sábado, 12 de maio de 2012

Trova de Dia das Mães - Hermoclydes S. Franco (Rio de Janeiro/RJ)

Pintura de Pablo Picasso

Ciranda de Trovas (Mãe) Parte 1


Na varanda, um quadro lindo:
a jovem mãe e a criança:
- Era a ternura sorrindo,
amamentando a esperança!
A. A. de Assis – Maringá/PR

Depois que, mãe tu partiste,
como uma Santa em seu véu,
o céu que eu via tão longe,
ficou mais perto, e mais céu...
Adelmar Tavares – Recife/PE

Minha mãe com maestria,
vibrou forte de emoção,
quando em tarde de magia
fez pulsar meu coração!
Vânia Maria Souza Ennes – Curitiba/PR

Pelo bem que me fizeste;
sem nunca exigires nada:
pela luz que tu me deste,
minha mãe - muito obrigado!
Agmar Murgel Dutra

Minha mãe, tu que me acalmas,
e que meus males espantas,
és a mais pura das almas,
és a mais santa das santas!
Almeida Faria

Mãe, por mais que eu me concentre
na importância do que faço,
não esqueço que o teu ventre
foi o meu primeiro espaço.
Almerinda Liporage – Rio de Janeiro/RJ

Oh, minha mãe, com denodo,
numa existência sem brilho,
trocaste o futuro todo
pelo futuro do filho!
Alves Costa

Minha mãe sempre ao meu lado,
é amiga na dor, no riso;
não reclama do seu fado,
finge sempre um paraíso...
Amarillys Schloenback

Da mãe a filha querida:
- Obrigada, meu bebê...
Fui eu que lhe dei a vida,
mas minha vida é você!
A. A. de Assis – Maringá/PR

Amor de mãe é semente
que germina em qualquer chão,
é feito só de ternura,
é feito só de perdão.
Anfrísio Lima – ES

Mãe de José, de Maria,
de Antonio, Pedro, de João ...
O nome próprio varia ...
Só não muda o coração.
Aníbal Vitral Monteiro – SP

Mãe que traz uma criança
nas entranhas do seu ser,
carrega a própria esperança
no filho que vai nascer.
Anis Murad – RJ

Ó mãe que tudo perdoas,
corrige teus pequeninos!
- Às vezes, de intenções boas
nascem ladrões e assassinos...
Aparício Fernandes – Acari/RN

Vejo-te, mãe, todo dia
que a tarde cai pra morrer
e que a voz da Ave-Maria
vem minha alma enternecer...
Archimimo Lapagesse – Florianópolis/SC

Depois de uma noite calma,
numa manhã de verão,
no céu anjos esperavam
recebê-la em oração!
Vânia Maria Souza Ennes – Curitiba/PR

Para você, mãe, a prece
deste filho agradecido
que na terra não se esquece
de tanto amor recebido.
Antonio M.A. Sardenberg – São Fidélis/RJ

Que grande amor verdadeiro
o da mãe pelo seu filho.
Amar é doar-se inteiro,
e vencer todo o empecilho.
Arlene Lima – Maringá/PR

Mãe olhando o teu retrato
meus olhos fitos nos teus,
penso que estás ao meu lado
por uma graça de Deus!
Batista Nunes – Rio de Janeiro/RJ

Sem escolha, oficialmente,
chegou lá, na luz de Deus.
Foi em paz... Solenemente...
Reencontrar com os seus!
Vânia Maria Souza Ennes – Curitiba/PR

Ser MÃE é trabalho insano
que tal carinho irradia
e te faz, por todo o ano,
ser a MÃE de cada dia!...
Hermoclydes S. Franco -Rio de Janeiro/RJ

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da virgem Maria:
- Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
Barreto Coutinho – Limoeiro/PE

Mãe – presente do Senhor,
que a humanidade conduz
num barco cheio de amor,
singrando mares de luz!
Benedito Camargo Madeira – Pouso Alegre/MG

Mãe do Amor! Mãe de Jesus
e dos filhos de ninguém!
Tem pena da minha cruz,
que sou teu filho também!
Benedito Lopes

Devo tudo quanto sou
e a vida me concedeu
à mãe que Deus me levou
e à mulher que Ele me deu!
Carlos Guimarães

Era uma vez... A saudade
da meiga MÃE que ensinava,
na minha infância, a verdade
nas histórias que contava!...
Hermoclydes S. Franco – Rio de Janeiro/RJ

Adeus, filho...Vive a vida!
Volta um dia sem promessa...
que a primeira despedida,
no ventre da mãe começa...
Carolina Ramos – Santos/SP

A Mãe, por ser indulgente,
tudo em seu coração cabe.
A mãe é aquilo que a gente
quer definir mas não sabe.
Clarindo B. Araújo – Natal/RN

Mãe não é só quem procria.
nos diz velho ditado.
Ser mãe é também quem cria
com amor um filho adotado.
Claudyra Dias da Rocha – Fortaleza/CE

Mãe viva, mãe que partiu...
Todas merecem louvores;
seu amor sempre floriu
na rima dos trovadores.
Conceição A. C. de Assis – Pouso Alegre/MG

Mãe! criatura querida,
santa heroina sois vós;
quando nos destes a vida,
destes o sangue por nós.
Décio Valente – São Paulo/SP

Minha mãe tão delicada,
toda feita de carinho,
continua madrugada
no ocaso do meu caminho!
Delcy Canalles – Porto Alegre/RS

Amor de mãe é tão grande,
tão profundo na expressão,
tão sincero, tão sublime,
que não tem definição!
Delmar Barrão

Ao ver o filho que nasce,
a mamãe feliz no leito...
Com afeto, beija-lhe a face,
apertando-o contra o peito.
Djalma Mota- Caicó/RN

Se "Mãe" não tem com que rime,
não desistas, trovador...
Troca a palavra sublime
pelo sinônimo "Amor"!
Dorothy Jansson Moretti – Sorocaba/SP

Ouve mãe: já não contenho
esta saudade insofrida ...
Deste-me a vida que tenho
e eu não posso dar-te a vida.
Durval Mendonça

As mães merecem bem mais
Do que ter um dia somente...
Mães são pra sempre imortais!
Mãe és o máximo expoente!
Eire - Jacaraípe, Serra/ES

Toda luz na diretriz
deste meu viver austero
é um bilhetinho que diz:
- " Mamãe, querida, eu te quero"!!
Elisabeth Souza Cruz – Nova Friburgo/RJ

A mãe tem tal primazia,
tanto poder, tanta luz,
que pede à Virgem Maria
quem precisa de Jesus ...
Elton Carvalho – São Paulo/SP

O amor seria fecundo
como tal se espalharia,
se toda mãe que há no mundo
tivesse um nome: MARIA!
Francisco José Pessoa – Fortaleza/CE

Deus, em toda a sua glória,
com tanta grandeza e brilho,
p'ra completar sua história,
quis ter mãe e quis ser filho!
Gislaine Canalles – Balneário Camboriú/SC

Minha mãe, que orava aqui,
é nos céus que reza agora;
foi no meu sonho que a vi
aos pés de Nossa Senhora!
Harley Clovis Stocchero – Almirante Tamandaré/PR

A mãe é essência divina
que todo amor nela encerra;
é luz que a estrada ilumina
para os filhos nessa terra.
Horácio Ferreira Portella – Piraquara/PR

Num rasgo de amor profundo,
Deus,- sublime Criador-
criando a Mãe, mostra ao mundo
toda grandeza do Amor!
Ivone Prado – Belo Horizonte/MG

Oh, minha mãe, em meus cantos,
num grato e eterno estribilho,
bendigo a Deus, que, entre tantos,
me escolheu para teu filho!
J. G. de Araújo Jorge – Tarauacá/Acre

Surpreendente maravilha
a que agora me acontece:
minha mãe é minha filha
à medida que envelhece!
Jesy Barbosa – Campos/RJ

Minha mãe verteu mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
minha mãe - um pecador!
José Maria Machado de Araújo – Rio de Janeiro/RJ

A mãe das outras crianças
com minha mãe se parece ;
oferta ao filho as bonanças
e oculta o mal que padece.
José Valeriano Sobrinho

Amor de mãe quem tiver
Deve guardá-lo no peito:
não há amor de mulher
que seja amor tão perfeito.
Júlio Brandão

A Mãe, somente, perdoa
o mal que um filholhe faça,
embora o coração doa
dá-lhe um sorriso e o abraça!...
Lacy José Raymundi – Garibaldi/RS

Na tua fronte bendita
dei um beijo, mãe querida!
foi a trova mais bonita
que já fiz em minha vida.
Lilinha Fernandes – Rio de Janeiro/RJ

DIA DAS MÃES, homenagem
do amor à paz, à pureza
e ao símbolo de coragem
mais lindo da natureza!
Hermoclydes S. Franco (Rio de Janeiro/RJ)

Fontes:
Alma de Poeta

Portal Movimento das Artes

Wagner Marques Lopes/MG (O PERDÃO em trovas), parte 4


13

- O dito pelo não dito -
perdoo, sem esquecer...
Desde então, estava escrito:
não mais parou de sofrer!

14

Perdoar... Não preferia...
Prisioneira da ilusão.
Perdoou, achou a via
da própria libertação!

15

Não é a luz da ribalta
e nem fogos de artifício -
o perdão é simples alta
das doenças do suplício!

16

Eu dispenso um referendo
ou quiçá um plebiscito:
sem perdão saio perdendo,
sou refém do meu conflito.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Mãe)

Maternidade (por Vicente Romero Redondo)

POEMINHA À MÃE

Amor, carinho, ternura,
Afeto, afago, apego,
Meiguice, entrega, doçura,
O mais ardente aconchego.
Sentimento mais profundo,
Geratriz: razão da vida.
Concebeu, foi concebida...
Tu és MÃE, o próprio mundo!

AMOR DE MÃE

Seu ventre é solo fecundo
Que gera e abriga a vida,
É paixão sem ter medida
De um sonho realizado,
É aconchego do ninho
Que acolhe com carinho
O amor tão esperado.

Com sua voz acalenta
Com um canto delicado...
No seu peito amamenta
E com amor alimenta
O filho tão desejado!

Com a mão acaricia
Em toque meigo e sublime...
Seu brilhante olhar exprime
Na mais ardente paixão
O amor que também pulsa
No pequeno coração.

A sua boca tem beijo
Mais doce do que o mel,
Em sua prece o desejo
De dar para seu rebento
Um pedacinho do céu.

Na alma toda esperança
De um futuro promissor
Para o filho que gerou
De quem tanto quer o bem:
Que em sua caminhada
Consiga vencer também.

Que os anjos digam amém
E em coro com os arcanjos,
No mais harmonioso arranjo,
Cantem com todo fervor
Um hino de puro amor
Para a santa e amada MÃE!

Fonte:
Alma de Poeta

Trova de Dia das Mães - Clevane Pessoa (Belo Horizontes/ MG)

Delfina Benigna da Cunha (Trovas de Mãe)


Dia das Mães!...Alegrias
Das mais puras, das mais belas!...
Mas é preciso saber
O dia que não é delas.

O Nosso berço no mundo,
Sem que ninguem o defina,
É um segredo entre a mulher
E a Providência Divina

Mãe possue onde apareça
Dois títulos a contento:
Escrava do sacrificio,
Rainha do sofrimento

Mulher quando se faz mãe,
Seja ela de onde for,
Por fora é sempre mulher,
Por dentro, é um anjo de amor.

Maternidade na vida,
Que o saiba quem não souber,
É uma luz que Deus acende
No coração da mulher.

Coração de mãe parece,
No lar em que se aprimora,
Padecimento que ri,
Felicidade que chora.

Pela escritura que trago,
Na história dos sonhos meus,
Mãe é uma estrela formada
De uma esperança de Deus.

Quantas mães lembram roseira!
Quantos filhos rosas são!...
Quanta rosa junto à festa!
Quanta roseira no chão!...

Fonte:
Psicografia de Francisco Candido Xavier
Do livro : Trovas do outro mundo ( pgs 31 a 33)

Delfina Benigna da Cunha (1791 – 1857)


Delfina Benigna da Cunha (São José do Norte/RS, 17 de junho de 1791 — Rio de Janeiro, 13 de abril de 1857) foi uma poetisa brasileira.

É tida como figura de destaque nas manifestações fundadoras da literatura gaúcha, embora a posição que ocupe na historiografia literária sulina seja hoje periférica, em razão da retração crítica que seu valor literário sofreu no decorrer do tempo.

Além disso, seu nome se encontra citado no livro Mulheres Ilustres do Brasil (1899), de Ignez Sabino, a qual enaltece a expressão do sentimento da poetisa.

Nascida na Estância do Pontal, em São José do Norte/RS, Delfina era filha de Joaquim Fernandes da Cunha, capitão-mor da guarda portuguesa local, responsável pela guarda do litoral, e Maria Francisca de Paula e Cunha, sendo a oitava de novo filhos.

Aos vinte meses de vida, ela foi completamente privada da visão, devido a uma epidemia de varíola que afligiu a região. Apesar disso, recebeu uma sólida educação, enraizada na cultura clássica e portuguesa, que tornou possível sua formação intelectual.

Aos doze anos, já estaria alfabetizada e escrevendo poemas, como "Colcheia escrita aos doze anos de idade", extraído do livro Vozes Femininas da Poesia Brasileira (Cons. Est. de Cultura, 1959, São Paulo)
A Natureza e o Amor

Combatem minha razão.

Até Júpiter, Senhor
De tudo quanto há criado,
Estreitamente é ligado
À Natureza e Amor.
Se este Deus, que é superior
Vive sujeito à paixão:
Como há de o meu coração
Libertar-se deste mal,
Se Amor com arma fatal
Combate a minha razão?
— Delfina Benigna

Com a morte do pai em 30 de agosto de 1825, Delfina da Cunha perdeu seu amparo financeiro, mas conseguiu obter uma pensão vitalícia de D. Pedro I, em reconhecimento dos serviços militares de seu pai, após escrever um soneto-apelo ao imperador, garantindo, assim, sua sobrevivência.

Publicada em 1834, sua obra de estréia, Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses, foi por muito tempo considerada por historiadores e críticos a primeira obra a ser impressa no Rio Grande do Sul.

Quando a Revolução Farroupilha irrompeu em 1835, Delfina da Cunha, que era monarquista, partiu para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até fins de 1845, quando do término da guerra. Sua última obra de poesia, Coleção de várias Poesias dedicadas à Imperatriz Viúva, foi lançada em 1846, pela tipografia Universal de Laemmert.

Em 1857, faleceu no Rio de Janeiro, aos sessenta e cinco anos de idade.

Em 1994, Stella Leonardos publica o O romanceiro de Delfina, pelo Instituto Estadual do Livro, um romance histórico com a poetisa como protagonista.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Delfina_Benigna_da_Cunha

Trova de Dia das Mães - Vânia Maria Souza Ennes (Curitiba/PR)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 552)


Uma Trova de Ademar

De minha sogra querida
nenhuma fofoca escapa;
no bairro ela é conhecida
como boca de caçapa!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Quando, em idade, eu avanço,
me lembro deste ditado:
-“se a morte, enfim é um descanso,
prefiro viver cansado!!!”
–ANTÔNIO COLAVITE FILHO/SP–

Uma Trova Potiguar


Se aquele muro falasse,
seria um “Deus nos acuda”...
Diria quem é, na classe,
o pai do filho da muda!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Trova Premiada


2010 - Curitiba/PR
Tema: PIJAMA - Venc.


Teve um infarto, na cama,
a noiva, que é frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola!
–MAURÍCIO N. FRIEDRICH/PR–

...E Suas Trovas Ficaram


Eu, entre viras e viras,
no boteco, noite e dia,
vou só pescando as mentiras
dos que vão à pescaria.
–COLBERT RANGEL COELHO/MG–

U m a P o e s i a


MOTE :
Quando passa dos setenta,
Todo velho é mentiroso!


GLOSA :
Quando o cara se aposenta
que cai na realidade
perde um pouco a validade
Quando passa dos setenta;
como nada representa
se julga misterioso,
relembra que foi gostoso
e nunca foi rejeitado;
falando do seu passado,
Todo velho é mentiroso!
–AUGUSTO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

O Caso do Tonho
–THALMA TAVARES/SP–


O Tonho tem um caso na Internet.
Segundo ele, uma mulher fogosa
que usa o codinome de Cossete
e se revela ardente e carinhosa.

O Tonho anda por ela apaixonado...
E se na “virtual” a coisa rende,
ele quer se sentir mais realizado
buscando na “real” o que pretende.

– “Trarei um “C”, disse ela, no meu busto,
vermelho igual ao fogo que hoje, a custo,
você tenta apagar e jamais logra”.

E ele vai, porém volta apavorado
quando descobre, incrédulo, assustado,
que a fogosa Cossete é sua sogra.

José Paulo Paes (A Revolta das Palavras [Uma Fábula Moderna])


Era uma Vez um Conto, parte 2
––––––––-
Como as personagens desta história são palavras, nada mais natural que ela aconteça nas páginas de um dicionário.

O dicionário é uma espécie de pomar. Só que as suas árvores, em vez de serem árvores de frutas, são árvores de palavras.

Cada uma das letras do alfabeto é uma árvore onde estão penduradas as palavras que começam por essa letra. Assim, “abacate” pertence à letra A, “banana” à letra B, “caqui” à letra C, e assim por diante.

A ordem por letra inicial, isto é, a ordem alfabética, ajuda a gente a encontrar rapidamente as palavras quando quer descobrir o que cada uma delas significa.

Por exemplo, vocês sabem o que significa “ábaco”? Se não sabem, é só ir ao dicionário, procurar a letra A, localizar nela “ábaco”, e ler a sua definição.

Aí ficarão sabendo que “ábaco” é uma moldura com arames, ao longo dos quais há bolinhas coloridas que a gente pode movimentar. Movimentando essas bolinhas, conseguimos fazer rapidamente somas e subtrações.

Pois bem: o dicionário só funciona quando cada palavra está corretamente classificada pela sua letra inicial. Se estiver classificada por engano em alguma outra letra, aí é muito difícil achá-la.

Mas a dificuldade será muitíssimo maior se a definição da palavra estiver trocada.

Imaginem, por exemplo, que vocês vão procurar na letra V a definição de “verdade” e lá encontram isto: "Idéia, juízo ou opinião falsos".

Claro que essa não é a definição de “verdade”, e sim a definição de “mentira”, pois falso é aquilo que não é verdadeiro.

Felizmente, nos dicionários, isso nunca acontece.

Mas costuma acontecer muito na vida fora do dicionário. E, toda vez que acontece, engana as pessoas e desmoraliza ou bagunça o significado das palavras.

Foi por causa disso que houve a Revolta das Palavras. Um dia, elas se cansaram de estar sendo usadas de maneira errada por pessoas sem escrúpulos, que só queriam tirar vantagens para si, sem se importar de causar prejuízo aos outros.

Certa noite, numa hora em que os dicionários não estavam sendo usados, elas fizeram uma reunião. A reunião foi presidida pelas duas palavras mais prejudicadas pelo mau uso - ou seja, a Verdade e a Mentira.

- Minhas irmãs - disse a Verdade -, nós precisamos tomar providências para acabar com os abusos na maneira como somos usadas. A mim, me usam constantemente as pessoas desonestas quando querem se aproveitar da ingenuidade de gente de boa-fé.

- É isso mesmo - confirmou a Mentira. - Os desonestos também abusam de mim quando chamam de mentiroso alguém que diga algo verdadeiro que possa prejudicá-los. E, embora eu não queira, sou obrigada a servir de disfarce das más intenções deles.

- Para acabar com esses abusos, minhas irmãs - concluiu a Verdade -, só há uma solução. De agora em diante, todas nós devemos nos recusar a ser mal-usadas. Assim, quando alguém quiser dizer ou escrever uma mentira disfarçada de verdade, não conseguirá. Porque, em vez de eu aparecer, mandarei no meu lugar a Mentira.

- E se um desonesto - confirmou a Mentira - quiser chamar uma verdade de mentira, não adianta me chamar que eu não irei. No meu lugar mando a Verdade. Vocês todas, façam isso também, não se deixem explorar.

As outras palavras bateram palmas para a proposta das duas presidentas e juraram, a uma só voz, que cumpririam ao pé da letra o que ficara combinado na reunião.

No dia seguinte começaram a acontecer as coisas mais estranhas pelo mundo afora.

Enquanto tomava o seu café da manhã, o Industrial teve a pior surpresa de sua vida quando abriu o jornal e leu o anúncio que mandara publicar. Bufando de raiva, telefonou imediatamente para o Publicitário:

- Você é um incompetente, um irresponsável! Como teve a audácia de escrever, no anúncio que redigiu para a minha indústria, que os nossos produtos estão muito longe de ser os melhores do mundo?

- Eu nunca escrevi isso! Só pode ter sido erro do jornal! - respondeu, aflito, o Publicitário.

Por telefone, o Industrial reclamou com o Dono do Jornal.

- Na hora de ser impresso, o anúncio foi conferido e estava tudo em ordem. Só pode ter sido sabotagem de algum agitador ou coisa de feitiçaria! - justificou-se, consternado, o Dono do Jornal.

Nessa mesma hora, o Comerciante estava arrancando os cabelos de raiva porque, na fachada do seu supermercado, havia um cartaz escandaloso. Em vez de dizer que os preços dos produtos ali vendidos eram os mais baixos, dizia que eles eram iguais ou até um pouco mais altos que os dos outros supermercados.

E o susto do Político entrevistado pela televisão quando disse diante das câmeras, sem saber por que nem como, que não cumpriria nenhuma das promessas feitas aos seus eleitores e que se elegera apenas para ganhar dinheiro?

Eu poderia ficar horas e horas contando muitos outros fatos estranhíssimos acontecidos naquele mesmo dia. Aconteceram a quem, como o Industrial, o Publicitário, o Dono do Jornal, o Comerciante e o Político, costuma dizer mentiras publicamente, com a maior cara-de-pau, só para se aproveitar da boa-fé dos outros.

Mas se eu fosse contar tudo isso, a história da Revolta das Palavras ia ficar comprida demais, e eu sei que ninguém gosta de histórias muito esticadas, cheias de repetições.

Por isso, vou apenas acrescentar que nesse mesmo dia inesquecível a Incompreensão foi fazer uma queixa à Verdade e à Mentira. Reclamou que o Poeta continuava mentindo sem que nada acontecesse a ele.

- Imaginem vocês que ele escreveu "A laranja madura é um sol sobre a mesa"! Onde se viu confundir uma bola pequena como a laranja com uma bola enorme como o sol? E se a laranja fosse tão quente como o sol, a mesa pegava fogo na mesma hora!

- Não é bem assim - explicaram a Verdade e a Mentira. - A poesia diz as coisas de modo tão original, tão fora do comum, que parece estar mentindo o tempo todo. Mas pense bem: não é o sol que amadurece as frutas? E o amarelo brilhante da laranja não é como o amarelo do sol que tivesse descido do céu até a terra?

Ah! eu quase ia esquecendo de dizer que tudo isso aconteceu num dia 2 de abril.

Isso porque, se o dia 1º de abril é o Dia da Mentira, nada mais justo que o dia seguinte sirva para desmenti-lo e fique marcado no calendário, de hoje em diante, como o Dia da Desmentira.

Na manhã do Dia da Desmentira, as bibliotecárias de todas as bibliotecas do mundo fugiram apavoradas de seus locais de trabalho porque, quando lá chegaram, os dicionários estavam às gargalhadas, fazendo uma barulheira de estourar ouvido de surdo e de pôr fantasma para correr.

Talvez vocês estejam pensando aí com os seus botões que, afinal de contas, se durou apenas um dia, a Revolta das Palavras não adiantou coisa alguma.

Mas se pensam assim, se enganam.

De agora em diante - eu aposto -, todos vocês vão prestar mais atenção no que dizem as pessoas aproveitadoras, para ver se elas estão mesmo dizendo a verdade quando prometem mundos e fundos.

Sempre que vocês fizerem isso, lembrem-se de encostar bem o ouvido ao dicionário. Talvez consigam escutar lá dentro uma porção de risadinhas.

Fonte:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella

Trova de Dia das Mães - A. A. de Assis (Maringá/PR)

Antonio M. A. Sardenberg (Poemas às Mães)


Para Sempre
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (Itabira/MG)


Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Mãe
ISABEL PASSOS (Lisboa/Portugal)


A mulher foi por Deus escolhida
pra na maternidade gerar vida;
Com amor trazer filhos ao mundo;
O dom mais sublime e profundo.

Pode ter dor quando um filho parir
mas logo esquece, ficando a sorrir
assim que escuta o doce vagido,
e acaricía o recém-nascido.

Em suas entranhas vida semeou,
deu à luz o filho e tudo suportou.
Com altruísmo dá aquilo que tem...

Abnegação, apanágio de mãe,
é produto da Obra do Criador
que tudo planeou com muito Amor.

És tu Mãe!
JOSÉ ERNESTO FERRARESSO (Serra Negra/SP)


Determinada, irreverente e persistente,
De iniciativas constantes.
Punhos fortes, nunca errante,
Mulher linda, estonteante.

Mãe, Rainha do lar,
Mostra sua resistência e sabe lutar.
Ensina coisas boas, sabe os filhos educar,
Por isso a denominamos "Dona do Lar".

Cumpridora, fiel aos filhos e esposo,
Em todas as horas e instantes dolorosos,
É ela a grande guerreira .

Essa mãe verdadeira,
Em cada momento presente.
Divina simplesmente.

DNA de Mãe
AMILTON MACIEL MONTEIRO (S. José dos Campos/SP)


O DNA de mãe foi desvendado,
mas trouxe inda surpresa memorável,
mesmo que a nós já houvesse sido dado
conhecer seu poder inesgotável

Nele o elemento máximo encontrado
de fato foi um Amor inigualável,
aliado à Ternura e ao Cuidado,
produzidos de forma respeitável!

Achou-se, outrossim, muita Paciência
e porção semelhante de Alegria,
ficando as duas sempre em evidência.

Porém, o achado mais surpreendente
foi a Coragem unida à Poesia...
E o dom pra suportar a Dor Pungente!

Mamãe Mamãezinha
DIVANILDE VITORIA CAMPOS(DIVA) (Mirassol/SP)


Ciranda cirandinha,
mamãe hoje vamos cantar
embora já tão velhinha
jamais deixou de me amar!

Como toda jovem, sonhou,
lindos sonhos não realizados
mas nunca desanimou
de ter-me tanto amado!

Seus cabelos branquinhos
como um punhado de neve
a pele enrugadinha
mãos trêmulas, passos trôpegos
corpo franzino, encurvadinha!

Dizer que te amo não é preciso
sabes que sempre te amei
nos teus braços sempre feliz
enquanto me embalava
uma linda cantiga cantava!

Hoje é teu dia, Dia das Mães.
Nesta tua longa caminhada
me ensinou os bons caminhos
não me deixou me afastar do teu ninho
por isso sou muito abençoada!!!

Tributo à Minha Mãe
LENIR MOURA


E um dia deus a chamou.
e você foi indo,
sem pressa, bem devagar.
foi obedecendo àquele chamado calmamente.
Você sabia que a dor seria grande demais,
e então sem querer nos fazer sofrer,
fez assim:
preferiu nos acostumar com a idéia
de não mais ter você,
e aos poucos,
foi se afastando.
Foi nos ensinando a sentir
que não a tínhamos mais,
mesmo estando ao nosso lado.
E com isso,
a dor não doeu tanto,
e mais uma vez,
mesmo na hora final,
poupou-nos um sofrimento maior.
Dignidade na vida, altivez na morte!
atitude digna de você,
que sempre foi mãe,
em toda sua magnitude.
Descansa minha mãe
e ilumina com a sua luz,
o pedaço de céu que a você foi reservado.
Encanta com o seu amor
e embala com a sua canção de paz
a missão que, com certeza,
Deus lhe destinou:
a de ser no céu
mais uma estrela a brilhar.

A Minha Mãe
MARIA DA FONSECA (Lisboa/ Portugal)


Ao observar-me no espelho
Vejo os teus traços, Mãezinha,
Ouço ainda o teu conselho,
Tua alma junto à minha.

Da minha face, o oval
Lembra-me teu rosto lindo,
Teu sorriso maternal
Os teus olhos colorindo.

Enquanto os meus são castanhos,
Os teus eram ‘sverdeados,
Mas meu cabelo que apanho
Teve cachos ondeados.

De ti herdei as feições
Que recordo tão saudosa.
Sei que viveste aflições
E mas poupaste, ansiosa.

Ao teu coração bondoso
Presto singela homenagem.
"Doou-me amor precioso
E deu-me sempre coragem".

Ser Mãe
DÁRIA FARION


É extasiar-se:
- Meu Deus! A mim confiaste,
a maravilha de Tua criação.

É abrigar-se:
- Debaixo da Graça Divina,
em seus eflúvios haurir
alento, coragem e fé.

É expor-se:
- Na sua Luz se energizar
e por caminhos iluminados
seus filhos conduzir.

Ser mãe é amar,
tanto, tanto. Vida própria não ter,
de tristeza e alegria sorrir,
de alegria e tristeza chorar.

Ser mãe,
é orar pedindo,
é orar agradecendo,
é orar abençoando.

Feliz é o filho que tem
uma mãe orando.
Benditos os filhos que ensinam a amar.

Minha Mãe
HILDA PERSIANI (Curitiba/PR)


Não existe palavra mais doce
Desde que se aprende a falar,
Pronunciá-la é como se fosse
O mais saboroso manjar.

Mãe, sempre pronta a me aconselhar,
Seus exemplos que sempre admirei,
Foi o espelho onde me espelhei
E na vida me ajudaram a caminhar.

Tentei escrever uma poesia
Para homenageá-la no seu dia,
Mas não consegui terminar,

Ao relembrar seu olhar de santa,
Um nó me aperta a garganta
E eu só consigo chorar ...

Mulher da lida
JOSÉ ERNESTO FERRARESSO (Serra Negra/SP)


Perto de um filho ou de qualquer situação.
Demonstra sua atitude de mãe e de atenção.
Até resolver e dar a sua decisão.
Inicia um luta árdua de emoção e tensão.

Nasce para protetora e genitora.
Traz o cansaço e não esquece da luta.
Realiza seus projetos com afinco.
És forte e mulher vencedora.

Mulher que conquista, resolve e age.
Que em momento algum se mostra inibida.
Nem tem medo do que pode acontecer.
Tem a força, doçura e a candura.

Levanta bandeiras na vida dura.
Em qualquer instante mostra suas garras.
Amor, doação e em seus gestos é querida.
És mulher vencedora e decidida.

M ostra toda as suas iniciativas.
U sa do bom senso e da confiança.
L evanta, sai para o trabalho e conquista.
H onestamente a sua liderança.
E terna, vencedora e guerreira.
R ealizada, ambiciosa e determinada, dona do lar e da vida.

Mãe... Mulher!
ADEMAR MACEDO (Natal/ RN)


Ser mãe é negar a dor,
a dor maior que ela sente.
Ser filho é ter muito amor
para amá-la eternamente...
– Minha mãe foi meu tesouro,
meu escudo e meu troféu;
hoje, uma medalha de ouro
entre as mães que estão no céu!
Minha mãe, minha rainha,
só para o bem me conduz.
Pra ser mãe igual a minha,
só mesmo a mãe de Jesus!
Tal qual Mãe celestial,
mamãe também não tem preço!
Toda mãe é sempre igual...
muda apenas de endereço.
Toda mãe é protetora
e guarda em si, um mister;
no papel de genitora,
é simplesmente...Mulher!

Minha Mãe
TECA MIRANDA


Doce olhar que meus olhos seguem
sol a brilhar no céu da minha vida
acalanto que aquece meu coração
do sopro frio e cortante da saudade.

Fonte:
Alma de Poeta

Olga Agulhon (A Tulha da Fazenda)


Lá na fazenda do meu pai havia uma tulha mal-assombrada.

Fora construída pelo antigo dono da fazenda, o senhor Yoshida, para o armazenamento das sacas de café.

Para evitar umidade, o assoalho estava construído cerca de cinqüenta centímetros acima do chão. O telhado, de duas águas, foi feito com caídas acentuadas, de forma que desse para abrir uma porta lá em cima, bem no meio, parecendo sótão; mas, por dentro da tulha, não havia divisão. Dessa porta saía uma rampa, que terminava no terreirão acimentado, onde era secado o café.

Enchia-se a tulha pela porta de baixo, descarregando-se as sacas de café diretamente do caminhão. Quando as pilhas já passavam da metade da altura da tulha, os colonos subiam a rampa com as sacas nos ombros e as jogavam, até que chegassem ao nível da porta, lá em cima.

Era uma próspera fazenda, até que, em 1970, uma desgraça aconteceu com a família do senhor Yoshida. O mais novo dos seus cinco filhos morreu de forma trágica. Estava voltando da cabeceira da fazenda, de trator, junto com um dos empregados. Como os tratores só têm um assento, ele ia de pé, ao lado do motorista, apoiado em seu ombro.

Por causa de um buraco, o menino perdeu o equilíbrio, caiu e o pneu traseiro passou sobre sua cabeça. Morreu na hora.

Logo depois do enterro, a família pôs a fazenda à venda.

Conta-se que o senhor Yoshida enterrou o filho embaixo da tulha, porque ali nunca mais passaria nada sobre ele.

Meu pai comprou a fazenda em sociedade com um dos seus irmãos, e as duas famílias se mudaram para lá. Eu tinha cinco anos. Juntando-se os primos e os filhos dos colonos, havia muitas crianças. Brincávamos por toda a fazenda, o dia inteiro. Mas, logo que chegamos, fomos avisados pelas outras crianças que a tulha era mal-assombrada.

Não acreditávamos, é claro.

- É verdade sim, dizia Carlinhos, o filho do Tonho. Às vezes, à noite, o menino, enterrado embaixo da tulha, começa a chamar pela família. Dizem que ele sente frio porque seu túmulo nunca pega sol.

- Que nada! Vocês acreditam em tudo que dizem… São é medrosos, isso sim – dizia eu.

Por via das dúvidas, quando voltávamos para casa já meio escuro, dávamos a volta pelo outro lado do terreirão para não passar em frente da tulha.

Mais tarde, por causa das geadas, que acabaram com os pés de café, meu pai mecanizou a fazenda para a plantação de soja e trigo.

Com o tempo, construiu um armazém de alvenaria, mais moderno; e a tulha foi ficando sem uso, envelhecendo no abandono. A rampa apodreceu aos poucos, caiu, não foi arrumada. E, assim, a tulha foi adquirindo mesmo uma cara de mal-assombrada.

À noite, nas fazendas, naquele tempo, ainda sem luz elétrica, reuniam-se as famílias em volta da mesa da cozinha, sob a luz do lampião, para conversar um pouco, antes de dormir.

Contavam-se causos, e nesses momentos a história da tulha mal-assombrada era sempre lembrada. Sempre havia alguém que já tinha ouvido os lamentos do menino, reclamando de frio, querendo sol.

Certo dia, Carlinhos provocou:

- Se não acredita, vamos até lá hoje à noite. Quero ver o quanto você consegue ficar.

Eu, como neta de espanhóis, de sangue quente, não podia deixar de aceitar o desafio, não permitiria que ninguém me chamasse de medrosa.

Quando todos de casa já haviam se recolhido, saí de mansinho e fui ao encontro de Carlinhos em frente da tulha, na hora marcada. Cheguei primeiro; ele não estava lá. Esperei uns dez minutos, lutando contra o medo, sem conseguir amenizá-lo. Ao contrário, ele tomava conta de mim, de tal forma que eu não mais sabia se conseguiria sair dali com minhas próprias pernas. Não mexia um músculo sequer. Apenas os ouvidos mantinham-se atentos, enquanto o bater mais forte do coração quebrava o silêncio da noite fria. Tremia, não sei se de frio ou de medo.

Depois de certo tempo, para mim certamente muito longo, ouvi a voz do menino reclamando:

- Tenho frio… Tenho frio…

Não sei, com certeza, o que aconteceu. Quando dei por mim, já estava em casa, ofegante, do lado de dentro da porta da cozinha. Corri para a cama e puxei a colcha até que ela cobrisse totalmente minha cabeça.

No dia seguinte, logo cedo, Carlinhos apareceu em casa, desculpando-se pelo bolo. Disse que sua mãe viu quando estava saindo e mandou que voltasse.

Notei um certo ar de cinismo e ironia em seu rosto. Minha impressão era de que ele tinha me pregado uma peça.

Passaram-se muitos anos desde então. Há muito moramos na cidade, mas a família de Carlos continua na fazenda.

Até hoje Carlos jura que não foi ele. Até hoje fico na dúvida.

Meses atrás, meu pai chegou em casa dizendo que tinha mandado derrubar a velha tulha; iria plantar goiabeiras no local.

Ontem fui até a fazenda. No local onde o filho do senhor Yoshida foi enterrado, brotou um lindo pé de chorão, que cresceu de um dia para o outro, desenvolvendo-se, segundo os empregados, de forma espantosa.

- Está vendo? – disse Carlos. Foi só derrubar a tulha e o sol bater sobre seu túmulo, que o menino parou de chorar de frio.

Em certo momento, sentei-me ali, no velho terreirão, em frente ao pé do tal chorão. Não vi o tempo passar, e a noite chegou. Não fui embora. Percebi que não tinha mais medo, mas senti algo estranho.

O vento envergava os galhos do chorão para um lado e para o outro e o som que ele produzia parecia um lamento.

Por um instante, senti pena, simplesmente pena, uma tristeza sem explicação. Pareceu-me tão só, ali, no meio da fazenda…

Num gesto impensado, levantei-me, colhi algumas margaridas, que cresciam beirando o terreirão cimentado, e coloquei as flores junto ao tronco do pé de chorão.

Fonte:
Academia de Letras de Maringá

Trova de Dia das Mães - Prof. Garcia (Caicó/RN)

Esopo (Fábula 10: O Corvo e o Mexilhão)


Um dia, o corvo encontrou um mexilhão á beira-mar e começou a bater com o bico na concha, mas, por mais que tentasse, não conseguia abrir o mexilhão.

Nessa altura, apareceu outro corvo. "Porque não segues o meu conselho?", disse este. "Leva o mexilhão para o ar, o mais alto que puderes, e então deixa-o cair sobre aquela rocha. Verás que o mexilhão se há-de abrir com o seu próprio peso."

O primeiro corvo seguiu o conselho do outro e, de facto, o mexilhão partiu-se ao bater na rocha.

Então, quando a ave voou em direção á sua presa, o segundo corvo precipitou-se sobre ela, agarrou no molusco e fugiu.

Moral da história

A caridade começa em casa, e muitas pessoas só são caridosas com o seu semelhante para servirem os seus próprios interesses.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

Ialmar Pio Schneider (Mãe)


SONETO PARA A MÃE

Mãe!... Palavra sublime, amor inexprimível,
que a gente pronuncia em ritmo de oração...
É tão cálido o afeto e quase que impossível
externá-lo, pois vive em nosso coração !

Se alguma coisa existe, além do que é infalível,
e seja só no mundo e morra em solidão;
creia-me, não verá jamais tão acessível,
de quem nos deu a vida, aceitar a afeição !...

Ela é generosa e sem maldade alguma...
Seus filhos são a maior riqueza que possui,
seu aconchego tem toda a maciez da pluma...

Porém, nunca haverá poeta, cujo verso
descreva o amor de mãe, pois tudo se dilui
ao saber que ela é a dona do Universo!

VERSOS PARA A MÃE

à minha mãe Amábile - In Memoriam

O meu verso maior vai para a mãe
que pelo amor ao filho tudo deixa;
as glórias vãs do mundo, sem pretextos,
envolta em sacrifícios não se queixa...

E quando ela o aninha em seus braços
fazendo-o dormir, embala-o e canta,
não aparenta ser aqui da terra;
é uma imagem dos céus, é uma santa.

Por isto, mãe querida, não te esqueço,
contigo quero estar a qualquer hora,
foste tudo pra mim, foste o começo...
Trazes no coração Nossa Senhora...

Fonte:
Poemas enviados pelo autor

2º CIELLI da UEM/PR (Resumo de Simpósio de Teoria Literária) Parte 2


2º CIELLI - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários

Diariamente serão postados 4 Resumos dos Simpósios que serão apresentados em 13 a 15 de junho, até totalizar os 25 a serem apresentados.

O resumo havia sido publicado na UEM em parágrafo único, mas para facilitar a leitura dos leitores do blog, dividi em parágrafos.


5
Neide Luzia de Rezende
Robson Coelho Tinoco
DIDÁTICA DA DIMENSÃO ESTÉTICA DA LEITURA


Em face dos novos paradigmas de leitura literária, que há pelo menos quatro décadas se apresentam como desafio para a escola, a proposta deste Simpósio é reunir trabalhos que se situem no eixo de aprendizagem das práticas sociais de leitura, incluindo além da literatura, também outros universos semióticos, como cinema e teatro. Com a emergência do leitor como instância da literatura desde os trabalhos iniciais da estética da recepção ao final dos últimos anos 60, pontuada na afirmação de Wolfgang Iser “o texto só existe pelo ato de constituição de uma consciência que o recebe” (in O ato da leitura, 1996), a leitura de especialistas se configura não mais como a leitura, mas como uma das possibilidades de interpretação da obra – e é a esse ato que ele denomina “estética”. Essa teoria tem, embora cheia de percalços, permeado as abordagens dos materiais didáticos voltadas para o ensino da literatura e a leitura literária e instaurado a noção interação texto–leitor como uma verdadeira palavra de ordem para as práticas de ensino.

Compreensivelmente, na escola, esse novo paradigma tem propiciado uma verdadeira crise de identidade no ensino de literatura, uma vez que faz emergir como instância da literatura o leitor empírico, com suas “reações pessoais, restritas e parciais, maculadas de erros e confundidas pelo jogo múltiplo das conotações” (Bellemin-Noël, Les plaisirs vampires, 2001).

Assim, enquanto a maioria dos materiais didáticos produzidos para a escola pelas instâncias oficiais (pelas Secretarias de Educação do Estado de São Paulo e do Governo do Distrito Federal, entre outras) propõem o contato efetivo com o texto e sua apreensão estética pelos alunos em vez de considerar como única opção didática a opinião da crítica e a metaleitura do professor (não obstante não se perceba nesses documentos um viés teórico capaz de esclarecer essas propostas), o livro didático voltado para o Ensino Médio (diferentemente daquele dirigido para o Fundamental), por exemplo, resiste às mudanças, restringindo-se ainda à história literária cristalizada e à linha do tempo.

Determinados parâmetros, ultrapassados ou ineficazes, parecem reger a didática desses livros didáticos e a de muitos professores, enquanto os alunos caminham livremente em outra direção, resistindo ao tipo de leitura e conhecimento que recebem na sala de aula. A decantada perspectiva de interação texto-leitor sofre com toda sorte de dificuldade para sua concretização: insegurança do professor em relação a sua própria leitura, falta de tempo para uma leitura mais subjetiva, mais reflexiva, mais propensa à elaboração pelo leitor e, sobretudo, falta de clareza quanto às dimensões de aprendizagem que uma perspectiva como essa requer.

Diante de tal situação, espera-se para este Simpósio colaborações que discutam uma epistemologia da cultura da leitura, também literária, de modo a repensar, para a escola brasileira – cujos alunos estão mergulhados nos meios eletrônicos e na cultura de massa –, novas práticas de ensino.

6
Clarice Zamonaro Cortez
Maria Natália Ferreira Gomes Thimóteo
HISTÓRIA, MITO E PAISAGEM NA LITERATURA PORTUGUESA


A Literatura Portuguesa contemporânea cruza os diversos registros históricos, mantendo um diálogo com o passado, reavaliando-o sob a perspectiva do presente. Na sua produção há uma relação íntima com a problemática político-social portuguesa, dramatizando a condição feminina em uma sociedade vinculada a padrões tradicionais, além de explorar novos caminhos estéticos, sem perder de vista a tradição.

A poética portuguesa contemporânea apresenta uma pluralidade de experiências, favorecendo diversos eixos norteadores que serão contemplados e discutidos neste simpósio. É imprescindível conhecer o resultado mais contemporâneo, com base no processo e nas dinâmicas de consolidação da Literatura Portuguesa desde as suas próprias origens, até o presente século XXI. A literatura, ao captar o “fulgor do real”, faz “girar os saberes”, segundo Barthes, na sua Aula. Esta dança poética de saberes é sentida - e faz girar os seus leitores no espaço e no tempo das cantigas sentimentais dos trovadores do século XIII, do passado histórico e delirantemente engrandecido em Camões, na obra sempre (re)visitada de Pessoa ao caráter mito-poético dos romances de Saramago.

O desenvolvimento do temário permitirá compreender melhor a configuração da Literatura Portuguesa e praticar uma análise comparatista em relação a outras literaturas vizinhas e/ou a literaturas veiculadas na mesma língua. Neste sentido, a Literatura Portuguesa abre caminhos de conhecimento para os estudos de pós-graduação em literatura e literaturas comparadas ou em estudos culturais, de caráter interdisciplinar. Segundo Plutarco (De gloria atheniensuim, III, 346 f – 347 c), Simónides de Céos, poeta que viveu no século V a.C., é o autor do dito aforismático, a pintura é poesia muda e a poesia é pintura falante (AGUIAR E SILVA, 1990, p. 163).

A partir desta afirmativa, pintores e poetas buscavam inspirações para suas composições nos termos literários e tentavam através desta prática expor aos olhos dos leitores imagens que somente as artes visuais adequadamente ofereciam. A Antiguidade Clássica registra uma relação entre as artes. O conceito de mimeses de Aristóteles, oriundo de várias interpretações de sua Poética, norteou o pensamento clássico. Mário Praz, em sua obra Literatura e Artes Visuais (1982, p.1), assevera que “a ideia de artes irmãs está tão enraizada na mente humana desde a antiguidade remota que deve nela haver algo mais profundo do que a mera especulação, algo que se apaixona e que se recusa a ser levianamente negligenciada”. Nesse sentido, não se pode negar a irmandade, o fio condutor que une as obras de arte, observando e respeitando suas características próprias. E. Forster (apud PRAZ, 1982, p.1) afirma que “a obra de arte é um objeto único e justifica porque é o único objeto material do universo dotado de harmonia interna”. O artista, seu mentor criativo, ao produzi-la parte de um conjunto, de suas experiências, sua visão de mundo, entre outros elementos que, junto a sua sensibilidade, culminará na sua produção.

O objetivo deste simpósio é oferecer aos pesquisadores um espaço de discussão da Literatura Portuguesa nos aspectos sincrônico e diacrônico, nos quase mil anos de produção, proporcionando especial atenção aos temas e suas nuances da História, do Mito e da Paisagem na sua produção literária.

7
Renata Junqueira de Souza
Ana Lucia Espíndola
LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SÉRIES INICIAIS: SUPORTES E GÊNEROS


As reflexões sobre o ensino da leitura e da escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil têm sido permeadas, nos últimos anos, pela discussão sobre a importância da presença de diversos suportes e gêneros literários em sala de aula. Tal presença irá contribuir para o desenvolvimento de diferentes habilidades presentes no ato de ler e que precisam ser fomentadas desde a mais tenra idade. Ao mesmo tempo, a leitura do texto literário na escola, principalmente nos anos iniciais de aprendizagem tem sido tema de várias literaturas.

Houve na última década uma crescente produção de livros para crianças de 0 a 5 anos, como livros brinquedos, livros de pano e de plástico, poesias infantis e livros cartonados. Nas séries iniciais, por outro lado, editores, autores e ilustradores têm ampliado os gêneros literários para tal faixa etária, disponibilizando no mercado livros de contos de fadas, lendas, cordel para crianças, histórias em quadrinhos, poesia, livros em séries para todos os públicos. Se o mercado editorial brasileiro tem se preocupado em ampliar tanto quantitativa, quanto qualitativamente os gêneros literários disponíveis para crianças nos primeiros anos de aprendizagem (0 a 12 anos), as políticas públicas de leitura como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola) também têm selecionado uma diversidade de livros, de vários gêneros literários para compor os acervos de creches, escolas de educação infantil e séries iniciais brasileiras.

Neste sentido, podemos afirmar que temos hoje um número maior de obras que podem ser lidas pelas crianças, seja em casa, com auxilio dos pais, seja em bibliotecas escolares, ou na escola. Entretanto, um problema ainda afeta a leitura da obra literária em espaços escolares, quando esses espaços por meio de seus sujeitos orientam a leitura do texto literário pelo viés da pedagogia, ou seja, fazem desses textos pretexto para o ensino de alguma disciplina curricular, enaltecendo a função de instrumento para outro fim, que não aquele da criação artística.

O uso do texto literário adquire neste caso um caráter didático e tem sua especificidade anulada enquanto arte. Se por um lado isso acontece porque os professores de educação infantil ou séries iniciais não tiveram formação para o uso adequado de gêneros literários na escola, por outro as universidades já oferecem nas grades curriculares de seus cursos a disciplina Literatura Infantil que pode auxiliar futuros professores a compreenderem as características do texto literário evitando assim sua didatização.

Este simpósio tem como proposta reunir experiências de ensino, bem como, de práticas da leitura e compreensão do texto literário abarcando diversos gêneros e tipos (do livro brinquedo aos livros em séries) destinado ao público de 0 a 12 anos, seja experiências em sala de aula, bibliotecas escolares, ou ainda com estudantes que se preparam para ser professores de séries iniciais. Nosso objetivo maior é divulgar experiências de leitura enriquecedoras, em que a literatura se mostre como uma realidade possível, ativadora da imaginação e do conhecimento do outro e de si mesmo.

8
Mirian Hisae Yaegashi Zappone
Célia Regina Delacio Fernandes
LETRAMENTOS LITERÁRIOS: PRÁTICAS DE LEITURA E DE ESCRITA


Leitura e escrita constituem-se como práticas variáveis no tempo e no espaço, tendo, portanto, uma história e uma sociologia (Chartier, 1999). Sendo assim, são influenciadas por inúmeros aspectos entre os quais as tecnologias que envolvem os diversos usos da escrita. Compreendendo o conceito de letramento como o “conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos para objetivos específicos” (Kleiman, 2004, p.19), podemos observar diferentes formas tanto de escrita, de leitura quanto de modos de circulação da escrita, fato que também pode ser notado com relação a textos literários.

Nesse sentido, o conceito de letramento se revela produtivo para os estudos literários, se realizarmos uma modulação fundamental: a restrição do conceito de escrita aos textos que possuem caráter de ficcionalidade, já que esta parece ser uma das características mais gerais da escrita compreendida até hoje como literatura. Assim, poderíamos pensar em letramento literário, ou seja, nas práticas sociais que fazem uso da escrita ficcional. Decorrente do conceito de letramento literário, abrem-se muitas perspectivas de estudos, pois ao considerarmos os diferentes contextos e objetivos envolvidos na produção e recepção de textos ficcionais, as práticas sociais que os envolvem passam a ser variadas.

A perspectiva de se olhar os contextos de tais práticas leva, por exemplo, a considerações históricas, culturais, sociais e materiais importantes no caso da produção de textos ficcionais e de sua leitura. Esses contextos estendem-se desde as práticas observadas em ambiente escolar (as práticas escolarizadas) até as práticas menos visíveis, encontradas em espaços sociais diversos (família, internet, igrejas, vida social etc.). Ao mesmo tempo, tal conceito permite uma expansão do conceito de literatura, na medida em que abarca não apenas as formas ficcionais impressas e verbais, já que o letramento leva em conta as tecnologias envolvidas na produção/recepção da escrita.

Por essa razão, podem ser consideradas formas ficcionais o próprio teatro, a novela televisiva, o videoclipe, a fanfic, a literatura oral, a poesia digital, o cinema, enfim, formas híbridas ou multimodais e outras que superabundam no mundo contemporâneo. Tais formas estão a exigir uma pluralidade de letramentos, gerados tanto pelas materialidades que envolvem a escrita quanto pelos diversos usos que dela se podem fazer, levando à discussão sobre as relações entre práticas letradas de leitura e escrita e outras práticas sociais de uso da escrita ficcional.

Tendo em vista tal panorama, este simpósio pretende agregar trabalhos que discutam aspectos relacionados a três eixos para os quais sugerimos alguns desdobramentos:

1) modos de produção, recepção e circulação de formas ficcionais impressas em diferentes contextos e espaços (imagens de leitura e de escrita na literatura infantil e juvenil, estudos específicos de autores e textos da literatura infantil e juvenil brasileira e estrangeira, estudos sobre recepção de tais textos etc.);

2) modos de produção, circulação e recepção de formas ficcionais em ambientes digitais, produzidos na cibercultura ou em outros contextos (estudos de formas ficcionais multimidáticas ou multimodais; formas multimodais e suas relações com gêneros impressos canônicos; intermidialidades, compreendidas como passagens de uma mídia a outra), literaturas orais e, finalmente,

3) os letramentos envolvidos na apropriação de tais formas ficcionais e sua inserção na cultura (letramentos literários e políticas públicas de leitura, literatura e formação de leitores na escola, materiais didáticos e letramento, práticas de leitura de textos literários em espaço escolar, letramentos em contextos digitais, letramentos escolares, letramentos sociais ou multiculturais).

Fonte:
http://www.cielli.com.br/programacao_geral

Heloísa Prieto (Lampião e a Baronesa)


Quase toda família tem um tio excêntrico. Na minha, ele se chamava Paschoal, era divertido, aventureiro, imprevisível e, para completar, sonâmbulo. Como a maioria dos tios excêntricos na Bahia, ele era um grande contador de histórias. Quase toda família tem uma menina que teima em ser moleca. Na minha, essa menina era eu.

Filha única no meio de um bando de primos, eu disputava o direito a montar cavalos e acompanhar a tropa de peões dia a dia. Até que minha mãe, cansada das minhas botas, dos cabelos cheios de nós, dos meus carrapichos e carrapatos, arrancou-me da sela de meu cavalo e me jogou a pulso na banheira.

Quando voltei à sala, de vestido de renda e cabelos bem penteados, meus primos apontaram o dedo para mim e desataram na maior gargalhada.

- Ela é mulherzinha, ela é pó-de-arroz...

Ser chamada de pó-de-arroz na nossa fazenda, no interior da Bahia, era o pior insulto que uma garota podia ouvir. Então eu os surrei tanto que só me lembro dos gritos:

- Socorro! Ela virou bicho! Socorro, ela tá aperreada, e a gente vai morrer de tanto apanhar!

O cabelo desmanchado, o vestido rasgado, só me lembro da ira de minha mãe e das risadas de tio Paschoal.

- Essa aí, quando crescer, vai virar Maria Bonita. E vai ter que arranjar um Lampião...

Corri para os braços dele: sabia que tio Paschoal me protegeria de mamãe, dos meus primos e de mim mesma.

- Por que é que eu preciso arranjar um lampião de gás, tio? Por quê?

Tio Paschoal sentou-se na rede, pediu uma limonada e acendeu o cigarro de palha. E todos nós fizemos silêncio, porque sabíamos que ele contaria uma história. Inesquecível. Engraçada. De um jeito tão especial que ficaria para sempre grudada na memória...

- Lampião era o apelido de Virgulino Ferreira da Silva, o Robin Hood do sertão!

Lembro que minha mãe riu e, já esquecida da confusão, entrou na roda de história:

- Minha filha, você já ouviu falar dele, tem até filme, livro. Só não contamos ainda para você que sua trisavó, dona Maria Macária, gostava de hospedar Lampião e Maria Bonita.

- Mentira! - eu disse. - Vocês estão brincando!

- É verdade! Lampião era um líder do sertão, sanfoneiro, vaqueiro, defensor dos pobres; caiu na vida porque sofreu uma grande injustiça. É claro que tem muita gente que conta a história de outro jeito, que o chama de bandido sanguinolento. Naquele tempo, era como se a Bahia tivesse se dividido ao meio: de um lado, a polícia, os governantes e inimigos de Lampião; de outro, as famílias que o acolhiam e o viam como um homem de imensa coragem. Bem, minha filha, quem desse refúgio ao capitão desafiava os poderosos, como fez sua avó, mulher de muita bravura.

Suspirei, satisfeita e orgulhosa. Então, minha braveza não era ruindade, mas uma grande coragem que eu trazia no sangue. Minha mãe, sensível e perspicaz, logo percebeu o que eu tinha deduzido:

- Mas não se anime, não. Sua avó Macária tinha coragem, domava cavalo e atirava com perfeição, mas era bonita, usava renda e gostava de perfume. Também não saía por aí surrando moleque feito um bicho-do-mato...

- Deixe, minha irmã - riu meu tio Paschoal. - Deixe, que a menina tem sangue forte, um dia ela apazigua. Agora eu quero contar a história de Lampião.

Aos doze anos, Lampião era o melhor vaqueiro de sua região. Mas aos dezessete foi preso por um pequeno incidente e libertado pelos irmãos: assim se iniciou uma guerra entre sua família e a polícia. Logo depois, ele começou sua carreira de cangaceiro. Juntou um bando e alojou-se nos esconderijos do sertão, que ele conhecia como ninguém. Recebeu esse apelido porque diziam que sua espingarda, ao defender a justiça, trazia a luz tal qual um lampião. Com o tempo e as vitórias, seu bando foi aumentando e conseguindo os melhores cavalos e roupas. Você sabe que Lampião adorava perfume francês? Que seus dedos eram cheios de anéis de prata? Ele também gostava muito de leitura, e, quando seus cabras se casavam, a primeira providência que tomavam era ensinar a noiva a ler. No interior do sertão, poucas mulheres iam à escola.

Então, quando o bando assentava acampamento, havia barracas com livros, máquinas de costura, e havia até cinema, porque Lampião era muito amigo do Turco, um dos primeiros cineastas do Brasil. Era um cabra dos mais modernos, se a gente for pensar, e seu maior ídolo era Napoleão, o imperador francês. Foi para imitá-lo que Lampião mandou fazer um chapéu de abas largas, com estrelas de cinco pontas para dar sorte, sabe como é.

Virgulino tinha sonhos premonitórios, dizem que farejava o perigo. Um feirante me contou que ele venceu tanto perigo por causa das rezas fortes das negras velhas, feiticeiras africanas que o protegiam de um modo sobrenatural. Mas, à medida que as velhas foram morrendo, as rezas foram deixando de fazer efeito, até que ele foi vencido e morto em Angicos.

Lampião, Maria Bonita e seus cangaceiros acreditavam que noite de luar dava sorte. Diziam que, na lua cheia, se você souber olhar, verá são Jorge e seu cavalo branco. Nessas noites, Lampião interrompia as lutas e tocava sanfona, cantava e dançava. Inventava canções muito rapidamente, ninguém o vencia no desafio da viola. Tão boa na rima quanto ele, Maria Bonita o conquistou pela palavra. Maria Dea era jovem demais quando a família a obrigou a casar-se com um sapateiro, bem mais velho que ela, no município de Santa Brígida.

Ao ouvir as aventuras de Lampião, Maria apaixonou-se por ele. E, secretamente, enviou-lhe um bilhete com um lindo poema de amor. O capitão encantou-se com o poema e, quando soube da beleza da autora, quis conhecê-la pessoalmente. Ao vê-la de perto, os olhos azul-escuros, o nariz arrebitado e a boca de menina, Lampião ficou sem palavras, caindo de amores no mesmo momento.

Dizem que Maria Bonita percebeu o sentimento de Virgulino, então riu, entrou para casa e voltou coberta com dois bornais coloridos, bolsas que ela mesma confeccionara, contendo seus pertences.

- Lampião, é você que eu amo. Como é, quer me levar ou quer que o acompanhe?

Em seguida, dirigindo-se ao marido:

- Adeus, Zé, preciso partir com meu verdadeiro amor. Mas sempre terei amizade por você.

O velho sapateiro assistiu à cena sem nada dizer; ele sabia que Maria não era feliz em sua companhia.

Isso deve ter acontecido no ano de 1930.

E assim, pelo menos no amor, Lampião foi muito feliz, vitorioso e querido por Maria Bonita, sua companheira até o derradeiro instante. Cabra muito desconfiado, o capitão tomava bastante cuidado com as coisas que poderiam lhe trazer perigo. Ele conseguiu escapar de todas as tentativas de envenenamento. Era como se o Rei do Cangaço adivinhasse todo tipo de maldade.

Como era feliz com sua Maria, Lampião tinha horror a tudo quanto era casamento forçado. Sabe, naquele tempo, isso era bem comum. Muita gente ficava infeliz por causa de obrigação de família. Mas, se Virgulino estivesse por perto, aí esses casamentos não aconteciam.

Bem, certa manhã, Maria Bonita deu com Lampião caminhando ao longo do rio.

- Anoiteceu e não amanheceu - ele repetia.

Preocupada, Maria perguntou-lhe o que estava acontecendo.

- Fugir não pode, ficar também não - ele respondeu, e ela continuou sem compreender.

Depois, conversando com Corisco, o Diabo Loiro, o melhor homem do bando, Maria Bonita descobriu tudo:

Lampião tinha amor por uma família de comerciantes que sempre lhe davam espelhos, estrelas de prata, bordados e galões para adornar as roupas. Acontece que o filho mais velho dos comerciantes era um moço muito bonito, estudado e um pouco ingênuo. A Baronesa bateu os olhos virados no rapaz, que se chamava César, e o quis para si. Mas o garoto era apaixonado por uma vizinha. Ah, mas a dona Baronesa não admitia perder.

Primeiro tentou namorá-lo. Ele não quis. Então, pensou em mandar matar a rival. Mas logo desistiu. Seria perigoso. Alguém poderia suspeitar dela. Pensou, se acabrunhou, até ter uma idéia diabólica: fingiria ser a melhor amiga de César, e, quando ele cansasse da menina, ela o atrairia para si.

Mas César casou-se com a garota, e felizes eles viviam os dias, sem sequer desconfiar que, a cada hora que passava, o ódio da Baronesa só aumentava. Se com ela César não fosse feliz, com mais ninguém seria. Poderosa, a Baronesa abriu uma loja ainda maior que a da família dele. Vendeu os mesmos artigos pela metade do preço. Em menos de seis meses, César estava enterrado em dívidas.

Foi quando Lampião passou pela cidade, cujo nome era Capela. Como sempre, visitou a loja dos amigos. E, depois de ouvir os problemas que enfrentavam, decretou:

- Meus amigos, não se preocupem, justiça será feita. - Em seguida, disse a Corisco: - Vá até a fazenda da Baronesa. Peça-lhe dinheiro para quem precisa, em nome do capitão Virgulino Lampião.

E Lampião foi esperar pelo retorno de Corisco à beira do rio. Mas Corisco voltou endiabrado, porque, em lugar de dinheiro, a Baronesa mandou respostas desaforadas. Diante da fogueira, o bando todo reunido, Lampião ouviu o relato do Diabo Loiro em silêncio. Era sempre assim quando o perigo o rondava. A maioria das pessoas fala muito quando sente medo. Treme, passa mal. Virgulino era diferente. Quando a revolta o tomava, seus gestos ficavam mais lentos, como se ele calculasse cada movimento, como se virasse uma máquina de luta.

Depois, ele fitou a lua. Cheia. Respirou fundo e disse:

- Corisco, chame os cabras, eu tenho um plano.

A Baronesa conhecia a ira de Lampião e, para defender-se dela, transformara a cidade numa verdadeira fortaleza. A cada esquina, um policial.

No dia do ataque, Lampião contava apenas com dezoito cabras, número bem menor que o dos guardas que o procuravam. Mas o capitão era muito esperto. Um filho de Ogum, o deus
africano da estratégia. Sua tática foi colocar os rifles em duas redes, como se fossem corpos, e passar tinta vermelha nelas, como se fosse sangue derramado. Dois cabras do bando de Lampião, disfarçados em guardas e carregando as redes, chegaram à cidade de Capela. E o povo os cumprimentava e perguntava:

- Quem são os defuntos?

- Cabras do capitão Virgulino!

- Vocês conseguiram? A Baronesa venceu Lampião?

E os homens de Lampião, muito sérios, diziam:

- Pois é, não é que ela conseguiu vencer?

O povo se entristecia, enquanto os cabras disfarçados atravessavam a cidade em direção ao quartel conduzindo "os defuntos" para fazer a ocorrência.

- E o capitão Virgulino? Ele sobreviveu? - indagavam as pessoas.

- Ninguém sabe - respondiam eles.

Chegando ao quartel, depositaram as redes no chão. O sentinela se assustou:

- Esperem! Quantos defuntos! Preciso chamar meus policiais que estão lá fora.

Enquanto isso, aproveitando-se da ausência dos policiais, os cabras de Lampião empunharam os rifles que estavam ocultos nas redes e aguardaram a chegada dos inimigos.

- Mãos ao alto! - gritaram. A cidade está sob o comando de Lampião!

Do lado de fora do quartel, tiros por toda parte. O povo tinha a impressão de que a cidade estava cercada por um exército. Mas era só truque. Lampião ordenara a seus homens que gritassem e atirassem todos ao mesmo tempo, de pontos diferentes, fazendo muito barulho.

Desorientados, os policiais soltaram os presos, mais de vinte homens, que imediatamente se bandearam para o lado do capitão e prenderam os policiais.

- Ele está vivo, o capitão venceu a Baronesa! A justiça impera, o governador reina, viva Lampião! - gritavam.

Depois, Corisco ordenou ao corneteiro que tocasse e anunciasse em alto e bom som que os guardas da Baronesa haviam se rendido a Virgulino. Finalmente, os policiais foram obrigados a entregar os uniformes, ficando quase nus.

Novamente usando disfarces, quarenta homens de Lampião entraram na casa da Baronesa.

- Como vai, dona Baronesa? - perguntaram com ousadia. - A senhora há de fazer justiça a seu povo! Queremos alimentos, armamentos e também jóias para que nossas moças possam adornar-se.

Da casa da Baronesa levaram então dinheiro, jóias e animais de criação. Do quartel, retiraram armamentos e alimentos. As jóias e o dinheiro foram entregues à família de César. Com os alimentos fez-se um grande banquete, que foi oferecido ao povo, bem no meio da praça. E quando a festa corria solta, quando os sanfoneiros cantavam e os violeiros entoavam cantigas sobre a última façanha de Lampião, eis que ele aparece de braço dado com sua inimiga.

- Dona Baronesa me concedeu o prazer desta dança - ele disse, rindo.

Contam que a raiva da mulher era tanta que seus olhos verdes não paravam de revirar. Maria Bonita, Corisco e sua companheira, Dadá, também dançavam e riam às gargalhadas.
O povo se divertia a valer, e, em todo lugar, só se ouvia um refrão:

É Lampi, é Lampi,
Lampi é Lampião.
O nome dele é Virgulino,
Governador do Sertão!

Quando findou a festa, ao raiar do sol, Lampião ainda apanhou a sanfona e despediu-se do povo cantando assim:

Olé, mulher rendeira,
Olé, mulher rendá,
Tu me ensina a fazer renda,
Que eu te ensino a namorar.
E com o povo de Capela
Lampião não vai brigar...

Assim terminou o relato de meu querido e inesquecível tio Paschoal. Lembro que, a essa altura, eu já estava deitada na rede, sonolenta e feliz. Reparei na lua cheia, senti o perfume do chá de erva-cidreira que minha mãe me fazia tomar para "ver se eu melhorava da braveza". Sorri e fiquei enrolando meus cachos com os dedos, como sempre fazia antes de dormir.

Tio Paschoal passou a mão em minha cabeça e disse:

- Viu só, minha sobrinha? Você pode ser tudo ao mesmo tempo: quando você crescer, quero que seja bonita, corajosa, que não esqueça como montar um cavalo bravo, mas que também saiba usar renda e pó-de-arroz. - E daí eu vou ter que encontrar um Lampião...

Meu tio sorriu e preparou-se para dormir. Ele também trazia a bravura no sangue. Logo depois partiu de nossa fazenda na Bahia, que lhe parecia civilizada demais, e foi morar no interior do Amazonas.

Eu cresci e mudei para a cidade de São Paulo.

"Aqui a lua brilha diferente. Aqui os astros são outros", me disse certa vez uma pessoa querida. E eu concordei, pensando assim: "No Sul a gente não encontra as façanhas de Lampião espalhadas nos folhetos de cordel, não ouve as cantigas falando de seu grande amor por Maria Bonita".

E foi por isso que eu quis contar esta história. Para que o mundo todo conhecesse pelo menos um pedacinho de duas vidas repletas de ousadia e de uma estranha sabedoria.

Será que essa aventura aconteceu exatamente assim?

Será que importa saber?

Será que é possível descobrir a verdade?

Para mim, verdadeiras são as lembranças de uma noite de luar, no coração da Bahia, quando ainda bem menina eu me apaixonei pelo amor sem fim de uma moça bonita chamada Maria por um jovem vaqueiro apelidado de Lampião.

E isso fez toda a diferença.

Fonte:
Conta que eu conto (Ana Maria Machado, Angela-Lago, Daniel Munduruku, Heloisa Prieto, Roger Mello ; apresentação de Tatiana Belinky ; ilustrações de Mariana Massarani. - 1a. ed. - São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002. (Coleção Literatura em minha casa ; v. 2)

Érico Veríssimo (O Continente)


Em O Continente é a primeira obra que compõe a trilogia O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, e foi publicado em 1949. Transita entre o lírico e o épico; entre o intimista e o histórico, e abrange 150 anos da história (1745–1895), traçando a origem da sociedade rio-grandense, marcada pelo controle de uma elite latifundiária e pela violência das guerras fronteiriças e das revoluções fraticidas. Nesse período de 150 anos ocorrem grandes acontecimentos históricos que são internalizados no texto literário, tais como o Tratado de Madri, a Guerra da Cisplatina, a Independência do Brasil, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura, a proclamação da República e a Revolução Federalista de 1893.

A palavra "continente" significa no romance, em primeiro lugar, o território conquistado a ferro e fogo durante os séculos XVIII e XIX. A conquista dá-se simultaneamente por ação privada e por ação estatal. A primeira, iniciada nos Campos de Cima da Serra, e comandada por aventureiros sorocabanos e lagunenses, estende-se rumo ao oeste e ao sul da região, em busca de planícies férteis para o pastoreio. A segunda é mais litorânea, através da imigração açoriana e do estabelecimento de fortificações militares pelo Estado português. Ambas confluem e se unificam, no entanto, em um grande objetivo comum: a tomada da "terra de ninguém" e do gado alçado - vacum e eqüino - que vagava às centenas de milhares pelos campos da Serra e da Campanha. Em segundo lugar, o "continente" significa, no romance, o tempo histórico da conquista e da consolidação do poder dos estancieiros na região, associado à solidificação do núcleo familiar, originando os primeiros clãs dominantes. Aqui, "continente" significa aglutinação, coesão, esforço familiar num sentido comum. Bem diferente de "arquipélago", que traz a idéia de desintegração, fim do clã, estilhaçamento, isolamento dos indivíduos.

A obra está inserida no chamado Romance de 30, obras de cunha neo-realista que aliam a descrição denunciante do Realismo às investigações psicológicas das personagens e liberdades linguísticas do narrador, frutos do Modernismo. Assim como O continente, muitas dessas obras são de cunho regionalista.

A visão global compõe-se de sucessivas visões parciais, ou limitadas no tempo e no espaço, de forma que a obra verdadeiramente é uma aglutinação de novelas, entremeadas de cantos de certo sabor poético, impregnados de elementos folclóricos e referências populares. A sua unidade resulta, primeiramente, do próprio desenrolar histórico dos fatos e situações, tendo a região de Santa Fé como ponto de convergência e irradiação. Esboçam-se, ao mesmo tempo, as origens e a formação da cidade do mesmo nome. Os fatos e situações, por sua vez, visam de maneira particular ao processo de enraizamento, de afirmação do poderio econômico e de mandonismo local, de determinadas famílias: os Amaral e os Terra e Cambará. No caso, o ponto de partida do desenvolvimento da intriga, paralelamente com as visões retrospectivas, é a luta entre federalistas e republicanos, de 1893. De um lado, estão os Amaral, de outro, os Terra e Cambará, cujas rivalidades de famílias encontram evasão nas lutas políticas.

Integram a primeira parte, além de outros, os capítulos O Sobrado, Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo, onde aparecem inúmeras personagens, entre as quais: Pedro Missioneiro, Ana Terra, Pedro Terra, Bibiana, Capitão Rodrigo, Bolívar, Licurgo; vivendo a tragédia da conscientização de uma terra fixada às próprias raízes.

Uma crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras, eis o cenário onde brota a gênese da Província de São Pedro. Ao início de O continente, no episódio de Ana Terra, o espaço físico foi inteiramente destruído após um ataque de castelhanos que massacraram todos os homens válidos da fazenda de Maneco Terra. Sob a imensidão do campo, duas mulheres e duas crianças sepultam os seus mortos. Desses escombros surge a personagem de Ana Terra, armada de uma confiança absurda em si mesma, que se integra na caravana pioneira para fundar, muito distante, a vila de Santa Fé. Com ela segue o filho, que será o pai de Bibiana; e assim fica assegurada a continuidade da vida. A mesma intriga, distribuída por diferentes níveis de temporalidade, repete-se várias vezes na sucessão de gerações de Terras e Cambarás.

Na personagem Ana Terra se reedita o primeiro dia da criação, a imagem primitiva da fecundação, enquanto antítese da morte. Diz Érico: "Penso nela como uma espécie de sinônimo de mãe, ventre, terra, raiz, verticalidade, permanência, paciência, espera, perseverança, coragem moral."

Há um estranho paradoxo em O continente. Essa epopéia, cuja linha episódica foi traçada no encadeamento dos feitos guerreiros, parece ter sido escrita para reafirmar a insanidade da guerra. Enquanto a seqüência cronológica avança mediante lutas fratricidas entre Cambarás e Amarais, a visão de mundo do autor, sua crença nos valores permanentes da vida, está expressa na saga de Ana Terra e nos silêncios de Bibiana.

A obra apresenta em sua estrutura textual elementos que não se enquadram nas características do romance histórico tradicional. Lembremos que uma das
características era de que os romances históricos a exemplo dos procedimentos típicos da escrita da História, organizam-se em observância a uma temporalidade cronológica dos acontecimentos narrados. O continente, porém, rompe essa temporalidade cronológica. Para abranger esse longo período, o escritor lançou mão de dois tempos históricos: um que se passa em 3 dias de junho de 1895, durante o cerco ao sobrado dos Terra-Cambará na Revolução Federalista, e outro anterior, que remonta a 1745 e vai avançando cronologicamente até se aproximar de 1895.

Esse primeiro tempo histórico que se passa em poucos dias e que abre e fecha o romance como uma moldura é dividido em sete episódios intitulados O Sobrado. Esses episódios estão ligados aos episódios do outro tempo histórico, mas ao mesmo tempo são independentes, de forma que se o autor publicasse-os separados não haveria nenhum prejuízo em sua inteligibilidade. O continente utiliza-se de dois tempos históricos que se encontram no final da narrativa.

É interessante ainda lembrar a observação feita por Regina Zilberman sobre esse aspecto estrutural do romance: “importante também é a estrutura da obra: o romance abre e fecha com uma moldura, o cerco ao sobrado ao final de junho de 1895, com seu ritmo próprio e independência em relação ao conjunto do texto”(ZILBERMAN, 1998, p. 140). Esses episódios-molduras são estruturados como um diário dentro da obra. Observemos um deles:

O SOBRADO - II

25 de junho de 1895: Madrugada

Um grito atravessa o sono de Rodrigo, que acorda sobressaltado. É a mamãe – pensa ele. O coração começa a bater-lhe acelerado. O medo aumenta-lhe a impressão de frio, e ele sente na boca do estômago medo e fome confundirem-se numa mesma sensação de vazio gelado e náusea. Não tem coragem para abrir os olhos porque sabe que o quarto está às escuras. Com o punhal nas mãos e as mãos apertadas entre as pernas , encolhido e meio trêmulo, ele escuta... Deve estar saindo o filho – imagina. Pobre da mamãe! (VERISSSIMO, 1997, p. 67)

Intercalados aos episódios do Sobrado que se passam cronologicamente de 25 a 27 de junho de 1895, estão os episódios A Fonte, Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo, A Teiniaguá, A guerra e Ismália Caré. Estes episódios são responsáveis pela sequência cronológica do vasto período histórico abordado no romance, desde 1745, no período em que os Sete Povos das Missões ainda pertenciam aos espanhóis e o Brasil ainda ainda era colônia portuguesa até o início da década de 90, do século XIX, período que o Brasil já era republicano. Esses episódios estão ligados uns aos outros mas ao mesmo tempo também são indepedentes. Prova disso foi a publicação em edições separadas dos episódios Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo. Desse modo, a sequência cronológica linear do tempo é rompida em O continente através da utilização dos dois tempos históricos.

ENREDO

Em O continente, a saga da família Terra-Cambará inicia-se com a união de Pedro Missioneiro, um mestiço criado nas missões jesuíticas, filho de uma índia que é estuprada por um bandeirante, com Ana Terra, filha de colonos pobres de origem portuguesa que vieram do interior de São Paulo para o Rio Grande do Sul, naquela época uma terra ninguém, disputada por portugueses e espanhóis. O sangue dos Terras receberá, no terceiro capítulo do livro (seguindo em linha cronológica e não levando em conta os episódios de moldura do sobrado), o reforço dos Cambarás, através do casamento entre Bibiana Terra, filha de Pedro Terra (fruto da união de Pedro Missioneiro com Ana Terra), com Rodrigo Cambará, filho do aventureiro do Chico Rodrigues que, a partir da união com a açoriana Maria Rita passa-se a chamar Chico Cambará. Aí então está formado o clã Terra-Cambará, representado alegoricamente na árvore cambará que cria raízes na terra santafezense, quando Rodrigo Cambará casa-se com Bibiana e fixa residência em Santa Fé. A partir daí, mesmo sofrendo alguns reveses, o clã inicia um lento processo de prosperidade que vai culminar na condição de família latifundiária. O fim da narrativa apresentará Licurgo Terra Cambará como intendente de Santa Fé, dono da grande estância de terras do Angico e do imponente sobrado, símbolo do prestígio social e poder político local.

ESTRUTURA DA NARRATIVA

O romance é narrado em terceira pessoa, numa linguagem tradicional. Há apenas um desvio na linearidade cronológica do texto. A ação do episódio O sobrado, apesar de ser temporalmente a última de O continente, é dividida em sete fragmentos. Estes, por seu turno, são espalhados pelo narrador dentro do volume, de maneira que o primeiro fragmento abra o livro e o último o encerre. Cria-se assim, na narração, um contraponto temporal.

O outro desvio nasce da inserção no texto de "intermezzos", isto é, de rápidos quadros - seis ao total - escritos em linguagem próxima à lírica, quase em versos, e no tempo verbal do presente. Funcionam como passagens intermediárias da narrativa central, e são verdadeiros poemas em prosa. A rigor, parecem desempenhar um tríplice papel no romance:

a) Preencher vazios, tanto na construção de personagens secundários quanto em aspectos históricos riograndenses que não foram suficientemente elaborados nos episódios.

b) Reforçar o caráter simultaneamente épico e brutal da conquista do território chamado continente de São Pedro.

c) Apresentar um contraponto social, na figura dos Carés, gente sem eira nem beira, desvalidos, arranchados na fazenda do Angico, e que servem de "bucha-de-canhão" nas guerras locais e de amantes baratas para os fazendeiros.

CAPÍTULOS

1- A Fonte


Primeira parte, assim chamada porque o que se segue é a história do personagem que se torna a fonte do qual surge toda a família. É a história do mameluco Pedro Missioneiro, que nasceu em 1745, morou nos Sete Povos das Missões e adquiriu de um padre (seu padrinho, que o batizou com o nome de um homem, que um dia quis matar pela amante antes de se tornar padre) uma adaga que passa pela família. Pedro tinha visões que se realizavam, dizia ser filho da Virgem Maria e sai da Missão três meses após a morte de Sepé Tiaraju.

O que destacar em A fonte:

a) A confluência da cultura mística católica e a consciência mágica dos índios na figura de Pedro, explicando a sua tendência a visões e premonições.

b) A criação de uma origem mitológica para o estabelecimento da sociedade rio-grandense, na medida em que Pedro, mais tarde, fecundará Ana Terra, dando início – em termos simbólicos – a um tipo local, o gaúcho. É visível – neste romance de “fundação” de um mundo regional – a influência de Iracema, de José de Alencar.

2- Ana Terra

Substrato histórico: A conquista do território por famílias paulistas e a fundação dos primeiros povoados. Duração temporal: 1777 a 1811. Leia mais sobre este capítulo...

3- Um certo capitão Rodrigo

Substrato histórico: A emergência e apogeu dos gaudérios. A Revolução Farroupilha. A chegada dos primeiros imigrantes alemães. Duração: 1828 a 1836. Este é dos capítulos que merecem destaque, seja pelo apuro estilístico do autor, seja pela temática desenvolvida. Um Certo Capitão Rodrigo, presente em O Continente, merece essa atenção especial. O capítulo tem o mérito de retratar, ou recriar, a imagem do homem gaúcho forte, bravo, destemido, na figura do personagem principal: capitão Rodrigo Cambará.

A cena da chegada do capitão Rodrigo à cidade de Santa Fé já é suficiente para passar essa idéia do homem gaúcho, tanto pelas vestimentas como pela personalidade:

“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o capitão Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal.
Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:
– Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
– Pois dê”

A descrição do valente e imponente capitão entrando no pacato vilarejo, seguida do desaforado cumprimento da chegada, antecipa o incômodo que essa figura produzirá em tal espaço. O dono da resposta curta e grossa que aceita o confronto, porém, não se tornará seu antagonista na história. Será seu futuro cunhado, Juvenal Terra.

A importância desse capítulo está no fato de que – além de apresentar a figura típica do gaúcho encarnada pelo capitão Rodrigo – mostra a união dos dois grandes sobrenomes que marcarão, na obra, a formação do estado do Rio Grande do Sul: os Terras e os Cambarás.

Apaixonando-se perdidamente por Bibiana Terra, o capitão a conquista após minar sua resistência e a de sua família, além de ter vencido em um duelo o pretendente rico de Bibiana: Bento Amaral, filho do coronel Ricardo Amaral. Essa união representa, estruturalmente, o eixo das duas famílias que irão protagonizar toda a trilogia.

O carisma de Rodrigo Cambará acaba por conquistar, de fato, não apenas Bibiana Terra, mas vários moradores de Santa Fé, como o padre Lara e Juvenal Terra, com quem monta um negócio. A figura do capitão, no entanto, distancia-se em todos os momentos do perfil do bom moço. Mesmo depois de casado com Bibiana, Rodrigo Cambará mantém o gosto pelo carteado, pela bebida e, principalmente, por outras mulheres.

O antagonista de Rodrigo Cambará é Bento Amaral, com o qual trava uma luta atrás do muro do cemitério, após um desentendimento em uma festa de casamento. Nesse confronto, o filho do coronel, desonrando a batalha, utiliza uma arma de fogo contra o capitão.

Antes de dar o tiro à traição, Amaral quase recebe a marca do capitão Rodrigo: um “R” na testa. Surpreendido pelo disparo, no entanto, o capitão só tem a possibilidade de talhar um “P”. Falta-lhe tempo para completar a letra “R”. A cena final desse capítulo é a invasão do casarão da família Amaral. Nesse episódio, morre o capitão Rodrigo Cambará, deixando órfão o filho Bolívar:

“O tiroteio começou. A princípio ralo, depois mais cerrado. O padre olhava para seu velho relógio: uma da madrugada. Apagou a vela e ficou escutando. Havia momentos de trégua, depois de novo recomeçavam os tiros.
E assim o combate continuou madrugada adentro. Finalmente se fez um longo silêncio. As pálpebras do padre caíram e ele ficou num estado de madorna, que foi mais uma escura agonia do que repouso e esquecimento. O dia raiava quando lhe vieram bater à porta. Foi abrir. Era um oficial dos farrapos cuja barba negra contrastava com a palidez esverdinhada do rosto. Tinha os olhos no fundo e foi com a voz cansada que ele disse:
– Padre, tomamos o casarão.
Mas mataram o capitão Rodrigo – acrescentou, chorando como uma criança.
– Mataram?
O vigário sentiu como que um soco em pleno peito e uma súbita vertigem. Ficou olhando para aquele homem que nunca vira e que agora ali estava, à luz da madrugada, a fitá-lo como se esperasse dele, sacerdote, um milagre que fizesse ressuscitar Rodrigo.
– Tomamos o casarão de assalto. O capitão foi dos primeiros a pular a janela. – Calou-se, como se lhe faltasse fôlego.
– Uma bala no peito...”

O espaço de Santa Fé - Em Um Certo Capitão Rodrigo, o espaço marca de forma muito evidente uma rígida separação, de acordo com a classe social dos personagens.

O espaço nessa narrativa funciona como índice social, que divide os personagens do capítulo. O casarão representa o poder local, enquanto a venda do Nicolau e o terreiro da casa de Joca Rodrigues, entre outros pontos, representam o espaço das classes mais pobres.

Essa repartição fica clara quando se nota que os dois confrontos da narrativa – o primeiro entre Bento Amaral e Rodrigo Cambará; o segundo, na tomada do casarão – se desenvolvem com a invasão, indevida, desses espaços.

No confronto entre Rodrigo e Amaral, este último estava em um ambiente popular, o que era impróprio, segundo os valores vigentes. Esse fato favoreceu o encontro com seu oponente. Já a invasão ao casarão da família Amaral acabou por representar o conflito final. Leia mais sobre este capítulo...

4- A teiniaguá

Substrato histórico: A consolidação da vida urbana no RS. Duração: 1850 – 1855.

Em 1850 Santa Fé já possui sessenta e oito casas e trinta ranchos. Chama atenção o magnífico sobrado construído por um nortista de origem misteriosa, Aguinaldo Silva. Dele também é a melhor fazenda da região, a do Angico. Porém a sua principal atividade econômica é a agiotagem e muitas terras, inclusive a pequena propriedade de Pedro Terra tinham passado para suas mãos.

Aguinaldo tem uma neta adotiva, Luzia, de esplêndida beleza e “modos de cidade”: veste-se bem, é culta e toca cítara. Desperta paixões, especialmente entre os dois primos, Bolívar e Florêncio (filho de Juvenal Terra) que a disputam. Luzia termina optando por Bolívar, filho do Capitão e de Bibiana, herói juvenil na guerra contra o tirano argentino, Rosas.

Bolívar está completamente enfeitiçado por Luzia. Atendendo uma determinação da própria jovem (que tem dezenove anos), marca-se o noivado para a mesma hora em que um escravo, suspeito de crime hediondo, vai ser enforcado. Os sinais de estranha doença começam a aparecer na moça que veio do Norte.

Também surge neste episódio um dos protagonistas mais importantes de O continente, o Dr. Carl Winter, médico alemão, culto, solitário, extremamente observador e um pouco bizarro, e que havia fugido da Alemanha por razões sentimentais e políticas. Ele será uma espécie de “comentarista” da vida cotidiana e dos costumes, tanto de Santa Fé quanto da província de São Pedro. Não é errado considerá-lo como um “alter-ego” (um “outro eu”) de E. V. Fascinado por Luzia (uma mescla de curiosidade e desejo), ele a compara à lenda local da teiniaguá, a princesa moura transformada pelo diabo numa lagartixa, cuja cabeça consiste numa pedra preciosa de brilho ofuscante que atrai e cega os homens.

É o Dr. Winter o primeiro a perceber a doença da alma que corrói a bela Luzia: a moça tem prazer com o sofrimento alheio. Na hora do enforcamento do escravo, ela corre para a janela a fim de se deliciar com o espetáculo:

Primeiro o rosto dela se contorceu num puxão nervoso, como se tivesse sentido uma súbita dor aguda. Depois se fixou numa expressão de profundo interesse que aos poucos foi se transformando numa máscara de gozo que pareceu chegar ao orgasmo.

Por isso, casando-se com Bolívar, uma mente singela, ela se aproveitará para atormentá-lo. No entanto, contraditoriamente, Luzia tem momentos de ternura e alegria para com o marido, estraçalhando-se, pouco a pouco, os seus nervos de homem enfeitiçado. Essa alternância de loucura e fascinação, revela uma Luzia não apenas sádica, mas também masoquista, porque há passagens em que ela parece se comprazer com o próprio sofrimento. Bibiana, a sogra, também percebe o que o Dr. Winter já enxergara e passa a odiar a nora.

Em 1853, Aguinaldo Silva cai do cavalo e fratura o crânio, sobrevivendo ainda três dias. A neta acompanha-o, minuto após minuto, comprazendo-se com o sofrimento do avô. Seu sado-masoquismo é visível. O nascimento de Licurgo Cambará, o filho do casal, atenua brevemente a situação. Em seguida, deixando o nenê nas mãos de Bibiana, Bolívar e Luzia partem, numa viagem recreativa para Porto Alegre.

Na capital da província uma epidemia de cólera dizima a população. Em vez de retornar, o casal permanece no centro da grande epidemia. E. V. não narra os acontecimentos na capital, mas meses depois, quando os dois voltam, Bolívar está tão destruído psicologicamente que o Dr. Winter e Bibiana intuem o que havia ocorrido: a euforia e o gozo de Luzia, vendo o terror de todos diante da peste, deliciando-se com o desespero das pessoas que caíam nas ruas, agonizantes.

Ao tentar rever o filho, Licurgo, a teiniaguá é impedida por Bibiana e tem um ataque de fúria, chamando a sogra de “cadela”. Bolívar então espanca a esposa e sai da sala, cada vez mais arrasado interiormente.

O coronel Bento Amaral aproveita-se do contexto para vingar-se dos Cambarás, decretando a quarentena do sobrado. Isto é, durante quarenta dias, ninguém, a não ser o dr. Winter, poderia entrar ou sair do casarão. Capangas dos Amarais cercam, então, o local para que a ordem do caudilho fosse cumprida. Bolívar “caído de borco, no meio da rua, com a cara metida numa poça de sangue.”

5- A Guerra

Substrato histórico: A Guerra do Paraguai. Duração: 1869 – 1870.

Conta a história dos anos finais da Luzia e sua disputa com Bibiana pelo amor de Licurgo enquanto este cresce. Luzia está na época com um tumor no estômago, e a preocupação principal de Bibiana é permanecer no sobrado. Luzia, ao final, perde a guerra não-declarada, pois o que queria era um filho cosmopolita, e Licurgo continua em Santa Fé.

Ismália conta a história de Licurgo já mais velho, trabalhando em Santa Fé com seu melhor amigo, o jornalista Toríbio, pela proclamação da República, tudo enquanto envolvido com o casamento com a prima Alice, filha de Florêncio Terra e a amásia, Ismália. Ismália é uma china (palavra usada até hoje em partes do Rio Grande do Sul, que designa uma “mulher da vida”) submissa a Licurgo do qual este gosta e permanece assim pelos anos que seguem e engravida dele. A luta pela República enfim tem sucesso e a rivalidade dos Terra Cambará com os Amaral continua com Alvarino e Licurgo, como antes fora com Bento e Rodrigo.

Semi-inválido, Florêncio retorna da guerra quase em seu final. Através do Dr. Winter sabe do confronto entre Bibiana e Luzia, dentro do Sobrado. Sabe também que Luzia tem um tumor maligno no estômago e que cada mulher espera a morte da outra.

Enquanto isso, na fazenda do Angico, o adolescente Licurgo Cambará efetiva sua educação à maneira rio-grandense, guiado por Fandango. Típico gaúcho fanfarrão, exímio contador de histórias, conhecedor de casos e lendas, expressando-se por ditados, tendo apurada memória por quadras, trovas e modinhas, dono, por fim, de grande sabedoria campeira, Fandango é o professor do seu futuro patrão. A partir dessas experiências gratificantes, – e tendo como contraponto, na cidade, a sombria doença da mãe – Licurgo só se sentirá à vontade no campo, desenvolvendo uma primitiva identificação com as lides pastoris e as coxilhas.

No Sobrado, Bibiana consegue afastar os pretendentes de Luzia, revelando-lhes pormenores da “loucura” da nora. Seu objetivo é impedir um novo casamento da jovem viúva porque assim Licurgo herdará sozinho todas as propriedades da mãe. O Dr. Winter acompanha a luta entre as duas, mas não toma partido de nenhuma, embora sua maior intimidade seja com Bibiana. O episódio encerra-se sem que a vitoriosa seja conhecida.

6- Ismália Caré

Substrato histórico: O surgimento da oposição republicana e abolicionista. (PRR – Partido Republicano Rio-grandense). Duração: 1884.

Em 1884, Santa Fé é elevada à categoria de cidade. O Coronel Bento Amaral ainda domina politicamente, mas Licurgo Cambará representa a oposição republicana que já não aceita a hegemonia da oligarquia monarquista. O ódio entre as duas “casas” fica latente numa cavalhada festiva, em que se enfrentam “mouros” e “cristãos”, e o que deveria ser encenação quase vira um confronto sangrento.

No plano pessoal, Licurgo vai se casar com sua prima Alice Terra (filha de Florêncio). A irmã dessa, Maria Valéria Terra também o ama, mas sufoca seu afeto proibido. Independentemente dos amores que desperta, o Cambará sente-se preso sexualmente a Ismália Caré, filha de um agregado pobre que vive num rancho, numa fazenda do Angico.

Sob a influência de um bacharel baiano que vive em Santa Fé, Toríbio Rezende, Licurgo torna-se republicano e abolicionista fanático, libertando seus próprios escravos. Na noite da libertação, ele vem a saber que Ismália Caré está grávida e decide que a amante “vai botar o filho fora”, isto é, precisa abortar.

Além disso, há referências neste episódio a respeito da morte de Luzia. Surge também um personagem interessante, o sacerdote Atílio Romano, italiano de nascimento e formação, brasileiro de coração, magnífico orador e intransigente defensor da miscigenação étnica e da paz entre os grupos que se hostilizam na província.

O que destacar em Ismália Caré

a) O quadro vivo da contenda política entre as frações dirigentes (Amaral versus Cambará), cujos rancores e ódios já estão latentes antes da República e do triunfo do castilhismo.

b) A ambigüidade moral de Licurgo perante a sua futura esposa, Alice, pois não pretende se livrar (nem se livrará) da amante, Ismália Caré.

c) A sua ambigüidade ética no caso da libertação dos escravos. Apesar da grandeza de seu gesto, subjetivamente ele sente raiva e irritação com “aqueles negros” que pisam na sala do Sobrado, alguns aturdidos e outros, arrogantes.

d) O surgimento de Maria Valéria Terra, cunhada de Licurgo, de grande importância em episódios seguintes.

7- O Sobrado

Substrato histórico: Toda a ação transcorre em três dias de junho de 1895, nos estertores da Guerra Civil entre republicanos (“chimangos”) e federalistas (“maragatos”).

Vencendo seu medo, o maragato José Lírio chega na torre da igreja de onde se domina o quintal do Sobrado e, conseqüentemente, o poço de água que garante a sobrevivência dos Cambarás e de seus homens. No entanto, ao pensar nas mulheres e nas crianças que estão na casa fortificada, José Lírio acaba errando intencionalmente o tiro no chimango que, em desespero, tentava buscar água no poço para matar a sede dos sitiados.

Esta capacidade de tolerância e de compreensão “daqueles que estão no outro lado” não são compartilhadas por Licurgo Cambará, que se recusa a pedir trégua aos maragatos, tanto para cuidar dos feridos e sepultar os mortos, quanto para atender sua esposa, Alice Terra, que está em trabalho de parto, e necessita de urgentes cuidados médicos. Inflexível e autoritário, Licurgo não aceita os olhares recriminatórios do sogro, Florêncio Terra e da cunhada, Maria Valéria, mesmo que a esposa e a criança corram perigo de vida. Para ele seria um ultraje à honra solicitar a complacência dos inimigos.

O resultado de sua intolerância é que a menina nasce morta e é enterrada no porão da casa, cheio de ratos. Também o sogro, Florêncio, provavelmente enfraquecido – durante o cerco não havia mais nada a comer senão laranjas – termina morrendo no final do episódio, logo após o fim do cerco do Sobrado, com o abandono da cidade pelas forças maragatas.

Na última página, Bibiana Terra já catacega e meio caduca, pede silêncio a Fandango, que ia lhe levar a notícia da morte de seu sobrinho, e apontando para janela onde o vento uiva, diz: “Está ouvindo?”

Há o brilhante jogo entre a vida e morte, representado pelo parto, de um lado, e pela guerra, de outro. Torna-se evidente o pacifismo do autor, pois o machismo, o sentido de honra e a inflexibilidade ideológica de Licurgo Cambará são completamente impugnados no andamento do episódio.

A covardia de José Lírio que, na verdade, obriga-o a superá-la através da legítima coragem, produzida pela vitória sobre o medo. Além disso, o referido protagonista rompe com a intolerância e com o radicalismo políticos, mostrando-os como repugnantes à consciência humanista.

Não por acaso, o começo de O continente (O Sobrado I) se dá com ele, José Lírio, ou seja, um indivíduo que coloca respeito à condição humana acima das ideologias e interesses que arrastam os homens para a guerra. Este livro sobre a guerra começa, na verdade, com um libelo a favor da paz.

O aparecimento – ainda que de modo periférico – dos dois irmãos, Toríbio e Rodrigo tendo este último papel decisivo nos livros subseqüentes. A presença, agora mais intensa, de Maria Valéria Terra com idêntica função de Ana Terra e de sua tia-avó, Bibiana. A mesma força interior, a mesma resistência silenciosa, o mesmo desprezo pela violência guerreira dos homens.

A particularização – através do cerco do Sobrado – da mais sangrenta e cruel de todas as lutas rio-grandenses, a Guerra Civil (1893 – 1895) com seu terrível rosário de crueldades, degolas, estupros e terrorismo de Estado, este desenvolvido pelos autodenominados “progressistas” da época: Júlio de Castilhos e sua horda republicana.

Observações Gerais

Além da imagem da casa – o sobrado – o autor utiliza-se de referências da natureza – sobretudo da alusão ao vento - com o fito de integrar as personagens e as ações a âmbitos cada vez mais amplos da trama e da História. Esse procedimento de integração permite uma mistura entre espaço doméstico e palco de guerra, do mesmo modo que justifica a referência ao vento como marca de tempo – numa perspectiva que conduz do particular para o geral, da parte para o conjunto, da definição de detalhes às imagenssíntese, nas quais se incluem os títulos das partes e do todo.

Para além do círculo de casa – e ainda no espectro romanesco – os cruzamentos se ampliam, chamando para o diálogo a memória de Ana Terra, Capitão Rodrigo, Luzia – os antepassados de Licurgo e de outros ocupantes da casa. Esses são flagrados em distintas épocas, tanto pelos recuos do tempo da narrativa como pela sobrevivência de personagens que, ao modo da velha Bibiana, avó de Licurgo, são remanescentes de outras épocas. Desse modo, novas imagens vão se formando na teia de relações aberta pelos trechos que preenchem os espaços entre as diferentes focalizações sobre o sobrado.

Além de funcionarem como referências ficcionais, essas imagens vão colocando em diálogo recortes históricos diversos. De 93, retrocede-se a episódios do
povoamento do solo sulino, à época das missões jesuíticas e à revolução farroupilha, para citar três declinações expressivas.

Os diferentes níveis de representação, tal como estão dispostos em O Continente – e, de resto, ao longo de todo O tempo e o vento – exigem que o leitor vá montando a história, como se juntasse as peças de um quebra-cabeça. O procedimento, que é próprio dos grandes romances, fica reforçado pela utilização que Verissimo faz do contraponto, no qual aprofunda o uso da composição fracionada da história, cujos pontos, disseminados pelo todo, são ampliados passo-a-passo. A essa altura podemos afirmar que o cruzamento entre entrecho ficcional e eventos históricos interfere mesmo na estrutura da obra em questão, posto que é decisivo para as dotações de tempo, espaço e seqüenciação dessas narrativas.

Da perspectiva do arranjo ficcional, a escolha da revolução federalista como tópico de partida de O continente – e, de resto, da própria trilogia, considerando-se que se trata do volume inaugural - reveste-se de particular significado. Na história do Rio Grande do Sul esse é um conflito essencial, pois significa a passagem da antiga ordem institucional, arranjada com os acordos imperiais que puseram fim à revolução farroupilha, à ordem republicana, assentada no ideal positivista de Júlio de Castilhos.

Fonte:
Guia do Estudante - Editora Abril , em Passeiweb