Diz que índio não educa filho. Aliás, não é propriamente isso: o que se conta é que índio não disciplina as crianças, não as castiga. Curumim é um bicho livre, faz o quer, com muito poucas restrições. Os pais são os mais condescendentes do mundo e muito carinhosos. Apenas quando uma criança, por acaso, faz qualquer coisa que irrite ou incomode pai ou mãe, o pai encolerizado passa a mão no primeiro objeto contundente que tiver próximo e o atira contra o filho. Se não pegar, muito bem, se pegar, azar do menino.
Pode haver, num caso desses, um acidente grave - paciência. Não é raro ver-se um rapaz com uma grande cicatriz num braço, na face - foi a mãe quem lhe atirou um terçado quando, em garoto, ele atormentava um irmão menor. E não há ressentimentos, mesmo quando o rebolo maltrata muito. Paulada, pedrada ou coisa pior é recebida e dada mais ou menos como um ato da natureza. Nem o pai ou a mãe, ocasionalmente criminoso, responde perante qualquer autoridade da tribo pelo ato culposo. Parece que, pela jurisprudência bugre, explosões de cólera, por mais violentas, são consideradas atos legítimos. Ou, pelo menos, fruto de loucura temporária, durante a qual não se pode ser responsável.
Pois me aconteceu que, algum tempo atrás, visitando o equivalente americano de uma escola normal nos Estados Unidos, assisti a um pedaço de aula. E escutei da professora esta preleção: "Bater no seu filho num arrebatamento de cólera é errado, mas de qualquer forma se compreende - e a criança compreenderá. Mas, friamente, deliberadamente espancar o seu filho por suposto fim pedagógico é ato de crueldade premeditada, que não educa, só pode criar ressentimento - o qual provavelmente seu filho nunca esquecerá e talvez jamais perdoe."
Por aí se vê que os mais modernos e requintados atos pedagógicos e o primitivismo selvagem novamente se encontram. Depois de tantos séculos - de milênios, mesmo, de pedagogia, revertemos ao índio bravo...
Aliás, parece que nos Estados Unidos se sofre há anos uma reação contra os cânones duríssimos da feroz educação puritana e - queixam-se os saudosistas - cai-se em excesso oposto de indisciplina e liberdade. É um fato que crianças americanas, de acordo com os padrões antigos, são em geral pouco controlados, ou controláveis. Tratam pai e mãe com grande liberdade, "respondem", reclamam muito, exigem, quase não reconhecem autoridade.
Uma senhora brasileira me disse, lá, que "não há quem possa com eles" e o seu grande desgosto era não poder subtrair os netos à influência de colegas e amiguinhos. Mas via-se vencida, pois os pais dos garotos já aderiam à nova moda, incontestavelmente mais cômoda. O fato é que menino americano tem mesmo outra liberdade, preparatória da liberdade dos adolescentes que, segundo se diz, é total.
Mas o que é realmente louvável na educação das crianças americanas é o senso de responsabilidade que desde cedo lhes é incutido - o sentimento de pertencer a um grupo - a família - e ser responsável pelo bem-estar desse grupo. Não se conhecem lá os nossos odiosos pequenos príncipes, que vivem pela mão das mães e babás: não sabem calçar um sapato, abotoar a camisa, nem sequer lavar a cara. Lá, criança desde que aprende a andar, aprende a cuidar de si. A vestir-se; a tomar banho só; a arrumar a cama; a arranjar a roupa; a enxugar o banheiro depois de usá-lo.
Dada a dificuldade ou total ausência de empregadas domésticas, é a mãe quem tudo faz dentro de casa - mas com os filhos e marido ajudando. É muito bonito e cordial aquele sistema de cooperação doméstica. Tão diferente daqui do Brasil quando, na falta de empregadas (falta que já é permanente nas nossas grandes cidades), o jovem princês continua a exigir da mãe os seus hereditários privilégios e não se envergonha de sobrecarregá-la de trabalho - e tome roupa pelo chão, cama desmanchada, banheiro molhado e sujo de areia da praia, refeição a qualquer hora do dia. Não lhe ocorre que está sendo pesado e injusto - seja com a mãe ou com a empregada - e, o que é pior, faltando ao mais elementar cavalheirismo. Isso ele talvez nem saiba o que é.
Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 26 de outubro de 2002.
Pode haver, num caso desses, um acidente grave - paciência. Não é raro ver-se um rapaz com uma grande cicatriz num braço, na face - foi a mãe quem lhe atirou um terçado quando, em garoto, ele atormentava um irmão menor. E não há ressentimentos, mesmo quando o rebolo maltrata muito. Paulada, pedrada ou coisa pior é recebida e dada mais ou menos como um ato da natureza. Nem o pai ou a mãe, ocasionalmente criminoso, responde perante qualquer autoridade da tribo pelo ato culposo. Parece que, pela jurisprudência bugre, explosões de cólera, por mais violentas, são consideradas atos legítimos. Ou, pelo menos, fruto de loucura temporária, durante a qual não se pode ser responsável.
Pois me aconteceu que, algum tempo atrás, visitando o equivalente americano de uma escola normal nos Estados Unidos, assisti a um pedaço de aula. E escutei da professora esta preleção: "Bater no seu filho num arrebatamento de cólera é errado, mas de qualquer forma se compreende - e a criança compreenderá. Mas, friamente, deliberadamente espancar o seu filho por suposto fim pedagógico é ato de crueldade premeditada, que não educa, só pode criar ressentimento - o qual provavelmente seu filho nunca esquecerá e talvez jamais perdoe."
Por aí se vê que os mais modernos e requintados atos pedagógicos e o primitivismo selvagem novamente se encontram. Depois de tantos séculos - de milênios, mesmo, de pedagogia, revertemos ao índio bravo...
Aliás, parece que nos Estados Unidos se sofre há anos uma reação contra os cânones duríssimos da feroz educação puritana e - queixam-se os saudosistas - cai-se em excesso oposto de indisciplina e liberdade. É um fato que crianças americanas, de acordo com os padrões antigos, são em geral pouco controlados, ou controláveis. Tratam pai e mãe com grande liberdade, "respondem", reclamam muito, exigem, quase não reconhecem autoridade.
Uma senhora brasileira me disse, lá, que "não há quem possa com eles" e o seu grande desgosto era não poder subtrair os netos à influência de colegas e amiguinhos. Mas via-se vencida, pois os pais dos garotos já aderiam à nova moda, incontestavelmente mais cômoda. O fato é que menino americano tem mesmo outra liberdade, preparatória da liberdade dos adolescentes que, segundo se diz, é total.
Mas o que é realmente louvável na educação das crianças americanas é o senso de responsabilidade que desde cedo lhes é incutido - o sentimento de pertencer a um grupo - a família - e ser responsável pelo bem-estar desse grupo. Não se conhecem lá os nossos odiosos pequenos príncipes, que vivem pela mão das mães e babás: não sabem calçar um sapato, abotoar a camisa, nem sequer lavar a cara. Lá, criança desde que aprende a andar, aprende a cuidar de si. A vestir-se; a tomar banho só; a arrumar a cama; a arranjar a roupa; a enxugar o banheiro depois de usá-lo.
Dada a dificuldade ou total ausência de empregadas domésticas, é a mãe quem tudo faz dentro de casa - mas com os filhos e marido ajudando. É muito bonito e cordial aquele sistema de cooperação doméstica. Tão diferente daqui do Brasil quando, na falta de empregadas (falta que já é permanente nas nossas grandes cidades), o jovem princês continua a exigir da mãe os seus hereditários privilégios e não se envergonha de sobrecarregá-la de trabalho - e tome roupa pelo chão, cama desmanchada, banheiro molhado e sujo de areia da praia, refeição a qualquer hora do dia. Não lhe ocorre que está sendo pesado e injusto - seja com a mãe ou com a empregada - e, o que é pior, faltando ao mais elementar cavalheirismo. Isso ele talvez nem saiba o que é.
Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 26 de outubro de 2002.
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