O professor Mendes não sabia com precisão quando tivera a idéia de escrever seu inconcluso livro. E não se arriscava sequer a falar do ano.
— Mais ou menos — instavam seus amigos.
— Pode ter sido em 64, muito antes, ou muito depois; não sei.
Bem, se não se lembrava do tempo da fecundação, dissesse então por que decidira criar a obra — exigiam os outros. Por querer celebrizar-se? Por admiração ao filósofo? Por puro diletantismo?
Mendes ou não levava a sério as preocupações dos colegas, ou também vivia em dúvida:
— Se não me engano, nasci para escrever este livro — e abanava um bloco de folhas escritas a mão, como se desse bananas ao mundo inteiro.
As tais folhas andavam sempre entre as páginas de um livro impresso e este debaixo do braço, o que as fazia suadas, amassadas e emporcalhadas. Dias e dias com o mesmo livro, embora já o tivesse lido e relido.
— Ainda com a República? — ignorava alguém.
E Mendes aproveitava a observação para mostrar suas “anotações filosóficas” ao curioso. Alguns bons minutos de leitura, quer o outro tivesse pressa, quer pudesse perder tempo.
As pessoas queixavam-se constantemente da impertinência de Mendes.
— Ele enche o saco com essas suas anotações — lastimava-se uma.
— O pior é que não escolhe suas vítimas. Podia chatear apenas seus colegas de Filosofia — opinava outra.
Para Mendes, todo ouvinte era um ouvinte, bastava ter ouvidos. Com certeza, iria entender tudo e gostar do texto.
Apesar de ninguém saber exatamente quando a primeira idéia germinara naquele crânio incompreendido, o certo é que o livro há anos vinha sendo escrito. Ou anotado, como o próprio Mendes dizia.
Um de seus amigos pilheriava: primeiro conhecera o livro, depois o autor. Até aí nada de engraçado, porque geralmente o leitor não conhece o escritor.
— Ocorre que não fui leitor, mas simplesmente ouvidor. O leitor foi ele, o Mendes — contava o piadista. — Primeiro leu para mim umas anotações filosóficas e só depois se apresentou: — “Sou Pereira Mendes, filósofo”.— “Prazer em conhecê-lo”.
Os ouvintes da pilhéria se enchiam de curiosidade: quando havia ocorrido o fatídico primeiro encontro dos dois?
— No primeiro dia de aula do primeiro ano de minha carreira de professor.
— Então já faz algum tempo! — admiravam-se todos.
— Se não ocorrer nenhum incidente na minha vida, deverei me aposentar daqui a dez anos.
Ao tempo do fato, Mendes devia ser ainda estudante, talvez calouro de faculdade.
Estranhavam ainda seus ex-mestres, colegas, amigos, alunos, todos quantos o ouviam diariamente, o não se apresentar ele como Apolodoro. Assinava-se A. Pereira Mendes, quer nos artigos que escrevia para a revista da escola, quer em documentos e papéis da vida civil.
— Não quero que digam: dedicou-se à filosofia só porque tem nome de filósofo.
Do nome do filho passavam à pessoa do pai. Com toda a certeza, o falecido José Mendes adorava filosofia.
– De jeito nenhum — replicava o professor. — Aliás, ele mal sabia ler. Não ia além dos jornais mais vagabundos.
E completava a informação: a lenda falava de um vizinho do pai, um sujeito metido a intelectual, como autor da idéia do nome.
De qualquer forma, aquele nome o levara a se interessar por filosofia. Primeiro procurou saber quem diabo tinha sido o tal Apolodoro.
— Para vocês terem uma idéia de como meu pai era um idiota, escutem só esta: ele me disse que Apolodoro era um influente político do tempo de Getúlio, um ex-tenente revolucionário, ou coisa assim.
E durante muito tempo o menino acreditou na história política de seu nome. Só descobriu a verdade quando chegou ao ginásio, às aulas de latim. Falavam de Apolo, e para Apolodoro foi um pulo.
Mendes nunca se mostrou um menino prodígio, desses que lêem Homero aos sete anos de idade. Pelo contrário, só lia o estritamente exigido pelos professores: sonetos da Escola Mineira, capítulos do Iracema, trechos de Rui.
Só às portas do vestibular conseguiu ler dez páginas sobre o pensamento grego, onde o jornalista falava de Sócrates, Platão e Aristóteles, além de meia dúzia de nomes de boa pronúncia.
— Havia Apolodoro?
— Nesse tempo eu era doido por Fátima e passava dias e noites a imaginar encontros aventurosos, palavras amorosas e beijos sulfurosos.
No entanto, a vida também passava. Mendes ingressou na faculdade, meteu-se no movimento estudantil, leu centenas de jornalecos, distribuiu panfletos incendiários e quase pegou em armas. Quando parou para de novo sonhar amores, Fátima havia casado com um comerciante de São Paulo e sumido para sempre.
Mendes queria ser jornalista. Se não fosse possível, advogado. Não havia vaga, porém, nem para uma nem para outra. Restava um lugarzinho na Filosofia.
— Do assunto eu só conhecia mesmo o amor platônico.
— Donzelo até essa idade? — brincavam os amigos.
Não, ele até poderia ser considerado um estróina prematuro. Freqüentava cabarés desde os treze anos, na companhia de um primo. Chegavam a gazear aulas, para ir atrás das mulheres, em pleno dia.
— Ainda me lembro da primeira vez. A mulher riu, mas eu me fiz forte, como se fosse experimentado garanhão.
Esse relacionamento com as raparigas se estendeu ao longo da vida de Mendes, a tal ponto de nunca querer se casar. Morou com os pais até a mãe morrer. A seguir, o velho também deu adeus à vida. Os irmãos e as irmãs então já tinham constituído suas famílias, cheios de filhos.
— Eu só casaria com aquela que eu amasse muito, e eu nunca encontrei este amor — confessava.
Não admitia as chamadas repúblicas de rapazes. Coisa de homossexuais enrustidos, defendia-se. Preferia viver só. Habitavam sua casa, porém, livros, discos e quadros. A biblioteca tomava conta de quase tudo, da sala ao quarto. Pura mania de colecionador, porque nos últimos tempos mal conseguia ler uma página por semana.
— Primeiro preciso ler tudo sobre Sócrates.
Sua escrivaninha vivia abarrotada daquilo que considerava essencial ao seu interesse: histórias da Grécia antiga, dicionários de filosofia e grego, obras filosóficas, especialmente o Banquete, Fédon, Memórias de Sócrates, Apologia de Sócrates e outras relacionadas ao mestre de Platão. No entanto nem só de filosofia vivia Mendes. As mulheres ocupavam lugar especial em sua mente. Como Maria Helena.
Tratava-se de uma secretária epicurista, que conhecera num bar. Em suas conversas, no entanto, nenhuma filosofia tinha vez. Falavam de si mesmos, generalidades, palavras à toa. Primícias de cópulas sonhadas.
— O amor não precisa de filosofia — justificava-se.
Apesar disso, não abandonava nunca as folhas soltas de seu projeto de livro sempre espremidas entre as páginas de um filósofo qualquer, grego ou troiano. E, aqui e ali, relia para os amigos suas obscuras anotações, repletas de acrologias, agnosias e alegorias.
— Eu precisava saber mais sobre Xantipa, que tipo de amor havia entre ela e Sócrates — comunicava aos amigos, em meio à leitura.
Na faculdade, nem o mais humilde funcionário desconhecia o livro de Mendes. O livro e suas lacunas.
— Não descobriu nada ainda sobre o amor de Xantipa? — indagava o porteiro.
— Não.
— Nem vai descobrir — atrevia-se o outro. — O amor é o mesmo em qualquer época e em todo lugar – ensinava.
Professor e porteiro se perdiam então em longas digressões pelos caminhos do conhecimento. Cuidavam, formava-se verdadeira assembléia ao seu redor, composta de funcionários, alunos e professores. Muitas vezes chamaram a polícia, a fim de dispersá-los. Do contrário, ninguém trabalhava nem estudava — garantia o diretor.
Além da filosofia ou, mais especificamente, de Sócrates, se deixava seduzir por outras manias o celibatário Mendes. Assim, adorava também música e pintura. Em todas as paredes de seu pequeno apartamento havia quadros e mais quadros. A maioria reproduções de pinturas famosas, como A Banhista, As três graças e Mona Lisa.
— Para mim não existe mulher mais bela em toda a pintura universal.
— Você sabe que é um auto-retrato? — provocava-o um colega.
– Se for, não deixará de ser mulher, para mim.
Chegou a confessar que a personagem de da Vinci só perdia em beleza para um retrato de sua mãe quando jovem. No entanto nem só por figuras pictóricas apaixonavam-se os olhos filosofais de Mendes. Assim, além da pretérita Fátima, da epicurista Maria Helena, de tantas e tantas mulheres, morava também em seus sonhos Rosana, tida por alunos e professores como a ninfa da escola.
— Pena que ele tenha chegado tarde — debochava a garota.
E isto — apaixonar-se por moças bonitas — constituía-se uma quarta ou quinta mania nele.
— Quem sabe, Mendes, ela muda de idéia — confortava-o um amigo.
— Não se preocupe comigo — resignava-se. — Afinal, as mulheres são efêmeras.
E Sócrates voltava à baila, e também a cicuta, os sicofantas, Xantipa, Platão, Apolodoro, ele mesmo, suas famosas “anotações” para o sempre inconcluso O amor socrático.
— Mas o que vem a ser mesmo esse amor socrático? —impacientou-se, um dia, seu melhor amigo.
— Se eu soubesse, já teria concluído o livro — aborreceu-se Apolodoro.
E o aborrecimento virou ira, o sentimento pelo melhor amigo desfez-se e as “anotações filosóficas” para o livro terminaram reduzidas a mil pedaços de papel, que voaram, por todo o resto do dia, pelo pátio da Filosofia.
Fonte:
Nilto Maciel. Contos Reunidos. vol. II. Porto Alegre, RS: Bestiário, 2010.
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