Chuchundra é um animalzinho triste, que
choraminga toda noite, experimentando ganhar coragem para correr pelo meio dos
quartos sem jamais o conseguir.
- Não me mate ! exclamou Chuchundra quase
em lágrimas.
- Julgas por acaso que um matador de
serpentes persiga ratos mosqueados? - respondeu Rikki com desprezo.
- Os que matam serpentes serão por ela
mortos - disse Chuchundra sempre choroso. - E como estarei seguro de que Nag
não me tome por você durante alguma noite escura ?
- Não há o menor perigo, respondeu
Rikki-tikki, porque Nag mora no jardim e você não anda por lá.
- Meu primo Chua, o rato, contou-me que...
- ia dizendo Chuchundra, mas interrompeu-se.
- Que contou ele ?
- Caluda! Nag anda por toda parte, Rikki.
Você devia conversar com Chua, no jardim.
- Não o conheço. Conte logo o que ele
disse. E depressa, Chuchundra, que se não...
Chuchundra sentou-se e duas lágrimas lhe
rolaram pelos bigodes.
- Sou um coitadinho, soluçou ele, que nunca
teve coragem de correr pelo meio dos quartos... Caluda! Não é preciso que eu
fale. Não está ouvindo nada, Rikki?
Rikki-tikki pôs-se à escuta. A casa estava
imersa no maior silencio, mas mesmo assim pareceu-lhe ouvir um imperceptível
"crá-crá...", um leve rumor como de abelha caminhando sobre vidro de
vidraça ... um esfregar seco de escamas sobre o tijolo.
- É Nag, ou a esposa de Nag, que para cá vem
vindo pelo cano d'água do banheiro, murmurou a mangusta. Você tem razão,
Chuchundra. Eu devia ter conversado com Chua.
Disse e dirigiu-se, cautelosa, para a sala
de banho de Teddy, onde nada encontrou; de lá encaminhou-se para a sala de
banho da mãe de Teddy. Viu logo no rodapé da parede urna abertura para o
escoamento da água, através da qual pode ouvir a conversa de Nag e Nagaína lá
fora, no
jardim. Dizia Nagaína:
- Quando a casa ficar vazia ela terá de
mudar-se daqui - e nós então ficaremos de posse do jardim. Entre devagar e não
se esqueça de que o homem que matou Karait é a pessoa que deve ser mordida em
primeiro lugar. Depois venha contar-me como a coisa foi e combinaremos o modo
de atacar Rikkitikki.
- Mas está você certa de que teremos alguma
coisa a ganhar matando tanta gente? - indagou Nag.
- Teremos tudo a ganhar. Havia mangusta no
jardim quando a casa esteve desabitada? Se a casa ficar novamente vazia
voltaremos a ser os donos do jardim - e não se esqueça de que logo que os
nossos ovos, no canteiro dos melões, terminem o choco (será talvez amanhã), as
cobrinhas vão ter necessidade de espaço e sossego.
- Não pensei nisso, observou Nag. Vou
iniciar o ataque, mas acho inútil dar caça a Rikki-tikki logo em seguida.
Matarei o homem, a mulher e, caso possa, também o menino; depois voltarei
tranqüilamente. Vendo a casa vazia, Rikkitikki muda-se logo.
Rikki-tikki estremeceu do focinho a cauda,
de raiva, ao ouvir tal conversa. Logo em seguida a cabeça de Nag surgiu na
abertura, seguida de metro e meio de corpo escamoso e frio. Apesar de furiosa,
Rikki-tikki não deixou de amedrontar-se diante do tamanho da serpente. Nag
ergueu a cabeça e olhou para dentro do banheiro, então no escuro. Rikki viu
seus olhos brilharem.
- Se a mato aqui, refletiu a mangusta,
Nagaína virá a saber; e se para atacá-la eu espero que Nag saia do buraco, as
vantagens ficam do lado dele. Que fazer?
Nag saiu do buraco e coleou pelo assoalho;
Rikki ouvia-o beber num jarro bojudo de encher a banheira.
- Está bem, disse a cobra. Quando Karait
foi morta, o homem tinha na mão um pau. Ele pode ter ainda esse pau, mas se
vier ao banho pela manhã certo que não o trará consigo. Esperarei por esse
momento. Está-me ouvindo, Nagaína? Vou esperar aqui até pela manhã.
Não veio nenhuma resposta de fora, o que
fez crer à mangusta que a outra cobra já se tinha ido. Nag enrodilhou-se no
jarro e Rikki permaneceu imóvel, como morta.
Ao cabo de uma hora, porém, começou a
mover-se lentamente na direção do jarro. Viu que Nag estava adormecida; pôde
correr os olhos pelo seu longo dorso a fim de estudar em que ponto morder.
- Se não lhe quebro a espinha do primeiro
bote, pensou ela, Nag poderá ainda lutar - e se Nag luta, ai de Rikki!...
Considerou depois a espessura do pescoço da
cobra logo abaixo do capelo e achou muito para sua boca; mas uma mordida mais
para perto da cauda só serviria para tornar a serpente ainda mais furiosa.
- É preciso ser na cabeça, resolveu-se por
fim; na cabeça, bem rente ao capelo; e, quando a agarrar, tenho de ficar
agarrada, haja o que houver.
Deu o bote. A cabeça da cobra jazia um
tanto afastada do jarro, bem sob a curva da asa; logo que seus dentes ferraram,
Rikki encostou o cangote de encontro ao rebojo da vasilha, a fim de melhor
manter a cabeça junto ao chão. Isso lhe deu melhor jeito. Mas foi sacudida da
direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, como
rato seguro em boca de cão - e para diante e para trás, e para cima e para
baixo, e em círculos largos e curtos. A mangusta, porém, que estava os olhos
bem rubros, manteve-se firme, enquanto a cauda da serpente chicoteava às tontas,
derrubando saboneteiras e escovas, e ressoando surda de
encontro ao metal da banheira. Sempre
firme, a mangusta apertava os dentes cada vez mais, pois que, certa como estava
de ser batida na luta, queria ao menos, para honra da raça, que a encontrassem
de dentes cerrados. Sentia-se já completamente tonta, moída de golpes, como prestes
a desfazer-se em pedaços, quando algo atrás dela estrondou
horrível, e uma fulguração quente a pôs sem
sentidos, com a pelagem tostada.
Desperto pelo barulho, o pai de Teddy havia
pulado da cama e viera disparar a sua espingarda de dois canos bem sobre o
capelo da cobra.
Rikki-tikki, de olhos fechados, continuava
de dentes cerrados, convencida de que estava morta e bem morta; mesmo assim
percebeu que a cabeça da cobra não mais se mexia e que o homem a levantava do
chão, dizendo:
- A mangusta outra vez, Alice; acaba de
salvar as nossas vidas, esta amiguinha...
A mãe de Teddy acudiu, muito pálida, e
contemplou os restos mortais de Nag, enquanto Rikki-tikki se arrastava para o
quarto do menino, onde passou o resto da noite a estudar-se cuidadosamente, a
ver se realmente estava partida em vinte pedaços, como supunha.
Ao romper da manhã mostrava-se muito
satisfeita com a sua façanha.
- Tenho agora de justar contas com Nagaína,
que é pior que cinco Nags; e há ainda os ovos que estão em fim de choco. Ai,
ai, ai! Preciso ver Darzee...
Sem esperar pelo almoço, correu para o
espinheiro, onde encontrou Darzee entoando um canto de triunfo no tom mais alto
possível. A notícia da morte de Nag já havia dado volta ao jardim, depois que
um criado lançou o cadáver da cobra à estrumeira.
- Ó estúpido chumaço de penas! exclamou
Rikki-tikki encolerizada. É então tempo de cantar?
- Nag morreu - morreu - morreu! cantava
Darzee. A corajosa Rikki-tikki agarrou-a pela cabeça e não largou mais. O homem
veio com o canudo comprido que faz pum! e Nag foi partida em dois pedaços!
Nunca mais nos comerá os filhotes...
- Tudo isso é verdade, mas onde está
Nagaína? - indagou Rikki-tikki, olhando cautelosa para os lados.
- Nagaína chegou até a boca do esgoto do
banheiro para chamar Nag - disse Darzee, mas Nag saiu na ponta dum pau,
pendurada, e foi dormir no monturo. Cantemos louvores à grande mangusta de olho
vermelho!
E Darzee estufou o papo e cantou...
- Se eu pudesse alcançar esse ninho, dava
com os filhotes no chão! - gritou a mangusta. Vocês não sabem fazer nada a seu
tempo. Aí no ninho estão os dois bem seguros, mas cá embaixo tudo me cheira a
guerra e perigos. Pare um minuto com essa cantoria, Darzee!
- Pelo amor da grande, da bela, da heróica
mangusta, vou calar-me - respondeu Darzee. Que é que teme a matadora da
terrível Nag?
- Temos Nagaína. Onde anda ela?
- No monturo, perto da cocheira, chorando a
morte do marido. Viva Rikki-tikki, a gloriosa heroína dos dentes brancosl
- Para o diabo meus dentes brancos! Não sabe
você por acaso onde Nagaína guarda seus ovos?
- Sei, sim. Estão no canteiro dos melões,
no lugar onde o sol bate o dia inteiro. Faz já muito tempo que ela os escondeu
lá.
- E só agora lembra-se você de contar-me
isso ? Perto do muro, não é?
- Será que Rikki-tikki quer comer os ovos
da cobra?
- Comer, propriamente, não, Darzee. Venha
cá. Se você tiver um grão de juízo na cabecinha, vai já à estrumeira, fingindo
estar de asa quebrada, para que Nagaína o persiga até àquela moita. Tenho de ir
ao canteiro dos melões, mas sem que Nagaína me veja.
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continua
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