Lá na fazenda do meu pai havia uma tulha mal-assombrada.
Fora construída pelo antigo dono da fazenda, o senhor Yoshida, para o armazenamento das sacas de café.
Para evitar umidade, o assoalho estava construído cerca de cinqüenta centímetros acima do chão. O telhado, de duas águas, foi feito com caídas acentuadas, de forma que desse para abrir uma porta lá em cima, bem no meio, parecendo sótão; mas, por dentro da tulha, não havia divisão. Dessa porta saía uma rampa, que terminava no terreirão acimentado, onde era secado o café.
Enchia-se a tulha pela porta de baixo, descarregando-se as sacas de café diretamente do caminhão. Quando as pilhas já passavam da metade da altura da tulha, os colonos subiam a rampa com as sacas nos ombros e as jogavam, até que chegassem ao nível da porta, lá em cima.
Era uma próspera fazenda, até que, em 1970, uma desgraça aconteceu com a família do senhor Yoshida. O mais novo dos seus cinco filhos morreu de forma trágica. Estava voltando da cabeceira da fazenda, de trator, junto com um dos empregados. Como os tratores só têm um assento, ele ia de pé, ao lado do motorista, apoiado em seu ombro.
Por causa de um buraco, o menino perdeu o equilíbrio, caiu e o pneu traseiro passou sobre sua cabeça. Morreu na hora.
Logo depois do enterro, a família pôs a fazenda à venda.
Conta-se que o senhor Yoshida enterrou o filho embaixo da tulha, porque ali nunca mais passaria nada sobre ele.
Meu pai comprou a fazenda em sociedade com um dos seus irmãos, e as duas famílias se mudaram para lá. Eu tinha cinco anos. Juntando-se os primos e os filhos dos colonos, havia muitas crianças. Brincávamos por toda a fazenda, o dia inteiro. Mas, logo que chegamos, fomos avisados pelas outras crianças que a tulha era mal-assombrada.
Não acreditávamos, é claro.
- É verdade sim, dizia Carlinhos, o filho do Tonho. Às vezes, à noite, o menino, enterrado embaixo da tulha, começa a chamar pela família. Dizem que ele sente frio porque seu túmulo nunca pega sol.
- Que nada! Vocês acreditam em tudo que dizem… São é medrosos, isso sim – dizia eu.
Por via das dúvidas, quando voltávamos para casa já meio escuro, dávamos a volta pelo outro lado do terreirão para não passar em frente da tulha.
Mais tarde, por causa das geadas, que acabaram com os pés de café, meu pai mecanizou a fazenda para a plantação de soja e trigo.
Com o tempo, construiu um armazém de alvenaria, mais moderno; e a tulha foi ficando sem uso, envelhecendo no abandono. A rampa apodreceu aos poucos, caiu, não foi arrumada. E, assim, a tulha foi adquirindo mesmo uma cara de mal-assombrada.
À noite, nas fazendas, naquele tempo, ainda sem luz elétrica, reuniam-se as famílias em volta da mesa da cozinha, sob a luz do lampião, para conversar um pouco, antes de dormir.
Contavam-se causos, e nesses momentos a história da tulha mal-assombrada era sempre lembrada. Sempre havia alguém que já tinha ouvido os lamentos do menino, reclamando de frio, querendo sol.
Certo dia, Carlinhos provocou:
- Se não acredita, vamos até lá hoje à noite. Quero ver o quanto você consegue ficar.
Eu, como neta de espanhóis, de sangue quente, não podia deixar de aceitar o desafio, não permitiria que ninguém me chamasse de medrosa.
Quando todos de casa já haviam se recolhido, saí de mansinho e fui ao encontro de Carlinhos em frente da tulha, na hora marcada. Cheguei primeiro; ele não estava lá. Esperei uns dez minutos, lutando contra o medo, sem conseguir amenizá-lo. Ao contrário, ele tomava conta de mim, de tal forma que eu não mais sabia se conseguiria sair dali com minhas próprias pernas. Não mexia um músculo sequer. Apenas os ouvidos mantinham-se atentos, enquanto o bater mais forte do coração quebrava o silêncio da noite fria. Tremia, não sei se de frio ou de medo.
Depois de certo tempo, para mim certamente muito longo, ouvi a voz do menino reclamando:
- Tenho frio… Tenho frio…
Não sei, com certeza, o que aconteceu. Quando dei por mim, já estava em casa, ofegante, do lado de dentro da porta da cozinha. Corri para a cama e puxei a colcha até que ela cobrisse totalmente minha cabeça.
No dia seguinte, logo cedo, Carlinhos apareceu em casa, desculpando-se pelo bolo. Disse que sua mãe viu quando estava saindo e mandou que voltasse.
Notei um certo ar de cinismo e ironia em seu rosto. Minha impressão era de que ele tinha me pregado uma peça.
Passaram-se muitos anos desde então. Há muito moramos na cidade, mas a família de Carlos continua na fazenda.
Até hoje Carlos jura que não foi ele. Até hoje fico na dúvida.
Meses atrás, meu pai chegou em casa dizendo que tinha mandado derrubar a velha tulha; iria plantar goiabeiras no local.
Ontem fui até a fazenda. No local onde o filho do senhor Yoshida foi enterrado, brotou um lindo pé de chorão, que cresceu de um dia para o outro, desenvolvendo-se, segundo os empregados, de forma espantosa.
- Está vendo? – disse Carlos. Foi só derrubar a tulha e o sol bater sobre seu túmulo, que o menino parou de chorar de frio.
Em certo momento, sentei-me ali, no velho terreirão, em frente ao pé do tal chorão. Não vi o tempo passar, e a noite chegou. Não fui embora. Percebi que não tinha mais medo, mas senti algo estranho.
O vento envergava os galhos do chorão para um lado e para o outro e o som que ele produzia parecia um lamento.
Por um instante, senti pena, simplesmente pena, uma tristeza sem explicação. Pareceu-me tão só, ali, no meio da fazenda…
Num gesto impensado, levantei-me, colhi algumas margaridas, que cresciam beirando o terreirão cimentado, e coloquei as flores junto ao tronco do pé de chorão.
Fonte:
Academia de Letras de Maringá
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