam com seu tempo
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não choravam, como eu, o não ter tempo.

Graciliano Ramos (Infância) 3a. Parte, final

Mudança

Diante da enorme dificuldade financeira, o pai do narrador desiste de ser comerciante, abandona a vila e volta para Viçosa, tentar ser novamente agricultor.

Adelaide

Graciliano volta à escola, agora de D. Maria do O, personagem que, assim como sua família, servirá para o narrador descarregar um surpreendente racismo. É neste capítulo que se apresenta a prima Adelaide. Quase órfã, pois fora “abandonada” por sua família à instituição educacional, é humilhada pela professora e suas parentas, que jogam a menina em serviços domésticos, sem nem mesmo levarem em conta as amplas e fartas contribuições que os pais da garota dedicam ao colégio.

Um Enterro

Graciliano, na ocasião do enterro de um coleguinha, visita pela primeira vez um cemitério. Tudo para ele e seus companheiros é motivo de festa. Esquecem até que aquele ambiente povoava as histórias de assombração. Talvez isso se explique por essas narrativas passarem-se à noite, enquanto eles o adentravam durante o dia. No entanto, uma mudança drástica se processa. O narrador afasta-se do grupo e pára num lugar em que eram depositados ossos. É uma experiência terrível, pois acaba se tocando do futuro de todo ser humano. Desperta-se na personagem um pesado sentimento niilista.

Um Novo Professor

Graciliano muda de novo de escola. E mais uma vez derrama racismo, só que agora discreto. Seu novo professor é um mulato caracterizado como “pachola” e dotado de trejeitos afeminados. Gasta horas diante de um espelho, numa crise de vaidade terrível. Se está contente com seu cabelo, que temporariamente se mostra domado, tem um desempenho paciente como professor. Mas quando não está contente com as melenas ou com o tom da pele, torna-se extremamente rígido. No entanto, o elemento mais ácido está no irmão do professor, que um dia surgiu num desabafo, aparentemente para as paredes, de que tinha um lugar na sociedade. Provavelmente fora desrespeitado. Fica nas entrelinhas a ideia de que ele, o irmão, assim como Maria do O, eram personagens que lutavam por um espaço num meio preconceituoso, que empurrava os negros para a miséria e a marginalização.

Um Intervalo


Este capítulo é de fato um “intermezzo”. Graciliano realiza uma tentativa eclesiástica, servindo de coroinha. Mas seu desempenho é um desastre, o que o afasta dessas atividades. No entanto, ganha amizade com as mulheres ligadas a esse meio, o que gera um certo alívio a seu cotidiano tão massacrante.

Os Astrônomos

Num rasgo de bondade, o pai de Graciliano começou a acompanhá-lo na leitura de um livro. O menino fazia essa tarefa aos tropeços, mas tinha um apoio, algo de que acabou gostando. Mas a generosidade era apenas fase. De cabeça quente com os negócios, não mais se interessou no brinquedo do menino, deixando-o frustrado. Pede a ajuda, pouco depois, a sua parenta Emília, que questiona por que não fazia a tarefa sozinho. Incentiva-o, pois, nesse desafio, dizendo que a leitura era uma coisa maravilhosa. Usa até uma metáfora que o garoto acha exagerada: os astrônomos são capazes de ler maravilhas no céu. Mesmo discordando da imagem (a figura de linguagem estava muito acima da capacidade intelectual do protagonista), entrega-se à tarefa, que se vai revelando suadamente prazerosa. Mas, ao contrário dos astrônomos, vai-se dedicar a textos em que consiga se identificar, como atesta o final do capítulo: Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes.

Samuel Smiles

Mais um passo importantíssimo. Graciliano tem agora um novo professor, homem que demonstra autoridade por ter domínio de conhecimento. Tanto que corrige a leitura do protagonista quando lê a palavra “Smiles”. Apesar de “smailes” ir contra todo o conjunto de valores do menino, a segurança, a firmeza da retificação foi argumento eficiente. Tanto que quando lê essa palavra diante dos trabalhadores do seu pai, não se importa mais com as risadas deles. Antes o afetavam. Agora, tem a convicção do conhecimento, da sabedoria. Eles é que estavam errados, nas trevas da ignorância. Está protegido.

O Menino da Mata e o seu Cão Piloto


O menino supera as dificuldades e vê na leitura um prazer. Graciliano dedica-se à leitura de um livro, “O Menino da Mata e o seu Cão Piloto”, apesar da crítica depreciativa de Emília, que se baseou apenas no fato de o autor da obra ser protestante. Por um instante o narrador balança em seu desejo de conhecer a obra, mas no fundo sente não haver lógica em tal critério. Dedica-se ao volume, mas sai frustrado, pois as personagens morrem. Não houve compensação da dor da vida que levava. Pelo contrário, ocorreu aguçamento. Por isso chora.

A leitura do livro é impulsionada pela terrível proibição, relativa à brochura de capa amarela, o objeto proibido desperta curiosidade na criança que resolve decifrar os enigmas do livro amarelo com a ajuda dos dicionários. O narrador descreve a descoberta e o prazer que a leitura provoca: Arranjava-me lentamente, procurando as definições de quase todas as palavras, como quem decifra uma língua desconhecida. O trabalho era penoso, mas a história me prendia, talvez por tratar de uma criança abandonada. Sempre tive inclinação para as crianças abandonadas. A leitura, que se transformou em um exercício de prazer e de descoberta, é ameaçada pela culpa e pelas proibições da prima Emília, que apontava o folheto como obra de protestantes e sugestão do diabo.

Fernando

Este capítulo apresenta uma personagem protegida do coronelismo que existia na região: Fernando. Por causa disso, dedica-se a inúmeras maldades e crimes, até mesmo abusando sexualmente de várias mulheres. Um tipo que, já no aspecto físico, dava medo nas pessoas, com o "olho duro", a "voz áspera", grosseirão, "o ar de insuficiência e impostura", os modos, e tantas outras coisas negativas que deixaram uma das recordações mais desagradáveis em Graciliano. Sim, não sorria. Mas além do aspecto físico, Fernando era um homem mau. Valendo-se do parentesco com o manda-chuva do lugar, fazia as piores maldades, entre elas a de desvirginar moças humildes que depois se prostituíam. Na percepção do menino Graciliano, não havia mais ninguém tão mau no mundo. E quando leu em um "dicionário encarnado" que Nero tinha sido o maior dos monstros, duvidou: maior do que Fernando? Mas Nero nunca lhe havia feito mal, ao contrário de Fernando, que o atormentava. Torna-se, aos olhos do narrador, o monstro, o vilão. Mas é alguém que vai proporcionar ao garoto mais uma experiência sobre o caráter humano. Houve um momento em que haviam desmontado um caixote. O vilão acaba dando uma bronca nos trabalhadores, porque estes haviam deixado várias tábuas no chão e uma delas podia, com seus pregos expostos, ferir o pé de uma criança desavisada.

Jerônimo Barreto

Graciliano havia esgotado seu diminuto universo de leituras. Como aumentá-lo? É aconselhado a pedir ajuda a Jerônimo Barreto, dono de uma vasta biblioteca. É tocante a humildade com que, com estranha desenvoltura, o menino faz seu pedido. É tocante também o cuidado que tem com o livro (o primeiro volume fora O Guarani, de José de Alencar), embrulhando a capa em papel, tomando cuidado até para não amassar as páginas. E o resultado também é tocante: o universo cultural do garoto vai ser imensamente ampliado. Tanto que leva vantagem na escola. Sempre tinha notas mais baixas nas provas, pelas já conhecidas dificuldades em relação ao estudo, enquanto os outros alunos se destacavam. No entanto, esses decoravam informações que após a prova eram esquecidas. Um dia, o professor aplicou uma prova surpresa e o pouco que Graciliano conhecia tornou-se muito em relação aos outros alunos. Poderia ser um conhecimento que não se encaixava integralmente ao currículo, mas era algo que impunha respeito. O protagonista já estava, pois, derrubando seus obstáculos, graças à leitura.

Venta-Romba


Este capítulo é irmão de “Um Cinturão”. Nele, ficamos sabendo que o pai de Graciliano Ramos havia sido escolhido para juiz substituto. Torna-se, portanto, uma autoridade. Em certo dia, um mendigo, Venta-Romba, entra inadvertidamente na casa do protagonista, chega até a sala para pedir esmola. Causa tumulto. A mãe rispidamente pede para que ele se retire. O pobre fica atrapalhado, sem reação, estático. Foi pior, pois aquilo foi interpretado como uma afronta. Imediatamente chega o pai, com um soldado, determinando a prisão do invasor. A pífia figura apenas pergunta o porquê de o doutor estar fazendo aquilo, o porquê de estar sendo preso. Mal-estar. Mas não havia como voltar atrás. Tinha que se demonstrar autoridade. E o coitado foi levado para a prisão. A partir desse episódio, aumentou a desconfiança do protagonista nas autoridades e na justiça. E também foi a partir daí que se tornou um filho desafiador e desrespeitador.

Mário Venâncio


Outro passo importantíssimo para a libertação de Graciliano. Graças à influência de Mário Venâncio, entra para uma sociedade teatral. Cria-se uma escola dramática. Além disso, faz parte de um jornal literário, o Dilúculo. Esse termo, que significa “alvorada”, lembra as palavras-jóias do Parnasianismo. E de fato a linguagem dos demais redatores é por demais rebuscada, decepcionando o narrador. Era o que estava na moda na época, o que o fazia sentir vergonha de não gostar dela, muito menos dos textos e dos temas várias vezes abordados. Mas intui que está com a razão. Traz imbuídas as mudanças modernistas. Nasce, aqui, o escritor.

Seu Ramiro

Como juiz substituto, o pai de Graciliano sente-se na obrigação de hospedar constantemente pessoas. Uma delas, no seu raciocínio pragmático, poderia trazer-lhe dividendos políticos e econômicos. É por causa disso que acaba conhecendo Seu Ribeiro, homem que inspirava autoridade e que viera para implantar uma sede maçônica em Viçosa. Até o pai embarca nessa empreitada. Mas decepciona-se, muito provavelmente porque o sujeito desaparecera, devendo ao comerciante uma considerável soma em dinheiro.

A Criança Infeliz


Este capítulo conta a apresentação de uma personagem que consegue ser mais desgraçada que o narrador. Ninguém lhe tem respeito, nem mesmo sua família. Seu pai o espancava constantemente, sob a alegação de que não prestava. Na escola, era isolado e quem se aproximava dele era execrado. Até o professor se dirigia a ele de maneira claramente ofensiva. O motivo para tamanha aversão não fica claro. Apenas algo fica no ar, quando se diz que os garotos mais velhos é que se comunicavam com ele e por meio de um código secreto. E, como produto de todo esse meio massacrante, acaba por se tornar um bandido da pior espécie e dono da várias mulheres. É na casa de uma delas que termina por ser assassinado pelos seus inimigos.

Laura

Laura é o nome da famosíssima musa de Petrarca, o que cria toda a imagem da mulher como um ser puro e sublime. Coincidência ou não, esse é o nome da paixão que Graciliano vai ter na escola. E ela marca as mudanças que o próprio protagonista sente em seu corpo. Esta crescendo. O ponto mais interessante é sua iniciação sexual, meio atrapalhada, com Otília. Deixa de lado aquela idealização provocada pela figura de Laura. Tanto que o livro O Cortiço, que tinha escondido por detrás de sua prateleira, depois de conhecido os caminhos da carne, é retirado de sua reclusão e posto à frente. Já não está mais na infância.

Fonte:
Ilca Vieira de Oliveira, Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros. Disponível em Passeiweb. http://www.passeiweb.com/estudos/livros/infancia.