Duas moças moravam juntas e eram irmãs, uma muito boa e outra maldizente e preguiçosa. Cada uma tinha seu quarto. A mais velha começou a notar um barulho de asa e depois fala de homem no quarto da irmã. Ficou desconfiada e foi olhar pelo buraco da fechadura. Viu uma bacia cheia d'água no meio do quarto. Quando deu meia-noite chegou na janela um papagaio enorme, muito bonito e voou para dentro, metendo-se na bacia, sacudindo-se todo, espalhando água para todos os lados. Cada gota d'água virava ouro, e o papagaio, quando saiu do banho, foi um príncipe mais formoso do mundo. Sentou-se ao lado da irmã e pegaram a conversar animados como noivos.
A irmã ficou roxa de inveja. No outro dia, de tarde, encheu o peitoril da janela de cacos de vidro, assim como a bacia. Nas horas da noite o papagaio chegou e, batendo no peitoril, cortou-se todo. Voou para a bacia e cortou-se ainda mais. Arrastando-se, o papagaio não virou príncipe, mas chegou até a janela e disse para a moça, que estava assombrada com o que sucedera:
— Ai, ingrata! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver, só no reino de Acelóis.
E, batendo asas, desapareceu. A moça quase se acaba de chorar e de se lastimar. Brigou muito com a irmã e deixou a casa, procurando o noivo pelo mundo. Ia andando, empregando-se como criada nas casas só para perguntar onde ficava o reino de Acelóis. Ninguém sabia ensinar e a moça ia ficando desanimada.
Uma noite, depois de muito viajar, já cansada, ficou com medo dos animais ferozes e subiu em uma árvore, escondendo-se bem nas folhas. Estava amoquecada quando diversos bichos esquisitos chegaram para baixo do pé de pau e pegaram a conversar.
— De onde chegou você?
— Do reino da Lua!
— E você?
— O reino do Sol!
— E você?
— Do reino dos Ventos!
A moça prestou atenção. No primeiro cantar dos galos sumiram-se todos, e ela desceu e continuou a marcha. Andou, andou, até que chegou noutra mata e, para não ser devorada, trepou numa árvore. Lá em cima, quando a noite ficou bem fechada, chegaram umas vozes no pé do pau.
— De onde veio?
— Do reino da Estrela!
— De onde veio?
Do reino de Acelóis!
— Que novidades me traz?
— O príncipe está doente e ninguém sabe como tratar dele...
A moça botou reparo e na madrugada seguiu no mesmo rumo pois as vozes já tratavam do reino de Acelóis. Andou, andou, andou. Finalmente, quando anoiteceu, estava dentro de uma floresta. Subiu em um pau e ficou quieta, lá em cima. Mais tarde as vozes começaram na falaria:
— De onde vem você?
— Do reino de Acelóis!
— Como vai o príncipe?
— Vai mal, coitado, não tem remédio!
— Ora não tem! Tem! O remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo mindinho de uma moça donzela que queria morrer por ele!
Quando amanheceu o dia, a moça tocou-se na estrada. Ia o sol se sumindo quando ela avistou o reinado de Acelóis. Entrou no reinado e pediu agasalho numa casa. Na hora da ceia perguntou o que havia e disseram que o assunto da terra era a doença do príncipe. A moça, no outro dia, mudou os trajes, foi ao palácio e pediu para falar com o rei.
— Rei Senhor! Atrevo-me a dizer que ponho o príncipe bonzinho se Rei Senhor me der, de tinta e papel, a metade do reinado e de tudo quanto lhe pertencer.
O rei deu, de tinta e papel, a metade de tudo que possuía. A moça foi para o quarto, meiou um copo d'água, furou o dedo mindinho, botou três gotas de sangue dentro, misturou e mandou ele beber. Assim que o príncipe engoliu, foi abrindo os olhos, levantando-se da cama e abraçando a moça, numa alegria por demais.
O rei ficou muito satisfeito e quando o príncipe disse que aquela era a sua verdadeira noiva desde o tempo em que ele estava encantado em um papagaio real, o rei não quis dar consentimento porque a moça não era princesa. A moça então falou:
— Rei Senhor! Tenho por tinta e papel a metade de tudo quanto é do rei senhor neste reinado. O príncipe é do rei senhor e eu tenho por minha a metade dele. Se rei senhor não quiser que eu case com ele inteiro, levarei para casa uma banda.
Ao ouvir falar em cortar o príncipe pelo meio, como a um porco, o rei chegou-se às boas e deu o consentimento. Foram três dias de festas e danças e até eu me meti no meio, trazendo uma latinha de doce, mas na ladeira do Encontrão, dei uma queda e ela, pafo! —no chão!...
Nota
É o Mt. 432 de Aarne-Thompson, The Prince as Bird. Os elementos, constantes da versão, são idênticos aos do resumo de Antti Aarne: — O príncipe com forma de pássaro voa para sua linda noiva, D 641.1; transformando-se, em sua presença, em homem, D 621, D 150; uma irmã cruel, S 31, coloca vidros, espinhos, facas e navalhas, na janela por onde o pássaro entrará, S 181; a moça segue seu noivo, H 1385.5, ouve casualmente vozes misteriosas (animais e feiticeiras), N 452; aprendendo o segredo do tratamento do noivo, tomando o caminho certo, tratando-o e curando-o. Aarne diz esse conto popular na Finlândia, Lapônia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Sicília, Rússia, Grécia. Teófilo Braga registra uma versão do Algarve. A paraboinha de ouro, nº 31, idêntica em toda primeira parte; Adolfo Coelho traz uma variante de Ourilhe, Celorico de Basto, O príncipe das palmas verdes. uma versão do Chile, chamo-o El Príncipe Jalma. A versão brasileira de Sílvio Romero é O papagaio de limo verde. Versão no Pentamerone, II, 2. (1634)
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986 (Reconquista do Brasil, 2ª série, 96)
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