quarta-feira, 12 de março de 2014

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) II

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado ! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o capelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco – e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu capelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. - Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direito de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigiava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag moleou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás! - cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado! Malvado Darzee! - exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas é tão minúscula que ninguém lhe presta atenção - o que a faz ainda mais perigosa.

Os olhos de Rikki-tikki tornaram-se novamente rubros e, erguendo-se, ela dirigiu-se para Karait, com o bamboleio de corpo herdado de sua raça. Parecia cômico aquele andar, mas era sábio, porque lhe punha o corpo num tal equilíbrio que num dado momento podia, veloz como o relâmpago, mudar de direção para onde conviesse, o que constitui grande vantagem para quem vive em luta com as serpentes. Rikki-tikki, ignorando isso, estava a fazer coisa muito mais perigosa do que combater Nag; Karait era tão pequenina e movia-se com tanta agilidade que, a não ser que fosse agarrada rente à cabeça, poderia, num contragolpe, atingir a mangusta no olho ou no focinho. Rikki não sabia disso e, com os olhos em fogo, bamboleava-se naquele balanço de equilíbrio, procurando o momento de dar o golpe. Karait avançou. Rikki saltou de lado e fugiu com o corpo, a tempo de livrar-se, por um fio de cabelo, do pequenino bote da cabecinha empoeirada.

Teddy gritou para dentro:

- Venham ver uma coisa! A mangustinha está caçando uma cobra!...

Rikki ouviu a mãe do menino dar um grito, enquanto o pai se precipitava para o jardim, de bengala na mão. Nesse entremeio Karait desferiu novo bote, que também falhou e Rikki-tikki caiu sobre ela, ferrando-a no ponto próprio, bem junto à cabeça. A mordedura paralisou-a, e Rikki ia devorá-la, a começar pela cauda, quando se lembrou que tais refeições deixam o corpo pesado. Ora, ela tinha necessidade de dispor, dum momento para outro, de toda a sua força e ligeireza para o recontro com as cobras grandes. Ficou, pois, em jejum e foi espojar-se no pó, sob uma touça de mamoeiros, enquanto o pai de Teddy dava umas últimas bengaladas no cadáver de Karait.

- Para que isso? - pensou Rikki-tikki. Eu já a matei.

A mãe de Teddy desceu ao jardim ainda aflita e tomando nos braços a mangusta apertou-a ao peito, dizendo entre lágrimas que ela havia salvo seu filho da morte; o pai do menino concordou que aquela mangustinha era providencial. Teddy olhava para os dois com os olhos muito arregalados.

E no íntimo Rikki-tikki divertiu-se com a cena, embora a não compreendesse. Ao jantar, passeando dum extremo a outro sobre a mesa, por entre pratos e copos, poderia ter-se regalado de tudo quanto quisesse; mas a lembrança de Nag e Nagaína a fazia manter-se em jejum. E conquanto lhe fosse agradável ser amimada pela mãe de Teddy, para cujo ombro saltou, seus olhos de quando em vez tornavam-se rubros e de sua garganta saía o grito de guerra: Rikk-tikk-tikki-tikki-tchek!
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continua

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