sábado, 19 de maio de 2012

Vicência Jaguaribe (A Matrioska)


Para a Andrea,
a menina que não conseguiu
ficar com a sua matrioska.


Era a primeira vez que ia ao apartamento da amiga. Uma amiga recente, com quem se afinara. Tinham gostos muito parecidos. Naquele momento, ela lhe mostrava os cômodos, cuja decoração misturava o antigo com o moderno, mistura de que ela também gostava.

Pararam em frente a um pequeno armário de parede, afixado no espaço que ficava entre dois dos três quartos. A amiga abriu as duas portas do pequeno móvel suspenso, no interior do qual, envolvida pela quase penumbra do ambiente, ela identificou uma forma inconfundível.

— Que bonequinha é aquela, lá no fundo? — a pergunta sendo mais um desejo de confirmação do que propriamente uma tentativa de identificar.

— Ah! É uma matrioska. Linda, não?

Ela não ouviu a resposta da amiga. Ouviu a voz da avó, que vinha do passado, de um passado tão distante, meu Deus! que ela não pensava que ainda se lembrasse daquele episódio, muito menos daquela conversa.

A avó abrira a cristaleira e tirara lá do fundo uma bonequinha feita de madeira e pintada de cores vivas. Aquele mimo sempre atraíra a neta — ela sabia. Sentou na cadeira de balanço e pôs a menina no colo. Ela tinha o quê? Quatro, cinco anos... talvez seis. Entregou-lhe a boneca:

— Abra! Ela é oca. Veja o que há dentro dela.

Com muito cuidado, a menina abriu a boneca — separada que era em duas partes por um corte horizontal na altura da região dos quadris — e viu, surpresa, que dentro dela havia outra boneca menor. A avó, então, mandou que ela continuasse abrindo as bonecas menores. A menina foi abrindo, abrindo, abrindo... A cada nova boneca seus olhos demonstravam mais surpresa e encantamento. A operação continuou até chegar a uma minúscula boneca compacta. Junto com a avó ela contou: uma, duas, três... sete bonecas! E elas se encaixavam umas dentro das outras de maneira tão perfeita que quem via a maior não suspeitava que dentro dela havia outras seis bonecas. Era como se fosse um mundo dentro do outro, mas cada um existindo por si próprio, independente, sem misturar-se.

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha. Algumas pessoas acham que ela representa a família, sempre protegida pela mãe. Contam que essas bonecas se originaram no Oriente: um pintor artesanal russo, chamado Sergei Maliuntin, viu no Japão uma peça representando os Shichi-fuku-jin, os sete deuses da fortuna, que se encaixavam uns nos outros como as bonecas feitas hoje. Ele, então, pensou em aproveitar a ideia dos japoneses, só que fazendo bonecas representando pessoas. Fez a primeira e pintou-a como uma camponesa russa. E nasceu a matrioska.

A menina ficou toda animada. Em suas visitas à casa da avó, passava pela sala da cristaleira e demorava longos minutos olhando a sua boneca. A boneca que era sua, mas com a qual não podia brincar.

Nos fins de semana, nas férias, a menina ia à casa da avó. Uma grande casa assobradada, no Benfica, com muitas e frondosas árvores, principalmente mangueiras, nas quais ela, seus irmãos e primos gostavam de brincar. Escanchavam nos galhos mais altos e faziam de conta que estavam num campo de batalha, montados em belos cavalos árabes.

Um dia, ela teve coragem e perguntou:

— Mãe, o que é uma herança?

— Uma herança é dinheiro ou bens que a gente recebe quando morre um parente rico.

A menina ficou de cara amarrada o resto do dia. Então, a vovó ia morrer? Ela dissera que a boneca russa ia ser a sua herança. Eu não quero que a vovó morra. Mas também quero a bonequinha, ela pensava. Era um grande conflito atormentando a cabecinha da menina. E ela só tinha seis anos.

Um ano depois, a avó morreu. Enquanto a família toda chorava, a menina sentia o coração bater em um compasso diferente. E não era propriamente vontade de chorar o que ela experimentava. Mas precisava parecer triste. Ninguém podia desconfiar que ela, apesar de sentir a morte da avó, estava feliz porque ia ganhar a matrioska. Três dias após o enterro, o pai chamou-a para ir com ele à casa do Benfica. A menina alegrou-se como se o pai a tivesse convidado para ir a um parque de diversões. Pronto, chegara o dia de receber a desejada herança. Era só abrir a cristaleira e de dentro dela tirar aquele mimo que tanto a fascinava.

Parou em frente ao móvel, mas antes de abri-lo olhou para a sua boneca. Quase desmaia. A matrioska não estava mais em seu lugar. E as lágrimas começaram a escorrer. E os soluços se fizeram ouvir por toda a sala. Os adultos a cercaram e tentaram consolá-la pela morte da avó. E quanto mais a família tentava consolá-la, dizendo que a vovó estava no céu, mais ela chorava. Chorava e sentia remorso: ela não chorava pela avó, chorava pela matrioska, que não mais seria sua. Alguém se antecipara e achara-se no direito de ficar com a sua boneca. E todas as vezes em que a família se reunia no casarão do Benfica ela chorava. Chorava pela boneca, mas todos pensavam que era pela avó. Ela sentia vergonha e remorso daquelas lágrimas.

— Uma matrioska! Foi sempre meu sonho possuir uma dessas bonecas. — Só agora ela respondia à observação da amiga.

A amiga impressionou-se com o tom de sua voz e com o ar triste e desconsolado que lhe cobria o rosto. Tirou a matrioska do armário e a pôs em suas mãos.

— Pronto. A boneca é sua.

Ela não pôde de imediato agradecer à amiga, porque estava novamente sentada no colo da avó, que lhe contava a história da matrioska e lhe dizia o que ela sempre quisera ouvir:

— Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha...

Fonte:
Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Painel 2012 de Novos Autores Brasileiros - Contos - Maio de 2012

Nenhum comentário: