sábado, 1 de março de 2014

Miguel Reale (Cultura e linguagem)

O problema da linguagem, desde Saussure, adquiriu um papel singular na história das ciências até culminar na afirmação de que cada ciência tem a sua linguagem e, mais ainda, que, no fundo, ela se confunde com a sua própria linguagem.

Conhecer dada ciência implica, efetivamente, tornar-se dono das palavras que compõem o seu objeto, coincidindo o seu vocabulário com o campo de sua específica atividade. Não há, em suma, senão ciência de um determinado ramo do conhecimento, não havendo quem possa abranger a totalidade dos sempre crescentes domínios do saber positivo. Donde a impossibilidade de reduzir a ciência a uma "enciclopédia", ou seja, a um conjunto único abrangente de todos os tipos de conhecimento e atividades existentes.

Mas o fato de a linguagem se distribuir entre múltiplas e distintas formas de saber não significa que ela não tenha algo em comum, ou, por outras palavras, que ela não seja o elemento fundamental distintivo do ser humano.

A bem ver, o Homo sapiens não surgiu, no mais remoto tempo, por ter assumido uma posição ereta, combinando o poder criador da mente com a liberdade de servir-se dos braços e da mão, mas também por ter-se tornado senhor da arte de comunicar-se com os demais indivíduos, substituindo o grito animalesco pela palavra aliciadora.

Têm razão, por conseguinte, Heidegger e Gadamer quando proclamam que a linguagem é o solo da cultura, entendida esta não apenas como a capacidade de participar de um número cada vez maior de valores intelectuais ou artísticos, mas antropologicamente, como acervo de tudo aquilo que a espécie humana veio acumulando ao longo de sua experiência histórica. Daí poder-se dizer que o ser do homem é o seu dever ser consubstanciado na linguagem que o tornou capaz de realizar-se como pode e deve fazê-lo. Parece-me essencial essa dupla compreensão do ser humano em seu dever ser através da linguagem.

Ora, assim como a linguagem da ciência corresponde aos diversos campos do saber e da ação, por outro lado, esses campos não ficam isolados, mas se intercomunicam uns com os outros, motivo pelo qual a cultura é sempre mais interdisciplinar, até o ponto de já se ter concebido a Filosofia como a teoria do discurso comunicativo, ou, como prefiro dizer, da "perene permuta de significados", pois é tão importante nos comunicarmos como termos ciência daquilo que se comunica.

Por tais razões não concordo com aqueles que reduzem a Filosofia à teoria da linguagem, concebida esta tão-somente segundo seus valores morfológicos e lógicos, quando a Semiótica é cada vez mais entendida como teoria da significação e o significado das palavras através do tempo se confunde com a própria existência humana. Isto posto, parece-me que não nos podemos limitar à análise da linguagem sem indagar da fonte de que ela emana, que é o espírito, a consciência, a mente - ou que melhor nome tenha - dotada do poder de criação ou instauração de coisas novas, que Kant qualificou como "poder nomotético" ou regulador. É o espírito que procura estabelecer as leis que presidem ao surgimento e ao desenvolvimento dos fenômenos, constituindo as ciências da natureza e humanas.

Delas é inseparável a linguagem, sem a qual não seria possível determinar e expressar os respectivos objetos de indagação, assim como comunicá-los, tornando-os um bem comum da coletividade, para que esta deles faça uso e possa prosseguir, com a certeza e a segurança possíveis, no seu empenho de tudo explicar e compreender. A linguagem é, como se vê, um produto primordial do espírito. Como tal deve ser considerada, mas não como algo válido em si e por si, abstração feita de seu criador, isto é, da pessoa humana que dá nome a tudo o que existe, compondo o mundo da cultura. É o motivo pelo qual apresento a pessoa humana como valor - fonte de todos os valores.

A cultura, por conseguinte, é o complexo e sempre inconcluso mundo dos objetos do conhecimento, sendo a linguagem a sua expressão comunicativa, pois dar nome às coisas significa criá-las e dar-lhes significado, razão pela qual acertadamente afirma Gadamer que toda criação, tanto nas ciências como nas artes, no fundo, constitui um ato de interpretação ou de hermenêutica. Esta, com efeito, não fica restrita ao valor das palavras isoladas, mas procura captar o sentido global que elas têm em dado campo da pesquisa ou da atividade.

Para dar um exemplo do conhecimento como uma visão unitária e integral, pense-se num contrato, cujo significado só se apreende com acerto mediante o estudo correlacionado de todas as suas cláusulas. O mesmo acontece em qualquer campo de cognição, que pressupõe sempre a integração progressiva de signos e significados, até se atingir a visão global do que se tem em vista conhecer.

Donde a importância de cada vez mais apurado estudo da linguagem, quer de maneira geral, quer atendendo especificamente às peculiaridades de cada ramo da pesquisa. O progresso da cultura depende de sua correlação primordial com a linguagem, o que induz alguns pensadores ao exagero de tudo reduzir a esta, vendo a ciência como um puro problema linguístico.

A visão necessária de integralidade tem como consequência a universalização da cultura, o que leva à previsão de uma língua universal, pelo menos de caráter subsidiário, como já está acontecendo com o inglês, considerado "a fala do computador". Eis aí um dos problemas mais difíceis e complexos de nosso tempo, que é o da sobrevivência das culturas nacionais e dos respectivos idiomas.

A meu ver, não há dúvida que as ciências naturais tendem à unificação, de tal modo que elas serão cada vez mais transnacionais, universalizando-se as formas de comunicação dos cientistas que operam em todos os países. Há nestes, porém, situações ou formas de vida que lhes são peculiares, notadamente no plano das ciências humanas, das religiões e das artes, cujo desaparecimento, por força de uma total globalização, longe de representar progresso cultural, constituiria um regresso, com a perda de valores humanísticos essenciais. Nada me parece justificar esse desmoronamento de distintas e diversificadas unidades culturais, inclusive do ponto de vista da linguagem, uma vez que há uma pluralidade de idiomas representativos de patrimônios existenciais de substancial relevância para o destino da civilização contemporânea.

 Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 14  de setembro de 2002

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