domingo, 6 de maio de 2012

Bernardo Trancoso / ES (Diário de um Sonetista)


Tem horas que a gente fica com uma vontade louca de escrever e, mesmo sabendo que para escrever é preciso muito mais do que uma simples vontade, abre a gaveta às pressas à procura de lápis e papel. Há quem já arranque a folha do caderno antes que surjam as primeiras palavras. Há quem arrisque rabiscar o que lhe vem à mente, sem preocupação com a coerência, com a gramática, ou com o destino aonde aquilo tudo vai levar. Embora saiba o propósito deste texto, que é o de introduzir no meu sítio um lugar para a minha prosa, na intenção de que isto possa um dia ajudar alguém a começar as suas andanças pela literatura, neste exato instante eu pertenço a esta categoria de escritores compulsivos: não sei sobre o que vou escrever.

Só que minha vontade louca resolve, ao invés de enveredar pelos caminhos complicados da importância de escrever, que é tão ou mais valiosa do que a de ler, percorrer as trilhas seguras e sensatas do prazer que dá ao escritor o texto completo, bem feito. Não estou falando, outra vez, das concordâncias verbais e dos reguladores lingüísticos impostos pela gramática. Em matéria de palavras escritas, sou um pecador como qualquer outro: cometo minhas confusões com verbos, substantivos e vírgulas. Não sei mais distinguir a diferença entre uma oração subordinada causal e outra, concessiva. Agente da passiva, então, nem se fala. O editor de texto que estou usando é o meu corretor básico, o restante é o que lembro das aulas da Dona Edna e dos demais professores que tive... Enfim, perdoe-me pelos erros de português, aquela história... Mas, por favor, me deixe terminar este texto. Ou, como o autor do último livro que li dizia, não me perdoe, os erros são propositais.

Leio muito, eu. Adoro o prazer de um bom livro. Eles me fazem navegar por universos ainda inexplorados e que na maioria das vezes acabam ensinando algo. Recentemente, li um muito interessante sobre um jovem indiano que atravessa o Pacífico com uma hiena, um tigre de bengala e um orangotango... Quem tiver a oportunidade, o livro em português chama-se "A vida de Pi". Não vou falar mais nada dele, pois livro é igual xampu: para a cabeça de uns, serve; para a de outros, não. Se você não gostar, não me culpe. Nem culpe o autor, pois ele não pode, sob nenhuma hipótese, ser retirado do pedestal onde se colocou ao romper a barreira da imortalidade e escrever um livro. Algumas dicas para ler sempre: troque regularmente de autor e de assunto, para não enjoar; se não gostar de um livro e demorar em terminá-lo, tente voltar a ele no máximo três vezes e depois desista (levei um ano para ler um livro do Salman Rushdie... arrependo-me até hoje); com todo respeito aos tradutores, se puder leia um livro no idioma em que foi escrito e, finalmente, não procure grandes livros apenas em grandes autores – é muito bom ser surpreendido por um autor pouco conhecido no meio.

Veja só o leitor como já saí do tema inicial deste texto e enfurnei-me por outros caminhos. É assim com a poesia, é assim com a vida da gente onde nem tudo sai do jeito que esperamos, por que não haveria de ser assim com um artigo de abertura de uma página sobre o prazer de escrever? A magia da escrita está na liberdade que ela proporciona. Quando lemos algo, o fim já está escrito, ainda que não o conheçamos. No ato de escrever, o poder criador passa a ser do autor. Porém, com este poder advém, de certo modo, uma responsabilidade para responder pelas suas palavras. Salman Rushdie – convém citá-lo novamente – que o diga... Por isso é que escrever é arte; ler não é arte. Voltemos, então, ao tema principal.

"Como se escreve menos hoje em dia, como se escreve tanto hoje em dia". Li isso buscando na Internet um artigo sobre isso mesmo, e parei por aí. Escrevemos demais. Na frente de um computador, conversamos no aplicativo de mensagens instantâneas, enviamos e-mail, digitamos o endereço de uma página da Internet... A vida de muitas pessoas – a minha, inclusive, e cada vez mais a sua – gira hoje em torno de um quadrado de quinze polegadas com resolução de 800 por 600. Digito muito o dia inteiro mas, ao final, não escrevi nada. E o que isso representa? Menos livros, menos poesias, mais conteúdo para satisfazer necessidades momentâneas e egoístas e, portanto, inútil em um contexto mais amplo. Há os que alertam sobre o fim das relações entre as pessoas com o advento do Messenger e, mais recentemente, do iPod. Neste artigo, que já está ficando comprido, não entrarei no mérito deste tipo de discussão. Para mim a música é e sempre foi uma representação artística que abre a cabeça, inspirando outras artes. Basta fazer um teste para ver quantas músicas você conhece de memória. Música é poesia. Portanto, sem saber já estamos cheios de poesia dentro de nós. Agora, expressar esta poesia, acrescentando nela o elemento diferenciador de que somos feitos, que é a nossa personalidade, são outros quinhentos. E isso é o que me preocupa. Sinto que, em proporção com o século passado, estamos cada vez mais carecendo de escritores. E não estou falando apenas de dissertações, mas também de poemas e – para caber neste espaço – sonetos. Como eu gostaria de encher o meu sítio de sonetistas novos...

Não posso esquecer dos blogs, ou diários virtuais que muitos mantêm em um sítio na rede mundial de computadores. São geralmente compostos de textos curtos, relatos de acontecimentos esparsos que, sem dúvida, no mínimo ajudam a praticar o português. Afinal, ninguém gosta de entrar em um blog e encontrar a palavra "menas", popularizada não se sabe como nem por quem, mas que é cada vez mais comum na linguagem falada e dói ao ouvido daqueles que são um pouco mais cultos. Por isso, seus donos devem ter cuidado com o que publicam. Sim, os blogs são uma tendência louvável (isso aqui é uma espécie de blog), mas sinto que ainda falta um passo na evolução, ou melhor, na recuperação do prazer da escrita na era digital.

E é aqui que este artigo termina, meu amigo, sem definir solução alguma para o problema da perda de escritores. Espero, com o tempo e com outros textos como este, dar a minha contribuição para o tema. Estou até com um livro na gaveta que pretendo publicar em um futuro não muito distante. Novos sonetos meus, que já fluíram com mais vigor, ajudar-me-ão a manter o apego pelo conjunto lápis e papel. Mas o propósito, mesmo, é repassar o lápis. E quem sabe, um dia, no meio deste amontoado de palavras e de versos, passe por aqui um sujeito tímido e sonhador, com uma mente frenética ocultada por um olhar distante, e quem sabe ele resolva que nasceu para ser escritor, e quem sabe a partir de suas palavras eu encontre inspiração para mais um artigo, que inspire outro escritor num círculo vicioso e não menos romântico... Ah, aí neste momento, já não terá sido em vão... Já estou até ouvindo a minha mãe dizer: "deixa de sonhar, menino!".

São Paulo, 20 de março de 2005.
Bernardo Trancoso


p.s.: Relendo o primeiro parágrafo, no afã de revisar o que foi feito, empolguei-me por conseguir adequar o texto à sua proposta inicial de escrever compulsivamente. Todavia, nos demais parágrafos, senti pesar sobre mim a responsabilidade de deixar algo de inspirador e interessante para os leitores, e o que vi foi mais uma crítica do que um incentivo ao ato de escrever. Fiquei até meio triste com o texto... Será que eu também terei perdido o prazer de escrever e vou me juntar ao grupo dos que passeiam pela vida sem deixar uma mensagem escrita, como um testamento de sua alma, para as gerações vindouras? Ou tudo isso é saudade do estimado autor Fernando Sabino?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/vep1.php

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