sábado, 1 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Os Aprendizes)

Esse caso passou-se, faz tempo, pouco depois de nos mudarmos para o Leblon, que era ainda um bairro adorável e tranquilo, sem grades nos edifícios - aliás, poucos edifícios e ainda muitas casas com jardim e quintal. Hoje, não sei se foi o Leblon que mudou, mas quanto a mim, sei que mudei muito, quase não saio de casa e, em sã consciência, não posso dizer se é melhor agora ou era melhor então.

Mas voltemos à historinha que eu ia contar: A gente saiu à praia manhã cedinho, quase com escuro. O tal vendedor de mexilhão nos avisara que chegava às cinco horas, trazendo os mexilhões da Ilha das Cigarras, sem poluição, arrancados das pedras, e não de casco de barco, como vendem por aí. Nós chegamos às 5, as luzes do calçadão ainda acesas, mas do vendedor nem sinal. Sentamos na calçada, mas soprava um ventinho frio, resolvemos caminhar um pouco. Não se tinha andado quase nada, quando demos com um pequeno ajuntamento em torno de qualquer coisa que estava dentro de um desses valões cavados na praia pela ressaca.

Um monte oblongo de areia molhada interrompia o valão. E na borda desse monte de areia apareciam os dedos de um pé, com as unhas pintadas de vermelho vivo. E os dedos mexiam!

Um moço forte, corredor de cooper - ainda se diz assim? - ajoelhou junto e começou a afastar com as mãos a areia frouxa e úmida que cobria o outro pé, a perna, as coxas. Uma mulher ajoelhada perto de onde deveria estar a cabeça, cavava também e de repente gritou "Está mesmo viva!".

Nessa altura já uns dez pares de mãos desenterravam a moça que não estava nua como a princípio se pensara, mas trajava short e bustier. Então a mulher da cabeça gritou: "Não está respirando, não está respirando mais!"

O moço corredor mudou de posição; tomou o lugar da mulher, afastou do rosto da moça - morta ou desacordada? - o cabelo empapado de areia, olhou em torno e anunciou: "Vou fazer respiração boca a boca!"

As pessoas se aproximaram mais, avidamente, como se fossem assistir a uma cena de sexo explícito. O moço, que até se parecia um pouco com galã de televisão, enterrou a mão sob a nuca da vítima e tacou-lhe um beijo, no melhor estilo de novela. Os dedos dos pés mexeram de novo; o rapaz levantou a cabeça e disse, sóbrio: "Reparem, ela já está respirando."

Aí uma menina gorda, que a mãe levava pela mão, evidentemente para obrigar a exercício, comentou bem alto: "Também, com aquele tamanho chupão!"

A mãe deu um beliscão no braço grosso da filha, e ralhou: "Que palavra feia!

Onde você aprendeu isso?"

Agora já era visível para todos que a moça respirava. Foi puxada do buraco, meio sentada, apoiada ao peito do seu salvador.

A mãe da filha gorda perguntou de repente: "Terá sido estuprada?" E um idoso senhor de uniforme esportivo, tranquilizou: "Não, olhe o calçãozinho dela, está direito no lugar."

Aí alguém viu, no pescoço da moça, uns arranhões que ainda sangravam levemente, misturados com a areia. O senhor de roupa esportiva continuava observando: "São arranhões feitos por unhas."

"Quem sabe não foi um vampiro?" - falou a garota gorda.

Ninguém falou nada, mas alguns se entreolharam.

A mulher, ainda ajoelhada, pegou nas mãos largadas da vítima, olhou os dedos: "Roubaram também um anel. Está arranhado, olhem!"

Sempre encostada ao peito do rapaz, a moça afinal abriu os olhos e, vendo toda aquela gente aglomerada ao seu redor soltou um grito. Mas descobrindo apenas faces benévolas, perguntou ansiosa: "Cadê os pivetes?" Todo mundo rosnou: "Ah, foram os pivetes!" E a moça explicou entrecortado: "Me bateram na cabeça, eu caí." Daí, não se lembrava mais.

O senhor disse: "Bateram nela, desacordaram, arrastaram para o valão, cobriram de areia..." Outros completaram: "A sorte é que a areia foi pouca, não sufocou." Alguém de repente exclamou: "E a polícia? É bom chamar a polícia. Onde tem um telefone?"

Nos oferecemos, nossa casa era perto. Saímos correndo, para telefonar. E cruzamos com o homem dos mexilhões que parou, espantado, vendo que eu passava célere, lhe dizendo: "Só depois, só depois!"

 Fonte:
Jornal Estado de São Paulo . 14 de setembro de 2002

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