sábado, 26 de maio de 2012

Heloísa Seixas (A Penitência das Flores)


Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata-borboleta cor de sangue. Na cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também e um tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas de várias cores dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu avenca.

O velhinho que vende flores.

Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez mais ainda porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por uns instantes, as mulheres esticando os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.

Nesse instante, o garçom, meu conhecido - e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de flores -, chegou a meu lado e disse:

- Está fazendo trinta anos hoje.

- É mesmo?

- É - respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele restaurante há mais de vinte anos.

- Como você sabe?

- Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?

- É verdade - respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.

Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano.

Ele me olhou como se me varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história, eu já conhecia. Só não sabia que, naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem-nascido, que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.

Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.

- Às flores - disse.

E ele sorriu. Em sua loucura, sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua penitência. E sua redenção.

Fonte:
SEIXAS, Heloísa. Contos mínimos. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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