sábado, 22 de março de 2014

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos) 2

OUTONO
 

A bailarina
para o passo
estanca o corpo
                 diáfano
esconde o sorriso
               radiante

estar ali por instantes

               triste
     bailarina
  parada

sua a dor da descoberta
sua a intenção revelada
sua a vontade primeira

 descalça as sapatilhas
                           e as joga fora
sem cumprimentar ninguém
                                  vai embora.

DESCONHECER

Do que não conheço:
             a distância rítmica com que as lembranças
             se iludem em imagens e fotografias
             de altos prédios de faz de conta e o transatlântico
    dobra outro cabo
                        há desesperança em seu apito
                  frêmito e fremido em espadas divinas
          arestas mal aparadas
          e eu aqui
                    parado confesso e conto
não os reconheço vizinhos e parentes
sei que suas faces obscurecem e branqueiam
enquanto atrás das vidraças quando passo
no trajeto com o livro embaixo do braço
                           no banco da praça leio
                     as palavras que por lá brincam e conversam

desconheço:
            ordens e comandos
                                pois avesso ao começo
                        em viagens enjoo a chegada
                        não carrego malas
                                                 e chapéus
                                                        nem bengalas
                                                 (apenas) levo o que livro.

VIAGEM

Espaço
         tempo
espaçonave

      aqui
     e lá
agora

o corpo com que viaja
traz a imagem
                  do lado de fora

escuro
tempo
a nave

silêncio
dentro e fora
                estática.

HORAS

São horas tantas
passadas
nas músicas repetidas
aos gritos
no bar da esquina

no barulho irritante
dos móveis arrastados
no andar de cima

são tantas horas
insones
a olhar você
dormindo
com as mãos espalmadas
em abrigo
do rosto descansado
de quem sonha

horas tantas são
esperadas
como se o milagre
pudesse as multiplicar
no meu tanto faz.

VÍRUS

O vírus vive (morre) onde ataca. Destaca
a fragilidade aberta ao contato. Vivencia
o ato da disputa: o revés não o aniquila.
Feito paciente no horário determinado.
O corpo não permite ao vírus a entrada.
Cede no cansaço de anos de batalha.
O vírus permanece na oportunidade.

MISTÉRIO
 

Sobre o mistério de eu ter vindo
no longo serpentear do caminho
ignaro e ignoto homem
                         eu sozinho
refeito em paisagens borradas
pelos olhos anteriores
                         eu distraído
esquecido de ser paragem
no horizonte

            nas tênues - poucas -
luzes
     eu trazido
em oferenda e oferta de carinhos
ensimesmado nos castigos
                              eu parido
em primavera longínqua e esquecida
de uma casa sob a rua
                               eu surgido
no minuto terço
                      eu nascido

não explicam as razões
                                  eu estando
nem dizem que o amor esconde
 o canto
em cantigas antigas
                            eu espanto
                     esperta criança
                                          eu corrido
que aguarda nas noites
                                 eu sofrido
a explicação do mistério e a finalidade
de ter vindo
  e ter estado
                 eu aqui.

VIDA

No zumbido
a zombaria
dos garotos
acompanha
a passagem

a raiva transforma
a reação em nada
e o corpo apressa
o passo

o zumbido ecoa
nos ouvidos
a vida escoa
em passos

os garotos
ficam para trás.

ESQUECER

Cada vez revejo
o olvido

no ouvido permanece
o domingo no zumbido
do coro religioso

cada vez refaço
o olvido

em mim se renovam
expostas palavras
que descortinam
o canto dolente
da língua materna

cada vez recomeço
o olvido.

PAIXÃO

a paixão devora olhos e corações
de épocas e sentidos com que
passamos horas e dias frios
para chegarmos a esse tempo
e encontrarmos o vazio
de não havermos encontrado
a pronúncia exata das palavras
na maneira certa de dizer
estamos aqui e a paixão
permanece em nossos olhos
embaçados em lágrimas
de reconhecimento
como naquelas horas
e como serão em futuros
tempos de mãos entrelaçadas

chegamos sem esquecer e sobrecarregamos
a memória e as lembranças com as imagens
nas músicas em altos sons
       e perguntas presas
    em gargantas curtas
   de desejos e secura

a nossa história recortada em quadros
passados lentamente entre as lentes
dos óculos que usamos e nos servimos
para enxergamos o que não vimos cedo

estávamos cegos em blindagens jovens
e tínhamos a certeza de que as incertezas
seriam dos caminhos as trilhas e as armadilhas
que não nos pegariam na passagem

essa paixão extravasa a hora
fôssemos pessoas espiando
o lado de fora de cada um
meros espantalhos em hastes
de empregos e desesperanças
de que tudo termine logo após
o instante em que os corpos
se desencontrem

somos mais que paixões ardentes
dos dentes cravados das serpentes
ávidos pelo fim da história.

Fonte: 
O Autor

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