domingo, 2 de março de 2014

Graciliano Ramos (Infância) 1a. Parte

Publicado em 1945, Infância é uma autobiografia de Graciliano Ramos que prova ser possível uma obra somar os elementos pessoais com os sociais. Muito do que o autor confessa em suas memórias são problemas que afetaram não só a ele mesmo, mas também o seu meio. Sua dor é também a dor de nosso mundo. Este livro pode ser lido como romance, um conjunto de contos, e como elaboração ficcional de elementos da memória biográfica do autor. Considerando como unidade, contempla um período de amadurecimento da criança exposta como protagonista. Além disso, esse livro lida com elementos que nos fazem entendê-lo como base de todo o universo literário do autor. Nele vemos temáticas que vão povoar suas obras-primas: São Bernardo, Vidas Secas e Angústia.

Em toda a narrativa de Infância, a criança, Graciliano, passa por um processo de aprendizagem e amadurecimento interior, principalmente ao aprender lidar com as perdas e as dores. O momento de descoberta da leitura surge de forma mágica e prazerosa. O livro torna-se um “objeto de desejo” ao ser proibido, pois desperta curiosidade.

No que diz respeito à linguagem, já é lugar-comum da crítica afirmar que Infância é o livro mais bem escrito de quantos realizou Graciliano Ramos, uma vez que aí estariam combinadas a concisão linguística – marca inconfundível do autor – e um intenso lirismo, dificilmente encontrado em seus demais textos. Sem se esgotar, a luta sôfrega que o escritor sabidamente empreendeu com a língua parece aqui alcançar um ponto de equilíbrio, no qual a palavra flui mais natural (menos torturada), e seu potencial expressivo eleva-se enormemente, alcançando muitas vezes o poético.

Em Infância as fronteiras entre o tecido ficcional e referencial se misturam na tessitura narrativa, pois o sujeito empírico recria o passado e procura dar-lhe sentido. O passado do menino entre os seus familiares, principalmente no convívio como os pais e os irmãos, surge através do resgate da memória do escritor adulto. Ao descrever a insignificância do homem frente às circunstâncias da vida, o narrador apresenta-nos o primeiro contato da criança com as letras, descrevendo a experiência árdua que ela teve com as “malditas letras”; entretanto, o prazer de “decifrá-las só acontece na vida da criança quando o texto se torna “objeto proibido” que seduz e desperta curiosidade e interesse.

Na obra pode-se perceber uma nuance particular da junção ética/estética que promove a obra do autor de Insônia: além de dar visibilidade e voz aos seres marginalizados que habitam seus textos, como ocorre na maior parte de seus romances e, via de regra, é um procedimento associado ao posicionamento político do escritor, aqui Graciliano Ramos parece dar um passo a mais, ao abrir espaço e manifestar simpatia não só pelos oprimidos, mas também por aqueles que, circunstancialmente, oprimem. Perpassa o livro um desejo profundo de compreensão do outro, desejo que luta contra mágoas e preconceitos bastante arraigados. Ainda que o traço crítico do autor se mantenha constante, não o deixando deslizar para uma atitude compassiva para com o que relata, o resultado dessa mistura de denúncia e compreensão é uma obra ambígua, aberta: a um só tempo dura e terna.

O primeiro aspecto que chama a atenção é a descrição de Graciliano como uma criança oprimida e humilhada, pois é um ser fraco diante de adultos, mais fortes. Este é um dos cernes de sua visão de mundo: a opressão. Quem tem poder, naturalmente massacra, sufoca.

Também faz parte do seu escopo a secura das relações humanas. De acordo com a obra em questão, esse defeito já vem do seio da família. Sua mãe era extremamente ríspida, fria, o que se percebe pelos apelidos com os quais se dirigia a Graciliano Ramos: cabra-cega (por causa de uma doença que teve nos olhos que impossibilitava sua visão) e bezerro-encourado (bovino órfão que recebia o couro de um outro, já morto, para que a mãe deste, enganada pelo cheiro, permitisse a amamentação do desprestigiado).

Outro ponto perturbado na relação familiar é seu pai, que se mostra extremamente autoritário, déspota e tirano em muitos momentos. O episódio em que surra o filho por achar que este havia sumido com um cinturão (descobre depois que a acusação era falsa) é dos mais dramáticos. Talvez só perca para o momento em que esse autoritarismo se mistura a abuso de poder e injustiça em cima do mendigo Venta-Romba. Discretamente o narrador procura uma justificativa, como os problemas financeiros do pai, mas o estrago na confiança no ser humano já era irremediável.

A situação do protagonista é, portanto, de constante opressão. Mesmo quando não se faz de forma explicitamente violenta, realiza-se por meio dos risos e gozações extremamente humilhantes. Até seu processo de alfabetização é angustiante. Nasce aqui o escritor pessimista, amargo, desencantado com o mundo.

No entanto, sua salvação, ou pelo menos válvula de escape, vai-se manifestar na literatura. Acometido pela doença que o fez ficar temporariamente cego e preso em seu quarto, desperta para o encantamento das palavras, analisando-as, namorando-as, principalmente nas cantigas folclóricas entoadas por sua mãe durante os trabalhos domésticos. Um salto maior surge no contato com a enorme biblioteca de Jerônimo Barreto, que permitiu ao garoto ampliar seus horizontes para um mundo diferente da mesquinharia em que havia crescido. E o escritor nasce com o apoio de Mário Venâncio.

Liberto, graças à literatura, distancia-se da infância. Entra no universo dos adultos. Parte para o mundo. Vai torto, desajeitado, mas firme, resoluto. Sua arte de manejar as palavras será sua arma. Por demais eficiente.

O livro é formado por pequenos capítulos, cada um encerrando uma visão fechada sobre um aspecto da vida do pequeno Graciliano: a casa no sertão, a mudança para Buritis, a lojinha do pai, a primeira ida ao colégio, o padre.

A seguir, segue-se um resumo dos capítulos que compõem a obra.

Nuvens

Este capítulo, em meio às nuvens em que está mergulhado o passado mais remoto do narrador, é uma pequena súmula de toda a obra. Flagra-se a personagem descrevendo os pais não como seres humanos, mas como seres ineficientes na afetividade, secos e opressores. A animalização na descrição deles é constante. A literatura, na forma de cantigas folclóricas, é apresentada como elemento capaz de aliviar o cotidiano sufocante da criança Graciliano Ramos. O primeiro contato que o menino teve com as letras aparece neste capítulo. O contato se deu em uma Escola que servira de pouso para a sua família numa viagem que eles fizeram de Alagoas para o sertão pernambucano. O menino, que estava com uma idade entre dois e três anos, tem diante de si a imagem de uma sala de aula com um velho de barbas longas e os meninos que “seguravam folhas de papel e esgoelavam-se: - um b com a – b, a: ba, um b com um e – b, e: be”. É nesse instante que a criança sai da escuridão e começa a perceber as coisas ao seu redor, por isso ela guarda a imagem da sala de aula e de D. Maria lendo, de forma capenga, um longo romance de quatro volumes. A imagem do professor público que o menino vira quando ainda era bem pequeno não será esquecida, reaparecendo em vários momentos de sua infância.

Manhã

Retomam-se temas do capítulo anterior, ligados à opressão a que é submetido o protagonista. Abre-se especial atenção aos seus avôs, o paterno muito culto e o materno forte, rude, não civilizado. Há destaque para a descrição da natureza do sertão.

Verão

Com a chegada do verão, vem a seca. A Natureza, pois, é descrita como aplacadora, mais um elemento opressor em sua infância, tanto que lhe causa uma sede terrível em certa ocasião. Neste capítulo o pai é apresentado com uma figura explosiva, uma qualidade que o narrador só vai entender muito tempo depois, quando toma consciência das dificuldades econômicas pelas quais o velho passava.

Um Cinturão

Capítulo fortíssimo. O pai, muitas vezes descrito de forma fria como “o homem”, não encontra seu cinturão. Inquire Graciliano, que, assustado, não consegue falar nada. Descarrega sua raiva surrando a criança. “Aliviado”, ao voltar para a rede acaba descobrindo o objeto que tanto procurava. Nota-se que a intenção do agressor é reparar o erro, mas sentimentos devem ter-se misturado, como orgulho, vaidade e medo de perder a autoridade. Talvez um desses elementos, ou todos, justifiquem o fato de o pai hesitar (queria pedir desculpas?) e acabar voltando para a rede e dormir. A consequência desse episódio é grave: Graciliano ganha uma desconfiança em relação à justiça dos homens.

Uma Bebedeira


Graciliano e sua família estão fazendo visita. Ganha destaque neste capítulo o incômodo que as roupas de visita provocam na personagem, principalmente os sapatos. Lembra o capítulo “Festa”, de Vidas Secas, do mesmo autor. É relevante também a presença das mulheres da casa visitada, que trarão um bem-estar excessivo, quase erótico, ao menino. Elas é que acabam embebedando-o. O álcool, dominando-o, dá-lhe sensação de poder, fazendo-o ter certas liberdades, desafiando o olhar repressor de sua mãe.

Chegada à Vila

A família de Graciliano larga o campo e se desloca para a vila, descrita como um mundo estranho para o menino. Fica abismado com o ajuntamento de casas, pela falta de espaço e mais ainda quando vê um sobrado, ou, no seu entender, uma casa em cima da outra.

A Vila

Continua a descrição abismada que faz das pessoas e do modo de vida da vila.

Vida Nova

Na Vila, o pai do narrador torna-se comerciante, o que o mergulhará em várias dificuldades. É neste capítulo que o protagonista fala de seu medo de fantasmas, o que o faz dormir num colchãozinho na sala. Dedica-se, nas madrugadas, a prestar atenção ao ruídos dos sapos, que, em sua linguagem, falariam das mesmas opressões que o menino vivencia em sua tosca infância.

Padre João Inácio

Este capítulo dedica-se à descrição do Padre João Inácio, extremamente rude com seus fiéis. No entanto, mostrou-se extremamente dedicado a doentes graves. Torna-se personagem dura, mas admirável. Dessa forma, Graciliano acaba aprendendo que certas pessoas têm em sua rispidez apenas uma casca que envolve um caráter humano.

O Fim do Mundo

Outro capítulo que nos surpreende apresentando uma personagem grosseira mostrando um lado humano. Dessa vez é a mãe do protagonista, que, após ler um texto religioso sobre o fim do mundo, mergulha em um desespero imenso. Abraça-se ao filho e desmancha-se em choro. Incrível é notar como pessoas tão massacradas têm, ainda assim, um apego à existência e ao mundo injusto em que vivem. Neste capítulo a mãe de Graciliano, que era “grande e temerosa”, ficará em estado de choque, demonstrando para o filho uma imensa fraqueza diante de um texto que lia. A mãe, que lia periodicamente um romance de quatro volumes, procura substituir as aventuras romanescas pelos folhetos salesianos que eram distribuídos pelos correios. É nesse entretenimento cotidiano da leitura religiosa que a leitora se depara com algo inusitado, o menino que tudo observava relata a seguinte cena:

Purificando-se nessa boa fonte, minha mãe às vezes necessitava expansão: transmitia-me arroubos e sustos. Uma tarde, reunindo sílabas penosamente, na gemedeira habitual, teve um sobressalto, chegou o rosto no papel. Releu a passagem – e os beiços finos contraíram-se, os olhos abotoados cravaram-se no espelho de cristal. Certamente se inteirava de um sucesso mau e recusava aceitá-lo. (...) A pobre mulher desesperava em silêncio. Apertava as mãos ossudas, inofensivas; o peito magro subia e descia; limitando a mancha vermelha da testa, uma veia engrossava. (...) Afinal minha mãe rebentou em soluços altos, num choro desabalado. Agarrou-me, abraçou-me violentamente, molhou-me de lágrimas. Tentei livrar-me das carícias ásperas. Por que não se aquietava, não me deixava em paz?

A exaltação diminuiu, o pranto correu manso, estancou, e uma vozinha triste confessou-me, entre longos suspiros, que o mundo ia acabar. Estremeci e pedi explicações. Ia acabar. Estava escrito nos desígnios da Providência, trazido regularmente pelo correio.

Diante dessa situação, a criança duvida do fim do mundo e faz as suas reflexões, o narrador explicita sobre o fato o seguinte parecer: “Não percebendo o mistério das letras, achava difícil que elas se combinassem para narrar a infeliz notícia. Provavelmente minha mãe se tinha equivocado, supondo ver na folha desastres imaginários”, e , não concordando com tamanho disparate anuncia que era “conversa: o mundo não ia acabar”, a mãe estranha a rebeldia do menino ao afirmar que: “os doutores conheciam as trapalhadas do céu e adivinhavam as consequências delas”.
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continua…

Fonte:
Ilca Vieira de Oliveira, Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros. Disponível em Passeiweb.

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