O esplêndido sol dum dia de junho de 1852 brilhava com toda a sua força.
Lisboa—a ufana—curvada graciosa para o Tejo, que lhe beija as plantas, oferecia alegre as suas torres, seus palácios, suas praças, suas ruas, aos raios ardentes desse astro vivificador.
Entranhemo-nos por essa Lisboa, labirinto como tantos outros que se chamam Paris, Londres, etc. Vereis por toda a parte desonra, infâmia, crime! Vereis a virtude esmagada pelo vício! Vereis a par da mais deslumbrante opulência, a mais horrível miséria! Vereis o pobre ajuntar as migalhas dos festins e das orgias do rico! Vereis desacatada a religião, profanado o templo, insultado o Cristo!
— E vive-se nesse inferno?! perguntareis vós.
— Vive-se sim, porque esse abismo alcatifado de flores, tem uma atração a que ninguém resiste. Vive-se sim, porque aí pode o malvado esconder a fronte criminosa no meio da multidão, que se agita e ruge como o oceano em um dia de cólera. Vive-se sim, porque a mulher, que o mundo perdeu, pode aí facilmente furtar-se à vista daqueles, que a conheceram no seu tempo de candura e d’inocência.
— Vinde.
— Por aqui?!...
— Sim, por aqui; causam-vos nojo estas ruas estreitas, tortuosas e lamacentas? Também a mim. Reparai como estes prédios denegridos exalam um fétido insuportável. Tudo respira orgia, vício! Não vedes essas mulheres, que nos atraem com seus olhares voluptuosos, seus sorrisos d’amor, seus requebros lascivos? São mulheres perdidas. Coitadas! Arrojaram-nas nesse abismo de devassidão, e não há mão, que as salve! Hão-de morrer revolvendo-se nesse lodaçal imundo! Desçamos esta calçada.
Não vedes além, aquela jovem pálida e linda encostada à sua janela? Tem seus olhos negros fitos no céu; talvez esteja passando pelo pensamento toda a sua vida. Quem sabe?
Olhai! também tem sobre a fronte o cunho da prostituição.
Mas reparai bem: não vos parece, assim como a mim, tê-la já visto?... Esperai! Foi...há-de haver quatro anos...numa linda quinta...chamava-se...chamava-se...Carolina...
Carolina!! Aquela virgem que passeava pensativa e bela no seu jardim...inocente como uma pomba?... Oh o mundo!...O mundo!...
E foi um miserável que a perdeu!...
Fernando! Fernando! o que fizeste!...
Onde está teu filho, malvado?!
Meteste-o na roda! Vai, mostro, vai ver se o encontras agora, no meio dessas crianças condenadas a viver, sem jamais receberem uma carícia de sua verdadeira mãe, sem que na hora derradeira se recordem que os beijos maternos lhe roçassem as faces na sua infância.
E quando um dia, um homem puser sobre teu peito a ponta do seu punhal, exigindo-te a—bolsa ou a vida,— terás a certeza de que esse bandido não seja o teu filho?...
Ah! Fernando! Fernando! a virgem, que louca, se confiou na tua lealdade,— seduziste-a!
A mulher, que com vergonha da sua família, deixou por teus conselhos a casa paterna, — abandonaste-a!
E a desgraçada, numa noite tempestuosa, vertendo prantos de dor e arrependimento, bradou desesperada: “Fernando! Fernando! tu m’ enganaste! Augusto, perdão! Meu Deus, valei-me! que hei-de eu fazer? Oh! a culpa não é minha, levo a consciência tranqüila!”
E lançou-se no vício!...
E não houve um braço que a sustivesse à borda do precipício!...
E as turbas, que vêm e vão, quando passam, chamam-lhe—prostituta!...
Covardes! não insulteis essa mulher. Foi um homem que a perdeu.
Lembrai-vos que ela já foi virgem; lembrai-vos que essa rosa, hoje pálida, desbotada, murcha e estendida no solho dum lupanar, já foi um botão mimoso, que entreabria risonho num jardim florido, e que o vendaval da vida derrubou.
Não a insulteis! resgatai-a do vício; tirai-lhe o labéu infamante, que lhe pesa sobre a fronte e Deus vos recompensará.
Não a insulteis, que aquele pobre coração há-de sofrer tormentos horríveis. Quantas vezes não terá ela chorado lágrimas de sangue, lembrando-se das carícias de sua mãe, do amor de seu pai, dos seus dias sossegados e felizes passados no lar doméstico! Quantas vezes não terá pensado no seu Augusto, que tanto a amava e que talvez agora a amaldiçoe!...
E essa infeliz, ralada por sofrimentos horríveis, não terá, na última hora, mão amiga, que lhe venha cerrar as pálpebras?!...
Ah! mundo! mundo! abismo insondável, que tragas tantas vítimas!...
Ah! Sociedade estúpida! que escarneces da desgraça!...
Ah! Justiça! Justiça! palavra irrisória, que nunca punes o criminoso!...
Mas há a de Deus, e essa...é justa!
Continua…
Fonte:
ABREU, Casimiro de. Carolina. in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ
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